Creio
que Almeida Garrett não poderia ter
concebido melhor cena para iniciar o Frei
Luís de Sousa. Sendo esta
obra, pela sua forma, um drama, "título
modesto" com que o autor se contentou,
como o deixou expresso na Memória
ao Conservatório Real, é,
efetivamente, pela sua essência, uma
tragédia. Assim, teve o autor o cuidado
de abrir a cortina com uma cena em que
Madalena, sozinha, «como quem descaiu da
leitura na meditação», repete,
«maquinalmente e devagar», dois versos
do episódio de Inês de Castro, de Os
Lusíadas (1).
«Naquele
ingano d'alma ledo e cego / Que a
fortuna não deixa durar muito...»
O solilóquio de Madalena
evoca aspetos particularmente
pertinentes: o caráter trágico do
episódio determinado pelo destino
(fortuna), à boa maneira clássica (ver
Elementos
Essenciais
da
Tragédia
Grega), e a diferença que
ela própria sente em relação a Inês. «Viveu-se,
pode-se morrer.», diz Madalena, só
que o medo e os terrores que a perseguem
(note-se a gradação crescente) não lhe
permitiram ainda que vivesse, levando-a,
no final da cena, a desabafar: «...que
desgraça a minha!»
Temos,
pois, o primeiro indício de que a ação
se encaminhará inevitavelmente para a catástrofe.
Por
outro lado, o facto de Garrett ter
colocado Madalena a ler Os
Lusíadas propicia a segunda
fala de Telmo (cena II), que considera
este livro «como não há outro,
tirante o respeito devido ao da
palavra de Deus», que não conhece
por não saber latim como o seu «senhor»
(2).
Tal
dito,
aparentemente
um
lapso do domínio do subconsciente, foi o
suficiente para que Telmo, como que
censurado pelo seu consciente,
corrigisse: «... quero dizer, como o
Sr. Manuel de Sousa Coutinho».
Esta correção evidencia o conflito
existente entre ambas as personagens, já
que o que Telmo pretende é justamente
lembrar a Madalena que o seu senhor
continua a ser D. João de Portugal, em
cuja morte não acredita, como podemos
verificar no decurso da mesma cena (3).
A
utilização de Os Lusíadas
em Frei Luís de Sousa pode
ser tudo menos surpreendente. Não nos
esqueçamos de que o Romantismo,
em Portugal, por convenção, teve o seu
início em 22 de fevereiro de 1825, data
da publicação, em Paris, de Camões,
poema em dez cantos, de Almeida Garrett.
Era, sem dúvida, Garrett um
camonianista, por isso não estranha que
soubesse que uma das formas que os que
se opunham à governação filipina
encontraram para alimentar o
sebastianismo foi precisamente o fomento
da leitura da epopeia nacional. Nunca,
até então, Os Lusíadas
haviam tido tão elevado número de
tiragens.
Assim,
aparentemente, Madalena surge em cena
duplamente marcada pelo destino: todo o
simbolismo do episódio de Inês de Castro
e o prenúncio de um sebastianismo que só
lhe poderá ser adverso.
Manuel
Maria
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Ato I - cena I
Madalena só, sentada junto à banca, os
pés sobre uma grande almofada, um livro
aberto no regaço, e as mãos cruzadas
sobre ele, como quem descaiu na leitura
e na meditação.
Madalena (repetindo maquinalmente e
devagar o que acaba de ler)
«Naquele
ingano d'alma ledo e cego
Que a fortuna não deixa durar
muito...»
Com paz e alegria d'alma...
um ingano, um ingano de poucos
instantes que seja... deve de ser a
felicidade suprema neste mundo. E que
importa que o não deixe durar muito a
fortuna? Viveu-se, pode-se morrer. Mas
eu!... (pausa)
Oh! que o não saiba ele ao menos, que
não suspeite o estado em que vivo...
este medo, estes contínuos terrores,
que ainda me não deixaram gozar um só
momento de toda a imensa felicidade
que me dava o seu amor. Oh! que amor,
que felicidade... que desgraça a
minha!
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