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Biografia
Pessoa, Fernando
António Nogueira (Lisboa, 1888-1935).
Extraordinário poeta e uma das personalidades
mais complexas e representativas da literatura
europeia do séc. XX. Filho dum modesto
funcionário, inteligente e culto, jornalista,
crítico musical, que morreu tuberculoso em 1893.
Ascendência de cristãos-novos; avó paterna
louca. A mãe, oriunda de boa família açoriana,
senhora de esmerada educação, contraiu segundas
núpcias em fins de 1895; o casal instalou-se em
Durban (África do Sul), onde o futuro poeta fez
os seus estudos, prosseguidos na Univ. do Cabo
(1903-04). Quando volta definitivamente para
Lisboa, F. P. domina a língua inglesa (e a
respectiva literatura) tão bem, ou melhor, que a
materna. Chega a matricular-se no Curso Superior
de Letras, cujas aulas depressa abandona;
dedica-se ao estudo de filósofos gregos e
alemães (Schopenhauer, Nietzsche deixarão sulco
na sua obra); lê os simbolistas franceses e a
moderna poesia portuguesa (Antero,
Cesário
Verde, etc.)
Retraído, com
vocação para viver isolado, sem compromissos,
sempre disponível para as aventuras de espírito,
trabalha, desde 1908 até à sua morte, como
correspondente comercial de várias firmas.
Subtil conversador de café, parece inepto para a
vida sentimental; apenas se lhe conhece o namoro
burguês de poucos meses com uma dactilógrafa.
Frui a existência obscura que escolheu, por
quadrar ao seu feitio. Uma vez (em 1931)
define-se como «hístero-neurasténico com a
predominância do elemento histérico na emoção e
do elemento neurasténico na inteligência e na
vontade (minuciosidade de uma, tibieza de
outra)». Com efeito, extremamente lúcido (é o
poeta português que mais se aproxima de Valéry),
mentaliza as emoções e, por inteiro, votado à
literatura, a ela reduz os seus pretensos
ataques de histeria.
Desde os treze anos
escreve poesias em inglês; mas é como ensaísta
que primeiro se revela, ao publicar, em 1912, na
revista A Águia, uma série de artigos
sobre «a nova poesia portuguesa» (v. Saudosismo),
animados de optimismo messiânico (publ. em
opúsculo em Lisboa, 1944). Entretanto, continua
a compor poesia, já em inglês (são de 1913 os 35
Sonnets e o Epithalamium), já em
português (segundo o A., em 1908, «num impulso
súbito», resultante da leitura das Flores
sem Fruto e das Folhas
Caídas, de Garrett, começou a
escrever versos nesta língua). Afastando-se do
grupo saudosista, ávido de novos rumos estéticos
e de fazer pulsar a literatura portuguesa ao
ritmo europeu, vai ser um dos introdutores do Modernismo
em Portugal, com sá-Carneiro, Almada, Raul Leal
e outros. Em Fev. de 1914 publica, na revista A
Renascença, a poesia «Pauis» (que deu
origem a uma corrente efémera, o paulismo,
de requintado e subtil pós-simbolismo) e «Ó sino
da minha aldeia» (em que, pela depuração do
paulismo, já se anuncia o lirismo claro,
simples, leve mas penetrante música da alma, que
é timbre do Pessoa ortónimo). Se 1914 fica, na
biografia interior do poeta, como um ano
decisivo, pelo aparecimento dos principais
heterónimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, em 1915 vem a lume o Orpheu,
de que
F. P. é um dos directores. Até 1917, reparte-se
entre a procura dramática da autenticidade,
«gravemente atento à importância misteriosa do
existir», e o virtuosismo literário de
experiências mais ou menos sinceras, mais ou
menos para épater,
«nos arredores da sua sinceridade» - do
simbolismo
decadentista e desconexo de «Hora Absurda» ao interseccionismo
impressionista de «Chuva Oblíqua», sem esquecer
o sensacionismo
whitmaniano das Odes de Álvaro de Campos, cantor da fúria e das vertigens da civilização mecânica (Odes insertas no Orpheu).
Passada a hora da exploração do ineditismo em
poesia, delineada uma evolução dentro de cada
heterónimo (pelo menos em Álvaro de Campos, da euforia das grandes Odes ao tédio
sonolento, e em Caeiro), F.
P. continua, no recato da sua intimidade, a
congeminar, a viver pela imaginação, a traduzir
na música dos versos as suas emoções; a bem
dizer, não evoluciona mais: desdobra-se,
aprofunda-se, tece a sua teia como que alheio às
circunstâncias temporais. Em 1917, o Portugal
Futurista inclui poesias de F. P. e o
«Ultimatum», manifesto futurista de A. de Campos.
Em 1918, F. P. dá a lume dois folhetos, Antinous,
poema em inglês, dum esteticismo pagão e
elegíaco, e 35 Sonnets, repassados da
angústia de saber indecifrável o mistério do
mundo. Estes sonetos, onde se espelha uma
essencial inquietação metafísica, distinguem-se
formalmente por um sábio conceptismo, por «Tudor
tricks of repetition, involution and
antithesis», como diz o crítico do Glasgow
Herald. Em 1921, F. P. publica English
Poems I e II (2.ª ed. de Antinous
e catorze Inscriptions, legendas
tumulares ao gosto helénico, onde assoma a ideia
de que a vida é sonho; são poemas datados de
1920) e English Poems-III (Epithalamium,
poema de escabrosa exaltação do prazer). Das Inscrições
há uma tradução de Jorge de sena, in Comércio
do Porto de 9-IX-1958; dos 35 Sonnets,
catorze foram traduzidos por casais Monteiro e
Jorge de Sena, S. Paulo, 1954. Depois, F. P.
colabora nas revistas Contemporânea, Athena
(1924-1925), de que foi director, Presença,
Descobrimento. Pertence-lhe a autoria dum
manifesto político, O Interregno (1928).
Em fins de 1934, publica a Mensagem,
colectênea de poesias que celebram os heróis e
profetizam, em aitude de expectativa ansiosa, a
renovada grandeza da Pátria. E nenhum
volume mais sai em vida do A.; F. P. morre em
grande parte inédito, só admirado num círculo
restrito, nomeadamente pelo grupo da Presença.
Em breve, porém, a sua obra será conhecida e
amplamente valorizada. J. Gaspar Simões e Luís
de Montalvor organizam 5 vols. das Obras
Completas: I. Poesias de Fernando Pessoa
(Lisboa, 1942), II. Poesias de Álvaro de
Campos (1944), III. Poemas de Alberto
Caeiro (1946), IV. Odes de Ricardo
Reis (1946), V. Mensagem
(3.ª ed., 1945). A Freitas da Costa foi confiado
o vol. VI, Poemas Dramáticos (1952),
onde figuram «O Marinheiro», «drama estático»
escrito em 1913, e fragmentos dum «Fausto» em
verso, datados de várias épocas; a Jorge Nemésio
os vols. VII e VIII, Poesias Inéditas
(1955 e 1956); a Georg R, Lind e Jacinto do
Prado Coelho, o vol. IX, Quadras ao Gosto
Popular (1965). Além disso, o poema,
eivado como a Mensagem, de
misticismo sebastianista, e publicado em 1920 no
jornal Acção) À Memória do Presidente-Rei
Sidónio Pais foi editado em folheto em
Lisboa, 1940;artigos e ensaios de F. P. foram
reunidos em volume por Jorge de Sena, sob o
título Páginas de Doutrina Estética (Lisboa,
1946); numerosos fragmentos inéditos, alguns de
excepcional interesse, vieram a público em Páginas
Íntimas e de Auto-Interpretação (Lisboa,
1966) e Páginas de Estética e de Teoria e
Crítica Literárias (Lisboa, 1967) -
volumes organizados por Georg R. Lind e J. do
Prado Coelho -, bem como nos Textos
Filosóficos estabelecidos e prefaciados
por António de Pina Coelho (2 vols., Lisboa,
1968). Hohe F. P. é o poeta de mais larga
projecção na poesia em língua portuguesa, dos
dois lados do Atlântico. Mas o seu espólio
literário permanece, em parte, inédito, o que
não permite fazer um juízo bem fundamentado
sobre todas as facetas da sua personalidade.
Está a caminho a publicação integral do Livro
do Desassossego de Bernardo Soares -
tarefa confiada a Jorge de Sena; igualmente se
prevê a publicação da maior parte, ainda
inédita, da poesia inglesa. Entretanto, o
prestígio internacional do escritor não tem
cessado de aumentar. Traduzido em francês por
Armand Guibert, em espanhol por Octavio Paz, em
alemão por Georg R. Lind, em italiano por Luigi
Panarese, tem sido, nos últimos anos,
objecto de estudos de especialistas alemães,
franceses, italianos, brasileiros, etc.
Como ficou dito, a
obra de F. P. é escrita (sê-lo-ia até ao
fim da sua vida, embora muito cedo o poeta
deixasse de ocultar a «simulação») ora em seu
nome, ora em nome de autores fictícios; e não se
trata de pseudónimos, trata-se antes (insiste F.
P.) de heterónimos, quer dizer, de
individualidades que devem ser consideradas
«distintas da do autor delas» («Tábua
bibliográfica in Presença, n.º 17, Dez.
de 1928). É o caso de A.
Caeiro, de A. Campos e
de R. Reis. O prosador Bernardo Soares não passa
dum semi-heterónimo porque (explica F. P.), «não
sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu
menos o raciocínio e a afectividade» (Páginas
de Doutrina Estética, p. 268). F. P.
chegou a inventar biografias, retratos físicos e
horóscopos para os três primeiros heterónimos, a
fim de melhor os definir. Ele próprio e os
heterónimos (incluindo o doutrinário António
Mora) formariam uma escola neopagã, embora com
atitudes individuais diversas em relação ao
cristianismo.
A.
Caeiro, pretenso «mestre» de R. Reis e A. Campos,
surge como um homem de visão ingénua,
instintiva, gostosamente entregue à infinita
variedade das sensações: «Compreendi que as
coisas são reais e todas diferentes umas das
outras; / Compreendi isto com os olhos, nunca
com o pensamento. / Compreender isto com o
pensamento seria achá-las todas iguais».
Todavia, os seus poemas são abstractos,
incolores, porque defendem uma teoria: para Caeiro,
o real é a própria exterioridade, e não devemos
acrescentar-lhe as impressões subjectivas; a sua
posição é antimetafísica, mais, é contra a
interpretação do real pela inteligência, pois
essa interpretação reduz as coisas a simples
conceitos vazios: « Com filosofia não há
árvores, há ideias apenas». Ricardo Reis
(latinista e semi-helenista, «pagão por
carácter») segue Caeiro no amor da vida
rústica, junto da Natureza; mas, enquanto o
mestre, menos culto e complicado, é um homem
franco, alegre, Reis é um
ressentido, que severamente se molda a si mesmo;
sofre por se saber efémero, dói-lhe o desprezo
dos deuses, aflige-o a imagem antecipada da
Morte, conhece a dureza do Fatum; por isso busca
o refúgio dum epicurismo temperado de
estoicismo, tal como Horácio, seu modelo
literário: «Abdica / E sê rei de ti próprio».
Lúcido e cauteloso, sabiamente constrói para si
uma felicidade relativa, feita de resignação
altiva e de temperado gozo dos prazeres que não
comprometem a liberdade interior. A diferença de
«personalidades» reflecte-se no estilo: A. Caeiro, versilibrista,
expande-se em linguagem fluente e desenvolta,
quase prosa pela sã naturalidade; o estilo de Reis, pelo
contrário, latinizante no vocabulário e na
sintaxe, é densamente trabalhado. O outro
discípulo, Campos, é o
menos intelectual, o mais nervoso e emotivo, até
à histeria; engenheiro naval, «franzino e
civilizado», é o heterónimo que apresenta mais
acentuada evolução: começa pelo decadentismo
de blasé («Opiário»), mostra-se depois
(recebida já a influência de Caeiro, que o aproxima de Whitman) um moderno
de pujante vitalidade, cantor dos instintos
ferozes e da trepidação das grandes urbes fabris
(à Marinetti) («Ode Triunfal», «Ode Marítima»),
e descai por fim no tédio duma vida que se
arrasta, dolente, sem sentido. Aliás, durante a
breve fase heróica, em que o verso livre (outra
herança da lição de Caeiro)
ganha admirável força, desdobrando-se em apostos
e reiterações, já se anuncia, aqui ou ali, o Campos
desistente da última fase. Este heterónimo
também escreveu prosa de ideias: o fustigante
«Ultimatum», onde afirma que o grande poeta
actual será o mais rico de «contradições e
dissemelhanças», propondo o desdobramento dos
poetas em várias personalidades, «cada uma das
quais seja uma Média entre correntes sociais do
momento» (possível justificação dos
heterónimos); os «Apontamentos para uma estética
não-aristotélica (in Athena, n.º 4),
onde advoga uma estética, não já baseada na
ideia de beleza, mas na ideia de força: «De
resto, até hoje, data em que aparece pela
primeira vez uma autêntica doutrina
não-aristotélica da arte, só houve três
verdadeiras manifestações de arte
não-aristotélica. A primeira está nos
assombrosos poemas de Walt Whitman; a segunda
está nos poemas mais que assombrosos do meu
mestre Caeiro;
a terceira está nas duas odes - a 'Ode Triunfal'
e a 'Ode Marítima? - que publiquei no Orpheu». - Em
relação aos heterónimos, o Pessoa ortónimo
distingue-se por traços peculiares: avesso ao
sentimentalismo, as suas finas emoções são
pensadas, ou são já vibrações da inteligência,
vivências de estados imaginários: «Eu
simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso
o coração». Com musical suavidade, em breves
poesias de metro geralmente curto, e através de
símbolos consagrados (a noite, o rio, o mar, a
brisa, a fonte, as rosas, o azul), mais raro de
cunho moderno (o andaime, o cais), fiel à
tradição poética «lusitana» e não longe, por
vezes, da quadra popular, Pessoa exprime ou
insinua a solidão interior, a inquietação
perante o enigma indecifrável do mundo, o tédio,
a falta de impulsos afectivos de quem, minado
pelo demónio da análise, já nada espera da vida
- ou então os vagos acenos do inefável, o breve
acordar da infância, a magia da voz que se cala,
mal o poeta se põe a escutar. Pessoa ortónimo
convizinha com Álvaro de Campos (o da última fase), a quem chama seu
«companheiro de psiquismo»; Campos,
porém, reflecte de modo imediato as sensações do
dia-a-dia, com expressão enervada, negligente, a
roçar pelo prosaísmo, enquanto Pessoa, mais
distante da vida empírica, mais fechado no
intemporal do sonho e da reflexão, elabora com
subtileza a matéria poética, até conseguir uma
pura, cristalina e musical sobriedade. O
primeiro é um romântico, na sua convulsa ou
extenuada modernidade; o segundo um clássico,
moderno também, sim, pela discreta novidade do
seu canto e pelo papel desempenhado pela
inteligência na sua poesia. Neste sentido
convizinha com Ricardo Reis.
Como autor da Mensagem, parece
fugir à melancolia pela crença em desígnios
sobrenaturais que fadam homens e nações para
altos destinos; mas o espírito de corrosiva
análise interfere quando o mito se chama mito,
quer dizer, verdade apenas subjectiva, quimera;
e o desalento denuncia-se, como reverso da
embriaguez messiânica; o mito do Encoberto não
passa duma resposta à desolação da alma: «Só te
sentir e te pensar / Meus dias vácuos enche e
doura». Épico sui generis, sem tuba
altissonante, confina ao espaço subjectivo a sua
profética (loucamente profética) Mensagem;
nunca o abandona a lucidez implacável: «Sem a
loucura que é o homem / Mais que a besta sadia,
/ Cadáver adiado que procria?» Aliás, o ideal
português oculto na Mensagem
parece residir num pacífico «ser tudo de
todas as maneiras»; e do poema infere-se a lição
de que a plenitude humana está não no conseguir,
mas na aspiração insatisfeita, indefinida.
Para alguns, o
problema dos heterónimos em F. P. demasiado
prendeu já a atenção da crítica. O certo, porém,
é que só o estudo do que ele chamou «um drama em
gente» permite, não só avaliar com justiça a
riqueza espiritual do poeta e o seu poder
criador, como ainda penetrar no sentido
subjacente de toda a sua obra - uma conquanto
diversa. Só em parte, na parte que menos
importa, os heterónimos resultam do gosto de
simular ou mistificar, do prazer da blague,
característico do Modernismo. Ou melhor: a própria simulação tem um
grave sentido, pois radica num caso psicológico
(«tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação» - explica
F. P.) e numa consequente atitude perante a
vida. Solicitado por forças divergentes, muito
sugestionável, «ondulante e vário» (fala a
Cortes-Rodrigues do seu «perigoso feitio
demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre
alheio a si próprio e sem nexo dentro de si»),
F. P. põe com severa agudeza o problema da
sinceridade, para concluir que a sinceridade
imediata é impossível, dado o hiato
intransponível entre o que somos e o que
pensamos. É o que diz, por exemplo, o primeiro
dos 35 Sonnets: «Unto our very selves we
are abridged / When we would utter to our
thought our being». e a conclusão idêntica chega
A. de Campos: «Toda a emoção verdadeira é mentira
na inteligência, pois se não dá nela. Toda a
emoção verdadeira tem portanto uma expressão
falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente».
Daí, por um lado, a permanente disponibilidade
irónica da inteligência de F. P., capaz de
argumentar com o mesmo virtuosismo por uma
doutrina ou pela doutrina oposta (é lembrar o
diálogo Pessoa-Campos); daí, por outro lado, que
tenha preferido a expressão indirecta, e não
mutiladora, de si mesmo, a sinceridade do
fingimento («Fingir é conhecer-se»), pela cisão
nos heterónimos - vozes que se completam e
ganham pleno sentido umas em função das outras -
universo interior. Aqui o artifício não é
um jogo gratuito (caso contrário F. P. seria
obviamente um exímio malabarista, não o grande
poeta que nele respeitamos), é uma forma de
sinceridade literária. «Isso é sentido na
pessoa de outro (esclarece empenhadamente
o A. em carta a Cortes-Rodrigues); é escrito dramaticamente,
mas é sincero (no meu grave sentido da palavra)
como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é
Shakespeare, mas uma criação dele». Pessoa está
nas suas personagens, incluindo entre
elas a que escreve em seu nome; sentindo
existencialmente a fluidez do eu e o absurdo
deste «inconcebível universo», afirmando ser,
«como toda a gente, uma ficção do intermezzo»,
F. P. descrê de qualquer possibilidade humana de
conhecer, o que transparece duma irónica
sentença da «Tábua bibliográfica»: «Se estas
três individualidades [dos heterónimos] são mais
ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa - é
problema metafísico que este, ausente do segredo
dos deuses, e ignorando, portanto, o que seja
realidade, nunca poderá resolver». Alheios,
talvez como ele próprio, ao que foi a verdade
humana de F. P., é na diversidade da sua
obra, na riqueza dialéctica das suas tensões e
antinomias que descobrimos a grandeza do poeta,
dividido entre o pressentimento dum além (que
ele buscou por via racional: o ocultismo), o
desalento duma inteligência inerme, incapaz de
copular a vida, e o torvelinho das forças
irracionais. Fausto malogrado, a própria
dispersão da sua obra, feita de linguagens em
liberdade, é vivo testemunho duma época de
crise, sem coesão construtiva.
Coelho,
Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA,
3.ª edição, 3.º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979
Topo
Génese
dos Heterónimos
Carta
a Adolfo Casais Monteiro
Caixa
Postal 147
Lisboa,
13 de Janeiro de 1935
Meu
prezado Camarada:
Muito
agradeço a sua carta, a que vou responder
imediata e integralmente. Antes de,
propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa
de lhe escrever neste papel de cópia.
Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso
arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau
papel que o adiamento.
Em
primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu
veria «outras razões» em qualquer cousa que
escrevesse, discordando a meu respeito. Sou um
dos poucos poetas portugueses que não decretou a
sua própria infalibilidade, nem toma qualquer
crítica, que se lhe faça, como um acto de
lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam
os meus defeitos mentais, é nula em mim a
tendência para a mania da perseguição. À parte
isso, conheço já suficientemente a sua
independência mental, que, se me é permitido
dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus
ser Mestre ou Chefe - Mestre, porque não sei
ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe,
porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe,
pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que
dizer a meu respeito. Não procuro caves nos
andares nobres.
Concordo
absolutamente consigo em que não foi feliz a
estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da
natureza da «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista
místico, um sebastianista racional. Mas sou, à
parte isso, e até em contradição com isso,
muitas outras cousas. E essas cousas, pela mesma
natureza do livro, a «Mensagem»
não as inclui.
Comecei
por esse livro as minhas publicações pela
simples razão de que foi o primeiro livro que
consegui, não sei porquê, ter organizado e
pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o
publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os
olhos postos no prémio possível do Secretariado,
embora nisso não houvesse pecado intelectual de
maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e
eu julgava, até, que não poderia concorrer ao
prémio, pois ignorava que o prazo para entrega
dos livros, que primitivamente fora até fim de
Julho, fora alargado até ao fim de Outubro.
Como, porém, em fim de Outubro já havia
exemplares prontos da «Mensagem»,
fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O
livro estava exactamente nas condições
(nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando
às vezes pensava na ordem de uma futura
publicação de obras minhas, nunca um livro do
género de «Mensagem»
figurava em número um. Hesitava entre se deveria
começar por um livro de versos grande - um livro
de umas 350 páginas -, englobando as várias
subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo,
ou se deveria abrir com uma novela policiária,
que ainda não consegui completar.
Concordo
consigo, disse, em que não foi feliz a estreia,
que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem».
Mas concordo com os factos que foi a melhor
estreia que eu poderia fazer. Precisamente
porque essa faceta - em certo modo secundária -
da minha personalidade não tinha nunca sido
suficientemente manifestada nas minhas
colaborações em revistas (excepto no caso de Mar
Português,
parte deste mesmo livro) - precisamente por isso
convinha que ela aparecesse, e que aparecesse
agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o
premeditasse (sou incapaz de premeditação
prática), com um dos momentos críticos (no
sentido original da palavra) da remodelação do
subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se
completou por conversa, fora exactamente
talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande
Arquitecto.
(Interrompo.
Não estou doido nem bêbado. Estou, porém,
escrevendo directamente, tão depressa quanto a
máquina mo permite, e vou-me servindo das
expressões que me ocorrem, sem olhar a que
literatura haja nelas. Suponha - e fará bem em
supor, porque é verdade - que estou simplesmente
falando consigo.)
Respondo
agora directamente às suas três perguntas: (1)
plano futuro da publicação das minhas obras, (2)
génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.
Feita,
nas condições que lhe indiquei, a publicação da
«Mensagem»,
que é uma manifestação unilateral, tenciono
prosseguir da seguinte maneira. Estou agora
completando uma versão inteiramente remodelada
do Banqueiro Anarquista; essa deve estar
pronta em breve e conto, desde que esteja
pronta, publicá-la imediatamente. Se assim
fizer, traduzo imediatamente esse escrito para
inglês, e vou ver se o posso publicar em
Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem
probabilidades europeias. (Não tome esta frase
no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois - e
agora respondo propriamente à sua pergunta, que
se reporta a poesia - tenciono, durante o verão,
reunir o tal grande volume dos poemas pequenos
do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo
publicar em fins do ano em que estamos. Será
esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é
esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse,
então, será as facetas todas, excepto a
nacionalista, que «Mensagem»
já manifestou.
Referi-me,
como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada
do Caeiro, do Ricardo Reis
ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido
de publicar, excepto quando (ver mais acima) me
for dado o Prémio Nobel. E contudo - penso-o com
tristeza - pus no Caeiro
todo o meu poder de despersonalização dramática,
pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental,
vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim
nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro,
que todos estes têm que ser, na prática da
publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa,
impuro e simples!
Creio
que respondo à sua primeira pergunta.
Se fui
omisso, diga em quê. Se puder responder,
responderei. Mais planos não tenho, por
enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão
os meus planos, é caso para dizer, Graças a
Deus!
Passo
agora a responder à sua pergunta sobre a génese
dos meus heterónimos. Vou ver se consigo
responder-lhe completamente.
Começo
pela parte psiquiátrica. A origem dos meus
heterónimos é o fundo traço de histeria que
existe em mim. Não sei se sou simplesmente
histérico, se sou, mais propriamente, um
histero-neurasténico. Tendo para esta segunda
hipótese, porque em mim fenómenos de abulia que
a histeria, propriamente dita, não enquadra no
registo dos seus sintomas. Seja como for, a
origem mental dos meus heterónimos está na minha
tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. Estes
fenómenos - felizmente para mim e para os outros
- mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se
manifestam na minha vida prática, exterior e de
contacto com outros; fazem explosão para dentro
e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher -
na mulher os fenómenos histéricos rompem em
ataques e cousas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em
mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou
homem - e nos homens a histeria assume
principalmente aspectos mentais; assim tudo
acaba em silêncio e poesia...
Isto
explica, tant bien que mal, a origem
orgânica do meu heteronimismo. Vou agora
fazer-lhe a história directa dos meus
heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e
de alguns dos quais já me não lembro - os que
jazem perdidos no passado remoto da minha
infância quase esquecida.
Desde
criança tive a tendência para criar em meu torno
um mundo fictício, de me cercar de amigos e
conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem
entendido, se realmente não existiram, ou se sou
eu que não existo. Nestas cousas, como em todas,
não devemos ser dogmáticos.) Desde que me
conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me
lembro de precisar mentalmente, em figura,
movimentos, carácter e história, várias figuras
irreais que eram para mim tão visíveis e minhas
como as cousas daquilo a que chamamos,
porventura abusivamente, a vida real. Esta
tendência, que me vem desde que me lembro de ser
um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um
pouco o tipo de música com que me encanta, mas
não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro,
assim, o que me parece ter sido o meu primeiro
heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido
inexistente - um certo Chevalier de Pas
dos meus seis anos, por quem escrevia cartas
dele a mim mesmo, e cuja figura, não
inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte
da minha afeição que confina com a saudade.
Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra
figura, cujo nome já me não ocorre mas que o
tinha estrangeiro também, que era, não sei em
quê, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que
acontecem a todas as crianças? Sem dúvida - ou
talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo
ainda, pois que as relembro de tal modo que é
mister um esforço para me fazer saber que não
foram realidades.
Esta
tendência para criar em torno de mim um outro
mundo, igual a este mas com outra gente, nunca
me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre
as quais esta, sucedida já em maior idade.
Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente
alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou,
ou a quem suponho que sou. Dizia-o,
imediatamente, espontaneamente, como sendo de
certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja
história acrescentava, e cuja figura - cara,
estatura, traje e gesto - imediatamente eu via
diante de mim. E assim arranjei, e propaguei,
vários amigos e conhecidos que nunca existiram,
mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de
distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço,
sinto, vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu
começando a falar - e escrever à máquina é para
mim falar -, custa-me a encontrar o travão.
Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou
entrar na génese dos meus heterónimos
literários, que é, afinal, o que V. quer saber.
Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a
história da mãe que os deu à luz.)
Aí por
1912, salvo erro (que nunca pode ser grande),
veio-me à ideia escrever uns poemas de índole
pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular
(não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade),
e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo,
numa penumbra mal urdida, um vago retrato da
pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha
nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e
meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de
fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar
um poeta bucólico, de espécie complicada, e
apresentar-lho, já me não lembro como, em
qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a
elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em
que finalmente desistira - foi em 8 de Março de
1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e,
tomando um papel, comecei a escrever, de pé,
como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta
e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase
cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia
triunfal da minha vida, e nunca poderei ter
outro assim. Abri com o título, O Guardador
de Rebanhos. E o que se seguiu foi o
aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde
logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:
aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a
sensação imediata que tive. E tanto assim que,
escritos que foram esses trinta e tantos poemas,
imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a
fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de
Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente...
Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro
a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a
reacção de Fernando Pessoa contra a sua
inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido
Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir -
instintiva e subconscientemente - uns
discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis
latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si
mesmo, porque nessa altura já o via. E,
de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis,
surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num
jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção
nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o
nome que tem.
Criei,
então, uma coterie inexistente. Fixei
aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as
influências, conheci as amizades, ouvi, dentro
de mim, as discussões e as divergências de
critérios, e em tudo isto me parece que fui eu,
criador de tudo, o menos que ali houve. Parece
que tudo se passou independentemente de mim. E
parece que assim ainda se passa. Se algum dia
puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis
e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como
eu não sou nada na matéria.
Quando
foi da publicação de Orpheu,
foi preciso, à última hora, arranjar qualquer
cousa para completar o número de páginas. Sugeri
então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema
«antigo» do Álvaro de Campos - um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e
ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário,
em que tentei dar todas as tendências latentes
do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois
reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de
contacto com o seu mestre Caeiro.
Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu
mais que fazer, pelo duplo poder de
despersonalização que tive de desenvolver. Mas,
enfim, creio que não saiu mal, e que dá o Álvaro em
botão...
Creio
que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos.
Se há porém qualquer ponto em que precisa de um
esclarecimento mais lúcido - estou escrevendo
depressa, e quando escrevo depressa não sou
muito lúcido -, diga, que de bom grado lho
darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e
histérico: ao escrever certos passos das Notas
para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É
para que saiba com quem está lidando, meu caro
Casais Monteiro!
Mais
uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo
diante de mim, no espaço incolor mas real do
sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis
nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas
tenho-os algures), no Porto, é médico e está
presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915;
nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua
vida no campo. Não teve profissão nem educação
quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro
de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira
Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para
essa hora, está certo). Este, como sabe, é
engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está
aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era
de estatura média, e, embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil
como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do
que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se.
Cara rapada todos - o Caeiro
louro sem cor, olhos azuis; Reis de um
vago moreno mate; Campos
entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu
português, cabelo, porém, liso e normalmente
apartado ao lado, monóculo. Caeiro,
como disse, não teve mais educação que quase
nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe
cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa,
vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com
uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis,
educado num colégio de jesuítas, é, como disse,
médico; vive no Brasil desde 1919, pois se
expatriou espontaneamente por ser monárquico. É
um latinista por educação alheia, e um
semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval.
Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde
resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um
tio beirão que era padre.
Como
escrevo em nome desses três?... Caeiro,
por pura e inesperada inspiração, sem saber ou
sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis,
depois de uma deliberação abstracta, que
subitamente se concretiza numa ode. Campos,
quando sinto um súbito impulso para escrever e
não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo
Soares, que aliás em muitas cousas se parece com
Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou
sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas
as qualidades de raciocínio e de inibição;
aquela prosa é um constante devaneio. É um
semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da
minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu
menos o raciocínio e a afectividade. A prosa,
salvo o que o raciocínio dá de ténue à
minha, é igual a esta, e o português
perfeitamente igual; ao passo que Caeiro
escrevia mal o português, Campos
razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu
próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor
do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa
de Reis - ainda inédita - ou de Campos. A
simulação é mais fácil, até porque é mais
espontânea, em verso.)
Nesta
altura estará o Casais Monteiro pensando que má
sorte o fez cair, por leitura, em meio de um
manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é
a incoerência com que o tenho escrito. Repito,
porém: escrevo como se estivesse falando
consigo, para que possa escrever imediatamente.
Não sendo assim, passariam meses sem eu
conseguir escrever.1
Falta
responder à sua pergunta quanto ao ocultismo
(escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no
ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem
clara; compreendo porém a intenção e a ela
respondo. Creio na existência de mundos
superiores ao nosso e de habitantes desses
mundos, em experiências de diversos graus de
espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a
um Ente Supremo, que presumivelmente criou este
mundo. Pode ser que haja outros Entes,
igualmente Supremos, que hajam criado outros
universos, e que esses universos coexistam com o
nosso, interpenetradamente ou não. Por estas
razões, e ainda outras, a Ordem Externa do
Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto
a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus»,
dadas as suas implicações teológicas e
populares, e prefere dizer«Grande Arquitecto do
Universo», expressão que deixa em branco o
problema de se Ele é Criador, ou simples
Governador do mundo. Dadas estas escalas de
seres, não creio na comunicação directa com
Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual,
poderemos ir comunicando com seres cada vez mais
altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho
mágico (incluindo práticas como as do
espiritismo, intelectualmente ao nível da
bruxaria, que é magia também), caminho esse
extremamente perigoso, em todos os sentidos; o
caminho místico, que não tem propriamente
perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama
o caminho alquímico, o mais difícil e o mais
perfeito de todos, porque envolve uma
transmutação da própria personalidade que a prepara,
sem grandes riscos, antes com defesas que os
outros caminhos não têm. Quanto à «iniciação» ou
não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se
responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem
Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu
poema Eros e Psique, de um trecho
(traduzido, pois o Ritual é em latim) do
Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de
Portugal, indica simplesmente - o que é facto -
que me foi permitido folhear Rituais dos três
primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em
dormência desde cerca de 1888.2 Se não estivesse em
dormência, eu não citaria o trecho do Ritual,
pois se não devem citar (indicando a origem)
trechos de Rituais que estão em trabalho.3
Creio
assim, meu querido camarada, ter respondido,
ainda com certas incoerências, às suas
perguntas. Se há outras que deseja saber, não
hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e
o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso
me desculpará desde já, é não responder tão
depressa.
Abraça-o
o camarada que muito o estima admira.
Fernando Pessoa
P. S.
(!!!)
14-1-1935
Além da
cópia que normalmente tiro para mim, quando
escrevo à máquina, de qualquer carta que envolve
explicações da ordem das que esta contém, tirei
uma cópia suplementar, tanto para o caso de esta
carta se extraviar, como para o de,
possivelmente, ser-lhe precisa para qualquer
outro fim. Essa cópia está sempre às suas
ordens.
Outra
cousa. Pode ser que, para qualquer estudo seu,
ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise,
no futuro, de citar qualquer passo desta carta.
Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com
uma reserva, e peço-lhe licença para lha
acentuar. O parágrafo sobre o ocultismo, na
página 7 da minha carta, não pode ser
reproduzido em letra impressa. Desejando
responder o mais claramente possível à sua
pergunta, saí propositadamente um pouco fora dos
limites que são naturais nesta matéria.
Trata-se
de uma carta particular, e por isso não hesitei
em fazê-lo. Nada obsta a que leia esse parágrafo
a quem quiser, desde que essa outra pessoa
obedeça também ao critério de não reproduzir em
letra impressa o que nesse parágrafo vai
escrito. Creio que posso contar consigo para tal
fim negativo.
Continuo
em dívida para consigo da carta ultradevida
sobre os seus últimos livros. Mantenho o que
creio que lhe disse na minha carta anterior:
quando agora (creio que será só em Fevereiro)
passar alguns dias no Estoril, porei essa
correspondência em ordem, pois estou em dívida,
nessa matéria, não só para consigo, mas também
com várias outras pessoas.
Ocorre-me
perguntar de novo uma cousa que já lhe perguntei
e a que me não respondeu: recebeu os meus
folhetos de versos em inglês, que há tempos lhe
enviei?
«Para
meu governo», como se diz em linguagem
comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais
depressa possível que recebeu esta carta.
Obrigado.
Fernando Pessoa
1 - Esta carta, tal
como foi inserida por Adolfo Casais Monteiro na
revista Presença, n.º 9, Junho de 1937,
e mais tarde por Jorge de Sena nas Páginas
de Doutrina Estética, obr. cit., terminava
aqui, em obediência ao Post Scriptum de
Fernando Pessoa, que pedia a não publicação do
trecho subsequente devido aos motivos que
apontava e que adiante se reproduzem. Contudo,
com autorização de Casais Monteiro, João Gaspar
Simões incuiu o referido trecho ocultista na sua
Vida e Obra de Fernando Pessoa, obr.
cit., pp. 546 e 547 (2.ª ed.). Uma vez que o
referido trecho já é conhecido, podemos pois
transcrever aqui a carta na íntegra, bem como o
P. S., que só figurava em Apêndice da
antologia de Sena.
2 - A epígrafe de Eros
e Psique é como se sabe a seguinte: «...E
assim vedes, meu Irmão, que as verdades que
vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas
que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor,
são, ainda que opostas, a mesma verdade».
3 - Termina aqui o
texto em questão, só conhecido depois do livro
de J. Gaspar Simões.
Pessoa, Fernando, «Textos de Carácter
Pessoal / Cartas Escolhidas» in Obras de Fernando
Pessoa,
vol. II, Lello & Irmão - Editores, Porto,
1986
Topo
Sentir
/ Pensar nos vários
Heterónimos
«Sim, todos os
meus desejos
São de estar
sentir pensando.»
F. P.
A dualidade do sentir
e do pensar, nas suas ambíguas acepções de
emoção e razão, conhecimento e
sensibilidade, manifesta-se com insistência
na poesia heteronímica, tanto ao nível do
poemodrama como do poetodrama. Pode dizer-se
que ela se situa numa das linhas de fractura
mais profundas da experiência poética de
Pessoa em relação à poesia que lhe é
anterior e anterior a Orpheu.
Não é, no entanto, na
simples presença dessa dualidade que reside
a sua ruptura mais radical. O que há de novo
em Pessoa é a superação da irredutibilidade
do sentir ao pensar, e reciprocamente. Uma
vez mais a oposição reverte numa identidade
dos dois termos, através da sua metamorfose
poético-dramática.
Assim, ao verso-chave
de Pessoa «ele mesmo», tantas vezes citado,
O que em mim sente,
'stá pensando 1,
responde,
simetricamente, este outro do poeta
«ortónimo»:
Só meu pensamento sente. 2
E nos demais
heterónimos os ecos destes versos
repercutem-se variamente:
Quanto sinto, penso 3,
sintetiza Ricardo Reis, na sua concisão lapidar, enquanto
pateticamente Álvaro de
Campos vivi a
indeterminação entre
O que eu penso ou sinto, que
nem sei qual é, ó vida
4.
Mas é em Alberto
Caeiro que a
identificação entre o pensamento e as
sensações mais naturalmente se realiza, no
próprio acto da percepção sensorial:
Penso com os olhos e com os
ouvidos
E com
as mãos e os pés
E com
o nariz e a boca.
Pensar
numa flor é vê-la e cheirá-la
E
comer um fruto é saber-lhe o sentido.5
Este ajustamento mútuo do pensar ao
sentir e do sentir ao pensar não se traduz, no
entanto, senão numa harmonia momentânea e
sempre precária de ambos os termos. Há entre
eles, ao mesmo tempo, uma tensão (uma
dramaticidade) permanente, que toma as mais
diversas formas de coincidência e
incoincidência, desde a diluição um no outro
até à sua irredutível exterioridade.
Se, para Pessoa «ele mesmo»,
Basta
pensar em sentir
Para
sentir em pensar 6,
numa reversibilidade perfeita, também
a momentos ele exclama:
Que
importa, se sentir
É não
se conhecer?7
Ou então, um instante exausto desse
esforço de ajustar o pensamento às sensações,
acaba por desalentadamente desabafar:
Cansa
sentir quando se pensa.8
Senão ainda, numa confissão de
incomodidade lúcida de si mesma:
No
mal-estar em que vivo,
No
mal pensar em que sinto,
Sou
de mim mesmo cativo,
A mim
mesmo minto.9
Mas de novo a promessa duma harmonia
possível, e como que pré-estabelecida, se lhe
apresenta:
Sereno,
acima de ti mesmo, fita
A
possibilidade erma e infinita
De
onde o real emerge inutilmente
E
cala, e só para pensares sente.10
É nesta alternância entre um
desacordo e um acordo absoluto que as relações
complexas do sentir e do pensar dramaticamente
se entretecem. Assim se forma, pouco a pouco,
uma rede cerrada de correspondências, em que
os vários fios da linguagem poética vão e vêm
de heterónimo para heterónimo.
Só na linguagem poética, com efeito,
pode manifestar-se, simultaneamente, essa
adequação e inadequação da razão e da
sensibilidade. Daí esta exasperada reflexão de
Fausto acerca da importância da linguagem
comum precisamente para a comunicação do
sentir e do pensar:
Desespero
ao ouvir-me assim dizer
Isso
que n'alma tenho. Sinto-o, sinto-o,
E só
falando não me compreendo.11
Alberto Caeiro
põe em termos diferentes, mas afinal
idênticos, o mesmo problema da linguagem como
ponte entre as sensações e o pensamento:
Procuro
dizer o que sinto
Sem
pensar em que o sinto.
Procuro
encostar as palavras à ideia
E não
precisar dum corredor
Do
pensamento para as palavras.12
Os dois primeiros versos desta
estrofe revelam-nos o desejo do poeta de
colmatar a brecha, a distância que vai da
sensação às palavras, sem passar pelo istmo do
pensamento. Mas embora o seu sentido aparente
seja o da excrescência do pensar perante a
pura expressão do sentir, os versos seguintes
logo explicitam a verdadeira significação que
lhes está pressuposta: o poeta não busca senão
«encostar as palavras à ideia», sem
necessidade de um «corredor do pensamento para
as palavras». Não é pois de uma ablação do
pensamento que se trata, mas da sua
identificação íntima, na linguagem poética,
com a sensibilidade: a «ideia» é finalmente,
no poema, sinónimo de sensação, o que está
aliás perfeitamente em correspondência com a
concepção do conhecimento subjacente à poética
de Caeiro.
Esta obsessão do preenchimento desse
hiato entre as sensações, o pensamento e as
palavras, que aflora a cada passo nos poemas
dos heterónimos, é ressentida por uma das
Veladoras de O Marinheiro como a
experiência do limite e ao mesmo tempo da
necessidade de toda a linguagem: «Não falemos
mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis
para falar... Dói-me o intervalo que há entre
o que pensais e o que dizeis... A minha
consciência bóia à tona da sonolência
apavorada dos meus sentidos pela minha pele...
Não sei o que é isto, mas é o que sinto...
Preciso dizer frases confusas, um pouco
longas, que custam a dizer... Não sentis tudo
isto como uma aranha enorme que nos tece de
alma a alma uma teia negra que nos prende?»13
A metáfora da aranha tecendo a sua
teia é aqui a do poeta criando a sua
linguagem, em que apenas pode captar como
frágeis sinais as sensações e os pensamentos,
que os múltiplos filamentos vão
retransmitindo. É esse trabalho de Penélope
que cada heterónimo a seu modo poeticamente
prossegue.
Como vimos, Alberto Caeiro
começa por buscar a identificação do sentir e
do pensar num aparente exorcismo deste último:
Penso
nisto, não como quem pensa, mas como
quem respira.14
Ou mais subtilmente ainda:
Vou
onde o vento me leva e não me
Sinto
pensar.15
Não se sentir pensar não será, no
entanto, equivalente no fundo a pensar
sentindo, numa consubstanciação plena em que o
desdobramento da consciência e das sensações
inteiramente se anula? É o que noutro poema
Caeiro, num dos seus breves devaneios de
«pastor amoroso»,
mais claramente sugere:
E eu
quase me esqueço de sentir só de pensar
nela.16
Na verdade, o pensamento, mesmo
renegado, acaba por reaparecer,
inevitavelmente, assimilado à consciência
sensível: não pensa Caeiro, no
fim de contas, com os próprios órgãos dos
sentidos? Veremos mais adiante como, em certos
poemas, o «mestre» viola explicitamente a sua
poética das «sensações das coisas tais como
são», deixando-se contaminar pela «doença» do
pensamento. Ao encontrar para isso uma
explicação de ordem patológica,
Caeiro não faz senão reconhecer que se
trata da paisagem nocturna da sua alma, a qual
continua a ser pura e simplesmente, nas suas
precisas palavras, «a mesma ao contrário».17
Sentir e pensar são assim, uma vez mais, o
verso e o reverso dessa identidade dos opostos
que caracteriza a linguagem poética de Pessoa.
Para Álvaro de
Campos, as sensações, levadas ao seu
excesso, desembocam também no pensamento, como
se este não fosse mais do que um limite para o
qual elas tendem:
Como
à força de sentir, fico só a pensar.18
O que um outro verso seu
negativamente confirma:
Senti
de mais para poder continuar a sentir.19
Veremos, ao estudar a poesia deste
heterónimo, como uma das características
essenciais da sua linguagem poética é
justamente a expressão cumulativa e
desbordante do sentir, ou, como Campos
escreve na «Ode Triunfal»,
um
excesso de expressão de todas as
sensações.20
Tal é o fundamento do
«Sensacionismo», de que ele é o principal
porta-voz teórico.
Mas se a exacerbação da sensibilidade
a leva ao seu prolongamento no pensar, este
não pode deixar de a reconduzir, por sua vez,
ao sentir:
Quero
pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O
sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É
tudo uma coisa como qualquer coisa que
já vi.21
E a circularidade do processo
recomeça sempre e sem fim: a contiguidade das
sensações e do pensamento é inerente à
essência do que Campos
chama a sua «metafísica»:
Não
há sossego de pensar nas propriedades
das coisas.
Nos
destinos que não desvendo.
Na
minha própria metafísica, que tenho
porque penso e sinto.22
Importa a este propósito salientar
que Campos,
num dos seus textos filosóficos, observa que
mesmo «o abstracto e o absoluto podem ser
sentidos e não só pensados, pela simples razão
de que tudo pode ser, e é, sentido» 23.
O heterónimo em que o equilíbrio
entre o sentir e o pensar poderia parecer mais
perfeitamente estabelecer-se seria Ricardo Reis, já que, como vimos, ele diz
pensar quanto sente. Mas importa atentar
numa subtil e importante distinção de Reis
entre a sensação e o seu objecto, que são
para ele independentes:
O que
sentimos, não o que é sentido.
É o
que temos.24
O pensamento aparece-lhe, pois,
homologamente, como alheio a esse mesmo
objecto da sensação:
Tudo,
desde ermos astros afastados,
A nós
nos dá o mundo.
E a
tudo, alheios, nos acrescentamos.
Pensando
e interpretando.25
Se há, finalmente, como que um acordo
mútuo (e diríamos tácito) entre sentir e
pensar, ele é feito de uma simples
coexistência, em exterioridade a um comum
objecto. Só a presença superior de um destino,
sobrepondo-se-lhes, vem harmonizá-los na sua
fatal inanidade, como nestes definitivos
versos de uma ode de Reis:
Assim
no mundo acima do que sinto
Um
vento faz a vida, e a deixa, e a toma
E
nada tem sentido - nem a alma
Com
que penso sozinho.26
Percorrida assim a trama das relações
temáticas do germe sentir/pensar nos vários
heterónimos, resta ainda ver como ela encontra
uma expressão diversificada na linguagem
poética de cada um deles. Com efeito, certas
coincidências de superfície ao nível dos
significados são por vezes enganadoras quanto
ao sentido profundo dos pontos de contacto
entre um e outro heterónimo 27.
Para tomar um exemplo frisante, entre dois
sintagmas poéticos como «o que em mim sente
'stá pensando» (de Fernando Pessoa «ele
mesmo») e «quanto sinto, penso» (de Ricardo Reis) há, para além de uma aparente
identidade semântica, uma heterogeneidade da
estrutura linguística do significante, que
nem por ser mais evidente ao nível da
expressão deixa de traduzir-se numa
diferença quanto às relações dos
significados sentir/pensar. Com efeito,
enquanto em Fernando Pessoa «ele mesmo»
estamos perante a sugestão de uma
simultaneidade, ou melhor, de uma fusão
íntima dos dois planos - sensorial e
racional - da consciência, que se corporiza
no ritmo ondulatório do verso, já em Ricardo Reis assistimos a uma simples
articulação abstracta de conceitos, que
corresponde à relação de exterioridade
entre os dois termos por nós constatada na
sua poesia. Sentir pensando não é o mesmo
que pensar-se o que se sente: no primeiro
caso, a consubstanciação é plena e
imediata, como a própria intransitividade
de ambos os verbos o revela; no segundo, a
sua transitividade implica que um deles
seja o complemento do outro, tornando-se
assim o seu objecto. Por outro lado, à
fluidez da expressão poética de pessoa
«ele mesmo» contrapõe-se a condensação
verbal de Reis, características que, como a
seguir mostraremos, ao analisar a sua
inserção no poetodrama, definem a
originalidade das suas linguagens.
Nelas veremos, sintagmaticamente,
proliferar a germinação das oposições
paradigmáticas que temos vindo a estudar,
prolongadas em todas as outras - não
analisadas aqui em detalhe - que delas
decorrem. Tal será a forma de existência
poética própria a cada heterónimo.
Seabra, José Augusto, Fernando
Pessoa ou o Poetodrama, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1988
1
- Pessoa, p. 75. (Obras Completas
de Fernando Pessoa, colecção «Poesia»,
Ed. Ática, Lisboa: I - Poesias de
Fernando Pessoa)
2 - Idem,
p. 81.
3
- Reis, p. 238 (mesma colecção,
IV - Odes de Ricardo Reis).
4
- Campos, p. 301 (mesma colecção, II
- Poesias de Álvaro de campos).
5 - Caeiro, p. 148 (mesma
colecção, III - Poemas de Alberto Caeiro).
6 - Pessoa, p. 543.
7 - Idem, p. 100.
8 - Idem, p. 96.
9 - Idem, p. 109.
10 - Idem, p 486.
11 - «Primeiro Fausto», «Segundo Tema»,
in O. P., p. 440.
12 - Caeiro, p. 164.
13 - «O Marinheiro», in O.
P., p. 419.
14 - Caeiro, p. 160.
15 - Idem, p. 184.
16 - Idem, p. 169.
17 - Idem, p. 150.
18 - Campos, p. 356.
19 - Idem, p. 285.
20 - Idem, p. 260.
21 - Idem, p. 316.
22 - Idem, p. 323.
23 - «O que é a Metafísica?», Athena,
n.º 2, citado in Textos Filosóficos,
I, p. 15.
24 - Reis, p. 233.
25 - Idem, p. 236.
26 - Idem, p. 231.
27 - Nesta medida nos parece demasiado
esquemática uma formalização das relações
entre os heterónimos baseada na simples
aproximação das unidades temáticas, como a que
propõe Mário Sacramento ao pretender
demonstrar a respectiva concordância através
de um quadro exemplificativo dos seus
principais pontos de contacto, Fernando
Pessoa, Poeta da Hora Absurda, Lisboa,
1959. Nota F, p. 153.
Topo
O
Sensacionismo nos
vários Heterónimos
Álvaro de
Campos - o que é bastante curioso -
encontra-se no extremo oposto, inteiramente
oposto a Ricardo Reis.
No entanto, não é menos discípulo de
Caeiro ou menos sensacionista
propriamente dito. Aceitou de
Caeiro, não o essencial e o objectivo,
mas o aspecto deduzível e subjectivo da sua
atitude. A sensação é tudo, afirma
Caeiro, e o pensamento é uma doença. Por
sensação entende Caeiro a
sensação das coisas tais como são, sem
acrescentar quaisquer elementos do pensamento
pessoal, convenção, sentimento ou qualquer
outro lugar da alma. Para Campos, a
sensação é tudo, sim, mas não necessariamente
a sensação das coisas como são, antes das
coisas conforme sentidas. De modo que vê a
sensação subjectivamente e envida todos os
seus esforços, uma vez que assim pensa não
para desenvolver em si a sensação das coisas
como são, mas toda a casta de sensações de
coisas, e até da mesma coisa. Sentir é tudo: é
lógico concluir que o melhor é sentir toda a
casta de coisas de todas as maneiras, ou, como
diz o próprio Álvaro de
Campos, “sentir tudo de todas as
maneiras”. Assim, aplica-se a sentir a cidade
na mesma medida em que sente o campo, o normal
como sente o anormal, o mal como sente o bem,
o mórbido como sente o saudável. Nunca
interroga, sente. É o filho indisciplinado da
sensação. Caeiro tem
uma disciplina: as coisas devem ser sentidas
tais como são. Ricardo Reis
tem outra disciplina diferente: as coisas
devem ser sentidas, não só como são, mas
também de modo a integrarem-se num certo ideal
de medida e regras clássicas. Em Álvaro de
Campos, as coisas devem ser simplesmente
sentidas.
Mas a origem
comum destes três aspectos tão diferentes da
mesma teoria é patente e manifesta.
Fernando Pessoa
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