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Frei Luís de Sousa




Imagens

do filme

Quem És Tu?

de

João Botelho


Verdadeira tragédia
Definição de tragédia
Classificação de Frei Luís de Sousa
Processo psicológico trágico
Personagens
Sebastianismo
Romantismo na obra
Importância d' Os Lusíadas no 1º ato
Lei das três unidades
Elementos da tragédia




Esta é uma verdadeira tragédia

«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]

Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.

O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.

Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.

[...]

Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»

 

Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de maio de 1843 - nota de Garrett)

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Definição de tragédia

«É, pois, a tragédia imitação de uma ação de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.

[...]

Como esta imitação é executada por atores, em primeiro lugar o espetáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os atores efetuam a imitação. [...]

E como a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as ações), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as ações: pensamento e carácter; e, nas ações [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de ações; e, por "mito", entendo a composição dos atos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.

[...]

Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso, as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.

[...]

Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma ação e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.

Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b

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Classificação de Frei Luís de Sousa

«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia:

não é em verso, mas em prosa;

não tem cinco atos;

não respeita as unidades de tempo e de lugar;

não tem assunto antigo.

Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade,

  1. o número de personagens é diminuto;

  2. Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);

  3. uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);

  4. contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;

  5. há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);

  6. Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.

Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:

  1. a crença no sebastianismo;

  2. a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;

  3. a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;

  4. as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;

  5. o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;

  6. a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.

Se a isto acrescentarmos certas características formais, como

  1. o uso da prosa;

  2. a divisão em três atos;

  3. o estilo todo, do princípio ao fim,

teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo

Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II

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Processo psicológico de autorrevelação e de desarticulação
da
personalidade de Telmo

«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.

O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]

Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º ato, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num ato exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu ato exemplar encaminha-o para a perdição.

Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afetiva sobre a morte do amo.

O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efetivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:

- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.

A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objetivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjetivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»

Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas

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© 2001- - Manuel Maria, associado da SPA.
Textos em conformidade com as normas do novo Acordo Ortográfico.