Romagem
ao Espírito de Antero
por
Manuel
Maria
Artigo publicado no NOTÍCIAS DE
GONDOMAR de 30 de outubro de 1999
No dia em que este
número do Notícias de Gondomar
chegar às mãos da maioria dos seus leitores,
já teremos cumprido, uma vez mais, o ritual da
romagem aos cemitérios em memória dos que nos
são queridos. E, quer queiramos, quer não,
esta data acaba sempre por ser, em maior ou
menor grau, um motivo de profunda reflexão, a
reflexão sobre o insondável mistério que é o
absurdo da morte. Tal facto trouxe-me à
memória um vulto enorme da Literatura
Portuguesa, dos maiores entre os maiores, e um
dos três mestres de Fernando Pessoa, para além
de Alberto Caeiro, um dos seus heterónimos. «É mestre quem tem de ensinar...»,
diz Pessoa, e Antero de Quental «ensinou
a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade
de que ser imbecil não é indispensável a um
poeta.»
Nascido a 18
de abril de 1842, em Ponta Delgada, nos
Açores, Antero recebeu uma esmerada educação
religiosa, ao ponto de ter planeado tornar-se
sacerdote, o que, a verificar-se, não seria
caso único na família. Diz-se, por exemplo,
que, aos 12 anos já se extasiava com a poesia
da Harpa do Crente, de
Alexandre Herculano, uma poesia profundamente
mística.
Aos 16 anos,
porém, estava matriculado na Universidade de
Coimbra, aonde chegavam as influências de
vultos como Darwin, Proudhon, Marx, Michelet,
Taine, Balzac, Flaubert, Zola, entre outros.
Deste modo, não admira que, após a sua saída
de S. Miguel, em carta autobiográfica, registe
a seguinte confissão: «Varrida
num instante toda a minha educação católica
e tradicional, caí num estado de dúvida e
incerteza, tanto mais pungente quanto,
espírito naturalmente religioso, tinha
nascido para crer placidamente e obedecer
sem esforço a uma regra reconhecida.»
É, pois,
este estado pungente de dúvida e de incerteza
que irá determinar a sua poesia ao longo da
sua vida, independentemente de alguns
estudiosos, nomeadamente contemporâneos seus,
como é o caso de Oliveira Martins, pretenderem
definir diferentes períodos de produção
literária.
Depois de
ter afirmado, aquando da publicação das Odes Modernas, que «A
Poesia moderna é a voz da Revolução», a
sua obra poética ganha alcance em temas como a
Justiça, a Fraternidade, o Amor, a Solidão,
Deus, a Morte e o Nada, o que revela, à
evidência, as suas verdadeiras preocupações.
A par dos
que defendem a estratificação da sua obra de
acordo com diferentes períodos da sua vida, há
também quem afirme estarmos diante de um
espírito em permanente convulsão, no qual já
se sente fermentar a gestação duma heteronímia
não declarada, que apenas viria a ganhar
corpo, tal como a conhecemos, em Fernando
Pessoa.
Não admira
que o protagonista da célebre Questão
Coimbrã, na generosidade da sua
juventude e no espírito vanguardista das Odes Modernas, se dirigisse aos
poetas do seu tempo, incitando-os ao combate
em nome de valores como o Amor, a Fraternidade
e a Justiça, que, no fundo, alimentavam o seu
sonho de mudar o mundo: Tu que
dormes, espírito sereno / [...] / [...] / Longe da luta e do fragor
terreno, / / Acorda! É tempo! [...]
/ [...]
/ [...]
/ Um mundo novo espera só um aceno... / /
Escuta! É a grande voz das multidões! / São
teus irmãos, que se erguem! São canções... /
Mas de guerra... e são vozes de rebate! / /
Ergue-te, pois, soldado do Futuro, / E dos
raios de luz do sonho puro, / Sonhador, faze
espada de combate! [i]
Num outro
soneto, depois de falar «Dum Deus
que luta, poderoso e inculto» e que se
manifesta nas florestas, na serra, no espaço
constelado, no mar, estabelece o contraste com
o que se verifica nas «negras cidades»,
naquilo que me parece ser clara alusão às
consequências da Revolução Industrial: «Mas nas negras cidades, onde solta
/ Se ergue, de sangue mádida, a revolta, /
Como incêndio que um vento bravo atiça, /
/Há mais alta missão, mais alta glória: / O
combater, à grande luz da história, / Os
combates eternos da Justiça!» [ii]
Porém, a
cruel realidade da vida desvanece tamanho
altruísmo e o herói vacila, evidenciando um
espírito cada vez menos sereno e
comportando-se como barco à deriva em mar
revolto e tempestuoso, em busca desesperada
dum seguro porto de abrigo. Se, num soneto,
por exemplo, faz a apologia da luz, num outro,
embrulha-se na proteção da noite: «Amem
a noite os magros crapulosos, / e os que
sonham com virgens impossíveis, / E os que
se inclinam, mudos e impassíveis, / À borda
dos abismos silenciosos... / / [...] / / Eu amarei a santa madrugada, /
E o meio-dia, em vida refervendo, / E a
tarde rumorosa e repousada. / / Viva e
trabalhe em plena luz: depois, / Seja-me
dado ainda ver, morrendo, / O claro Sol,
amigo dos heróis!» [iii]
«Noite,
vão para ti meus pensamentos, / Quando olho
e vejo, à luz cruel do dia, / Tanto estéril
lutar, tanta agonia, / E inúteis tantos
ásperos tormentos...» [iv]
É inegável
que é já o reflexo do desalento que
manifestará em muitos outros poemas, de que é
exemplo paradigmático O
Palácio da Ventura, um soneto em
que podemos assistir a uma espécie de balanço
introspetivo da sua vida: «Sonho
que sou um cavaleiro andante / Por desertos,
por sóis, por noite escura. / Paladino do
amor, busco anelante / O palácio encantado
da Ventura!»
Apesar das
adversidades anunciadas, de forma
eloquentemente metafórica, no segundo verso,
este paladino do amor (universal), procura,
ansiosamente, o palácio da Ventura, isto é,
tudo o que possa simbolizar o seu sossego, a
sua tranquilidade, no fundo, a felicidade a
que todo o ser humano aspira por direito de
nascença. Todavia, antevê-se já a frustração
final deste cavaleiro. É que se trata de um
cavaleiro que se não afirma como sendo, mas
como sonhando que é, e, como se não bastasse,
o quarto verso aponta para um objeto de busca
que só ganha forma no mundo a que pertence, o
mundo feérico e onírico, o mundo da fantasia.
«Mas
já desmaio, exausto e vacilante, / Quebrada
a espada já, rota a armadura... / E eis que
súbito o avisto, fulgurante / Na sua pompa e
aérea formosura!»
O desafio
parece inumano, por isso não é de estranhar a
tibieza manifestada nos dois primeiros versos
desta segunda quadra. É apenas um momento mais
de desalento, como tantos da sua vida.
Entretanto, parece avistar, lá longe, o objeto
da sua busca, uma espécie de luzinha no fundo
do túnel, fazendo renascer a esperança. Mas,
tal como acontece aos beduínos do deserto
(elemento apontado já na primeira quadra),
constata-se que tudo não vai passar duma mera
miragem, fruto do seu ardente desejo, fruto
duma ânsia desmedida: «Com
grandes golpes bato à porta e brado: / Eu
sou o Vagabundo, o Deserdado... / Abri-vos,
portas d'ouro, ante meus ais! / / Abrem-se
as portas d'ouro, com fragor...» E
enquanto as portas se abrem, parecerá
infindável esse momento de enorme expectativa:
é fácil adivinhar a ansiedade do cavaleiro que
quer ver banidos para sempre os seus
desesperos, os seus sofrimentos, as suas
angústias. «Mas dentro encontro
só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão - e nada mais!»
Não espanta,
por isso, que um espírito, num estado de alma
como este, procure, desesperadamente, a
tranquilidade final e absoluta - absoluto que,
no fundo, terá sido a grande causa de toda a
sua angústia existencial: «E o
homem porque vaga desolado / E em vão busca
certeza que o conforte? / / Mas, na pompa de
imenso funeral, / Muda, a noite, sinistra e
triunfal, / Passa volvendo as horas
vagarosas... / / É tudo, em torno de mim,
dúvida e luto...» [v]
Daqui ao
refúgio na morte é apenas o tempo de um ai: « - “Se esta
espada que empunho é coruscante, / (Responde
o negro cavaleiro andante) / É porque esta é
a espada da Verdade. / / Firo mas salvo...
Prostro e desbarato, / Mas consolo...
Subverto, mas resgato... / E, sendo a Morte,
sou a liberdade.”» [vi] A liberdade, sim, porque a morte
liberta-o de todo o sofrimento: «Em
mim, os Sofrimentos que não saram, / Paixão,
Dúvida e Mal, se desvanecem. / As torrentes
da Dor, que nunca param, / Como num mar em
mim desaparecem. [vii]
Não surpreende, pois, que o poeta se lhe
entregue: «Dormirei no teu seio
inalterável, / Na comunhão da paz universal,
/ Morte libertadora e inviolável! [viii]
No entanto,
reminiscências da sua cultura judaico-cristã
parecem trazer à superfície um certo complexo
de culpa, que não de pecado: «Talvez
seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar
contigo e adorar-te, / Não-ser, que és o Ser
único absoluto.»
Esta é,
talvez, a grande verdade a chegou o espírito
compungido do poeta: a morte como único
absoluto a que pode ascender a razão humana.
Num último
golpe de desespero, lança-se nas mãos da sua
derradeira e extrema aspiração, a de um Deus
no qual gostaria de acreditar: «Na
mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou
afinal meu coração. / [...] / Como criança, em lôbrega
jornada, / Que a mãe leva no colo agasalhada
/ E atravessa, sorrindo vagamente, / /
Selvas, mares, areias do deserto... / Dorme
o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão
de Deus eternamente! [ix] Mas, ainda agora, o sono não é um
sono profundo e tranquilo: [Deus] «Buscou
quem o não quis; e a mim, que o chamo, / Há
de fugir-me, como a ingrato filho? / Ó Deus,
meu pai e abrigo! Espero!... eu creio!
[x]
Será que crê? Se tal fosse verdade,
desaparecer-lhe-iam todas as dúvidas que lhe
alimentam as angústias, desapareceriam os
pesadelos de seu sono intranquilo: «Só uma vez ousei interrogá-lo: / - “Quem és (lhe
perguntei com grande abalo), / Fantasma a
quem odeio e a quem amo?” / / -
“Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos, /
Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos... /
Mas eu por mim não sei como me chamo... [xi]
Por mais que
apregoasse a conversão, creio que nunca a terá
alcançado, para infelicidade sua: «Entre
os filhos dum século maldito / Tomei também
lugar na ímpia mesa, / [...]
/ Mas um dia abalou-se-me a firmeza, /
Deu-me rebate o coração contrito! / / Erma,
cheia de tédio e de quebranto, / Rompendo os
diques ao represo pranto, / Virou-se para
Deus minha alma triste! / / Amortalhei na Fé
o pensamento, / E achei a paz na inércia e
esquecimento... / Só me falta saber se Deus
existe! [xii]
Como viver
em paz um espírito assim?
Antero de
Quental pôs termo à vida em 11 de Setembro de
1891.
[i] Antero de Quental, Sonetos,
A Um Poeta, Círculo
de Leitores;
[ii] Idem, Justitia Mater;
[iii] Idem, Mais Luz!;
[iv] Idem, Nox;
[v] Idem, Lacrimae Rerum
(Lágrimas das Coisas);
[vi] Idem, Mors Liberatrix (Morte
Libertadora);
[vii] Idem, O que diz a Morte;
[viii] Idem, O Elogio da Morte, V;
[ix] Idem, Na Mão de Deus;
[x] Idem, Salmo;
[xi] Idem, O Inconsciente;
[xii] Idem, O Convertido.
topo
Prefácio de Oliveira Martins aos
Sonetos de Antero
[...]
I
Eu
não conheço fisionomia mais difícil de
desenhar, porque nunca vi natureza mais
complexamente bem dotada. Se fosse possível
desdobrar um homem, como quem desdobra os
fios de um cabo, Antero de Quental dava alma
para uma família inteira. É sabidamente um
poeta na mais elevada expressão da palavra;
mas ao mesmo tempo é a inteligência mais
crítica, o instinto mais prático, a
sagacidade mais lúcida, que eu conheço. É um
poeta que sente, mas é um raciocínio que
pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.
Inventa e critica. Depois, por um
movimento reflexo da inteligência, dá corpo
ao que criticou, e raciocina o que imaginou.
O seu temperamento apresenta um contraste
correlativo: é meigo como uma criança,
sensitivo como uma mulher nervosa, mas
intermitentemente é duro e violento.
É
fraco, portanto? Não. A vontade, em
obediência à qual, e com esforço, se faz
colérico, fá-lo também forte - dessa força
persistente, raciocinada e na aparência
plácida, como a superfície do mar em dias de
bonança. O oceano, porém, é interiormente
agitado pelo gulf stream quente e
invisível: Também às vezes a placidez
extrema da sua face encobre ondas de aflição
que sobem até aos olhos e rebentam em
lágrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o
homem digno da humanidade.
É
destas crises que nasceram os seus versos,
porque Antero de Quental não faz
versos à maneira dos literatos: nascem-lhe,
brotam-lhe da alma como soluços e agonias.
Mas, apesar disso, é requintado e exigente
como um artista: as suas lágrimas hão de ter
o contorno de pérolas, os seus gemidos hão
de ser musicais. As faculdades artísticas
geradoras da estatuária e da sinfonia são as
que vibram na sua alma estética. A noção das
formas, das linhas e dos sons possui-a num
grau eminente: não já assim a da cor nem da
composição. Aos quadros chama painéis
com desdém, e por isso mesmo tem horror à
descrição e ao pitoresco. É artista, no que
a arte contém de mais subjetivo. A sua
poesia é escultural e hierática, e por isso
fantástica. É exclusivamente psicológica e
dantesca: não pode pintar, nem descrever:
acha isso inferior e quase indigno.
Os
seus versos são sentidos, são vividos
como nenhuns; mas o sentir e o viver deste
homem é de uma natureza especial que tem por
fronteiras físicas as paredes do seu crânio,
mas que não tem fronteiras no mundo real,
porque a sua imaginação paira librada nas
asas de uma razão especulativa para a qual
não há limites.
O
poeta é por isso um místico, e o crítico um
filósofo. O misticismo e a metafísica, o
sentimento e a razão, a sensibilidade e a
vontade, o temperamento e a inteligência,
combatem-se às vezes dilacerando-se. Eis aí
a explicação desta poesia que é o retrato
vivo do homem. O génio, esse quid
divinatório, que não é honra para nenhuma
criatura possuir, porque só nos dá
merecimento aquilo que ganhámos à força de
inteligência e de vontade; o génio, que é
uma faculdade tão acidental como a cor dos
cabelos, ou o desenho das feições; o génio,
que pode andar ligado a uma inteligência
medíocre, mas que o não anda no caso de
Antero de Quental - é o predicado particular
e a chave do enigma deste homem. O génio
pressupõe a intuição de uma verdade visceral
ou fundamental da natureza. Essa intuição,
essa aspiração absorvente, é para o nosso
poeta a síntese da verdade racional ou
positiva e do sentimento místico: uma poesia
que exprima o raciocínio, ou antes uma
filosofia onde caibam todas as suas visões.
O próprio do génio é querer realizar o
irrealizável; é ser quimérico, no sentido
crítico da palavra, quando por quimera
entendemos uma verdade essencial que não
pode todavia reduzir-se a fórmulas
compreensíveis, ou uma coisa cuja realidade
se sente, sem se poder ver.
Dos aspetos quase inesgotavelmente
variáveis desta singular fisionomia de
homem, desta mistura excecional de
pensamentos e de temperamento num mesmo
indivíduo, resulta porém um tipo de
sinceridade e de retidão mais singular
ainda, porque mais facilmente podia resultar
dela um grande cínico. É sobretudo um
estoico, sem deixar de ter bastante de
cético; é um místico, mas com uma forte dose
de ironia e humorismo; é um misantropo,
quando não é o homem do trato mais afável,
da convivência mais alegre; é um pessimista,
que todavia acha em geral tudo ótimo.
Intelectualmente é a fisionomia mais dúbia,
complexa e contraditória por vezes;
moralmente é o carácter mais inteiro e
melhor que existe. A sua inteligência
encontra-se permanentemente no estado de
alguém que, querendo ir para um sítio,
resiste por não querer ao mesmo tempo, sem
todavia ter razões bastantes para querer nem
também para não querer. O núcleo da sua
personalidade, se a encararmos pelo lado
praticamente humano, está na energia do seu
querer moral, e não na lucidez do seu
pensamento, embora tenha a pretensão de
julgar que a sua vontade obedece sempre à
sua razão. É verdade que dentro de si tem
permanentemente um espelho facetado que
representa e critica as modalidades do seu
pensamento: mas, por isso mesmo, vê ou
inventa faces de mais às coisas, e também
por vezes o cristal embacia. O que nunca
esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É
um homem fundamentalmente bom.
A complexidade do seu espírito
dá-lhe uma verdade de aptidões, singular.
[...]
A sua força é a prodigalidade com
que a natureza dotou o seu espírito; mas
essa força é uma fraqueza. Tem demasiada
imaginação para ver bem, e por outro lado o
raciocínio crítico peia-lhe os voos
luminosos da fantasia. Vê de mais para poder
ser ativo, ou não tem a energia
correspondente à sua visão. Se a tivesse,
seria verdadeiramente um assombro. A
imaginação e a razão, irredutíveis nos
cérebros humanos com as circunvoluções
limitadas que contêm, são igualmente
poderosas no seu cérebro para que qualquer
delas domine. Lutam em permanência,
procurando entender-se, combinar-se,
penetrar-se, e, no desejo quimérico da
síntese, desequilibram o homem,
atrofiando-lhe a energia ativa. Ainda assim,
felizes daqueles cuja inércia desse um livro
comparável a este!
Mas é que as suas páginas foram
escritas com sangue e lágrimas! E dói ver a
vida do mais belo espírito consumir-se em
agonias de uma alma em luta consigo mesmo! O
comum da gente, ao ler as páginas deste
volume, dirá então: Quantas catástrofes, que
desgraças, este homem sofreu! Que singular
hostilidade do Mundo para uma criatura
humana! - E todavia o Mundo nunca lhe foi
propriamente hostil, nenhuma desgraça o
acabrunhou; a sua vida tem corrido serena,
plácida, e até, para o geral da gente, em
condições de felicidade.
É que o geral da gente não sabe que
as tempestades da imaginação são as mais
duras de passar! Não há dores tão agudas
como as dores imaginárias. Não há problemas
mais difíceis do que os problemas do
pensamento, nem crises mais dolorosas do que
as crises do sentimento. As agonias
dilacerantes da morte com as ânsias do
estertor, os horrores mais inverosímeis dos
crimes monstruosos, as aflições mais
pungentes da saudade, as tristezas mais
dolorosas da solidão, as lutas do dever com
a paixão, os gritos do homem arruinado, os
ais da orfandade faminta... tudo, tudo
quanto no Mundo pode haver de doloroso,
desde a miséria até à prostituição, desde o
andrajo até ao veludo arrastado pela
imundície, desde o cardo que dilacera os pés
até ao punhal que rasga o coração: tudo isto
é menos do que a agonia de um poeta vendo
passar diante de si, em turbilhão medonho,
as lúgubres misérias do Mundo. Todas as
aflições têm o seu quê de imaginativas, e
por isso há apenas uma espécie de homens que
não sentem: são os cínicos, esses que
perderam os nervos da moralidade,
anestesiados do sentimento.
Quando se é poeta como Antero de
Quental, a imaginação exarcebada vibra como
as harpas que os gregos expunham às virações
da brisa nos ramos das árvores. Nenhum dedo
dedo lhes feria as cordas, e todavia
tocavam! Nenhuma dessas desgraças do Mundo
feriu a harpa da vida do poeta; e todavia
essa harpa geme e chora; soluça e grita,
porque pelas suas cordas passa o vento
agreste das ideias, passa o eco ululante do
egoísmo dos homens, aflitivo como os uivos
de uma alcateia de lobos famintos.
II
Esta
coleção de Sonetos
é, portanto, ao mesmo tempo biográfica e
cíclica. Conta-nos as tempestades de um
espírito; mas essas tempestades não são os
quaisquer episódios particulares de uma vida
de homem: são a refração das agonias morais
do nosso tempo, vividas, porém, na
imaginação de um poeta.
O primeiro período, de 1860-62,
contém em embrião todos os sucessivos, da
mesma forma que as flores incluem em si a
substância dos frutos. Denuncia uma alma
sensível, mas patenteia já a preocupação
metafísica na sua fase rudimentar de dúvida
teológica, e apresenta uns assomos de
tristeza que são como os farrapos de nuvens
quando velam intermitentemente o Sol,
deixando antever a tempestade para o dia
seguinte. Estes primeiros sonetos são o
balbuciar de uma criança. Romântica? De modo
nenhum. Este poeta não se filia em escolas,
não obedece a correntes literárias: a sua
poesia é exclusivamente pessoal. Sucedia,
porém, que nesse tempo já os nossos bardos
classicamente românticos tinham passado de
moda; e a Coimbra chegavam, por via de
Paris, os ecos do espírito novo, expresso
nas obras de Michelet, de Quinet, de
Vera-Hegel, etc.
Tudo isso fermentava no cérebro de
Antero de Quental, mas a sua personalidade
não se deixava absorver pelo otimismo que,
depois dos românticos, se espalhou na
Europa, liricamente ingénuo no Ocidente
afrancesado, sistematicamente filosófico na
Alemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguém o
lia. Não era moda. Pois foi essa corrente,
dominante hoje, aquela em que o nosso poeta,
espontaneamente, por um movimento do seu
temperamento se achou levado. Aos dezoito ou
vinte anos, ignorante ainda, mas inquieto e
perscrutador, o poeta, que desdenha
sinceramente da fama e da glória, vê no
eterno feminino de que nos fala Goethe a
síntese da existência. Os seus amores já são
fantásticos: só têm realidade no Céu.
Ali, ó lírio dos celestes vales,
Tendo
seu fim, terão o seu começo,
Para não mais findar, nossos
amores.
E se ainda o dia, a luz, o Sol, esposo amado, têm o
condão de o encher de entusiasmo, é mister
desconfiar de um homem mais caprichoso do
que todas as mulheres, porque
Pedindo à forma, em vão, a ideia
pura.
Tropeço,
em
sombras, na matéria dura
E encontro a imperfeição de
quanto existe
Esta nota é mais
constitucionalmente verdadeira. «Seja a
Terra degredo, o Céu destino», diz num
ponto; e noutro:
Minha alma, ó Deus, a outros céus
aspira:
Se
um momento a prendeu mortal beleza
É pela eterna pátria que
suspira...
Não acreditemos também
demasiadamente nisto, porque Deus não passa
ainda de uma interrogação:
Pura essência das lágrimas que choro
E
sonho dos meus sonhos! Se és verdade,
Descobre-te, visão, no Céu
ao menos!
As lutas infantis deste primeiro
período para saber se Deus é ou não é
verdade bastam, em si mesmo e no próprio
modo por que estão expressas, para nos
mostrar que o poeta não saiu ainda das
esferas de representação elementar dos seres
para a esfera compreensiva das abstrações
racionais. Os sonetos desta primeira série
desenrolam-se no terreno da fantasmagoria
transcendente. O traço mais seguro de todos
e o mais significativo está neste verso:
Que sempre o mal pior é ter
nascido.
A
segunda série tem a data de 1862-66.
Psicologicamente é a menos original,
artisticamente é a mais brilhante. O Sonho
Oriental, o Idílio, o Palácio da Ventura,
são obras-primas, até de colorido. Talvez
por isso mesmo que o estado de espírito do
poeta o não obrigava a tirar tanto de si, e
porque nesta época viveu mais à lei da
natureza; talvez por isso mesmo a sentiu e
pintou melhor nas suas cores, nas suas
imagens.
A nebulose do primeiro período
começava a resolver-se numa tragédia mental,
que umas vezes tem os sonhos dos que
mastigam haxixe, outras vezes fúrias de
desespero, ironias como punhais e gritos
lancinantes:
Se nada há que me aqueça esta frieza,
Se
estou cheio de fel e de tristeza,
É de crer que só eu seja o
culpado.
Meu pobre amigo, como foi amarga
esta época! Outros sofreram também, outros
penaram iguais dores, sem conseguirem porém
estrangular os monstros que defendem os
áditos do templo da Sabedoria. Heine e
Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram
vidas inteiras nesse estado de ironia e de
sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia
e de abatimento, de fúria e de atonia, que
para ti representam quatro anos apenas!
Mas
é que não havia em nenhum desses homens a
semente de abstração que se descobre no Palácio da
Ventura:
Abrem-se as portas de ouro, com
fragor...
Mas
dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio
e
escuridão - e nada mais!
Os românticos, mais ou
menos satanistas ou satanizados, ficavam-se
por aqui. Achando apenas silêncio e
escuridão onde tinham sonhado venturas, ou
davam em bêbedos, como Espronceda, ou
suicidavam-se, como Nerval, ou faziam-se
cínicos. à maneira de Baudelaire, cultivando
com amor as Flores do Mal.
De 1864 a 74, nesses dez anos em
que a tempestade caminha, vê-se o «silêncio
e a escuridão», que antes surgiam como
surpresas medonhas, ganharem um lugar
apropriado, embora eminente, no regime das
coisas; vê-se o espírito do filósofo reagir
sobre o temperamento do poeta, e tornar-se
sistema o que até aí era fúria. Bom
prenúncio.
Nesta época Antero de Quental é
niilista como filósofo, anarquista como
político; é tudo o que for negativo, é tudo
o que for excessivo; e é-o de um modo tão
determinante, tão dogmático e tão
afirmativo, que por isso mesmo hesitamos em
crer na consciência com que o é. Da
sinceridade não é lícito duvidar, mas contra
a segurança depõe a própria violência. A
nevrose contemporânea, que produzira nele a
terceira época, dá de si ainda a quarta; mas
se pôde galgar a saltos por entre a floresta
incendiada que devorou e consumiu os
satânicos, não poderá também sair da estepe
lúgubre onde apodrecem os pessimistas,
embriagados na negação universal, sem se
lembrarem de que são contraditórios no
próprio facto de pregarem o que quer que
seja?
Ora
a isto responde esta própria série, porque,
ao lado dos sonetos crepuscularmente
desolados, levantam-se como auroras os
sonetos estoicos. Para curar o poeta da
vertigem satânica serviu-lhe a metafísica
pessimista; para o curar mais tarde dessa
metafísica, servir-lhe-á a reação do
sentimento moral sobre a razão especulativa.
Quando pede Mais Luz, quando
chama ao Sol «o claro sol amigo dos heróis»,
quando define a Ideia acabando por
estes versos diamantinos:
A Ideia, o Sumo bem, o Verbo, a
Essência,
só
se revela aos homens e às nações
No
céu incorruptível da Consciência!
sentimo-nos bem distantes das
fantasmagorias do princípio e das loucuras
da viagem, que todavia o poeta não terminou
ainda.
Lutando
furioso
contra a desilusão, caindo esmagado pelo
aniquilamento, Antero de Quental ensimismou-se
(para usar de uma feliz expressão
espanhola), meteu-se dentro de si, a sós
consigo, apelou para as energias do seu
instinto de homem, e foi isso que lhe
inspirou o belo Hino à Razão.
Porém, na luta entre o temperamento
de estoico e a imaginação metafísica, o seu
espírito atribulado não conseguiu manter o
equilíbrio, porque as suas exigências de
crítico e filósofo (alimentadas agora por
leituras variadíssimas e profundas)
contrariavam ou contradiziam as suas visões
de poeta. À maneira que a inteligência se
lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que
a experiência o educava com mais de um caso
doloroso ou apenas triste - apurava-se-lhe a
imaginação até ao ponto de ver claramente o
que para o comum dos espíritos são apenas
conceções do entendimento abstrato. A sua
poesia despe-se então de acessórios: não há
quase uma imagem; há apenas linhas, mas
essas linhas de estátuas incorpóreas têm uma
nitidez dantesca.
O
seu pessimismo torna-se sistemático: é uma
filosofia inteira, a que corresponde, como
expressão sentimental, a ironia
transcendente. Na Disputa em Família,
Deus responde aos ateus:
Muito antes de nascerem vossos pais
Dum
barro vil, ridículas crianças,
Sabia
eu tudo isso... e muito mais!
No Inconsciente, este
herói metafísico diz assim:
Chamam-me Deus há mais de dez mil
anos...
Mas
eu por mim não sei como me chamo.
N' A Divina Comédia, os
homens queixam-se aos deuses do que sofrem,
invetivando-os por os terem criado:
Mas os deuses, com voz ainda mais
triste,
Dizem:
- Homens! porque é que nos criastes?
Como se vê, houve um progresso. No
período anterior a negação era violenta e
terminante; agora tem como expressão a
ironia, que é uma das formas conhecidas do
saber e uma das linguagens da verdade. Eis
aí o que a reação moral conseguiu,
acompanhada pelo esclarecimento da razão, da
inteligência e do conhecimento. O antigo
poeta satânico, transformado em niilista,
vemo-lo agora na pele de um pessimista
sistemático, sorrindo já bondosamente, com a
ironia nesses próprios lábios, que, primeiro
cobertos de espuma, depois nos apareciam
brancos de agonias.
Não tinha eu razão para chamar
cíclica a esta coleção de sonetos? Não tem
sido este o movimento das ideias, a evolução
do pensamento criador na segunda metade do
nosso século?
Quando escreveu o primeiro soneto
da quarta série (1880-84)
Já sossega, depois de tanta luta,
Já me
descansa em paz o coração...
Antero de Quental resolveu
destruir todas as suas poesias lúgubres.
Sentia remorsos por alguma vez ter estado
numa disposição de ânimo que agora
considerava com horror. Entendia que esses
versos tétricos não podiam consolar ninguém
e fariam mal a muita gente. Destruiu-os,
pois, com aquela violência própria de um
carácter intermitentemente meigo e frenético
como o de uma mulher. Desse naufrágio, onde
se perderam verdadeiras obras primas, salvei
eu as poesias que vão no fim deste ensaio; e
salvei-as porque as possuía entre os
originais remetidos em cartas, e mais de uma
vez como texto de notícias do estado do seu
espírito, ou cartas rimadas.
Que espécie de paz era
porém essa em que o seu coração descansava?
Era o Nirvana:
E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge
a custo desse mundo morto
E
torna a olhar coisas naturais,
À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só
vê com tédio em tudo que quanto fita
A
ilusão e o vazio universais.
O Nirvana
é o céu do budismo, a religião mais
filosófica e menos fantasmagórica inventada
pelos homens. É por este motivo que o
budismo atrai hoje em dia todos os espíritos
a um tempo racionalistas e místicos, desta
época em tudo semelhante à alexandrina,
menos no volume do saber positivo, que já se
não compadece com muitas das teorias sobre
que os neoplatónicos especulavam. A teoria
da Substância levou-os a eles a uma conceção
do Ser que produziu o mito do Verbo cristão,
encarnado popularmente em Jesus Cristo. Ora
hoje tudo isso vale apenas como documento
histórico, e, por paradoxal que isso pareça,
o Não-Ser é, segundo a
metafísica contemporânea, a essência de tudo
o que existe. O Absoluto é o Nada. O
Universo, a realidade inteira, são
modalidades, aspetos fugitivos, que só se
tornam verdades racionais quando nos
aparecem despidas de todos os acidentes. E
como é pelos acidentes apenas que nós,
distinguindo-as, as conhecemos, a realidade
verdadeiramente e em si é nada.
Religiosamente, Nada é igual a
Nirvana; e o budismo é a única religião que
atingiu esta conclusão sumária do pensamento
científico moderno. O Nirvana é esse estado
em que os seres, despindo-se de todas as
suas modalidades e acidentes, de todas as
condições de realidade, condições que os
limitam distinguindo-os entre si, adquirem a
não-realidade (o não contingente) e com ela
a existência absoluta e a absoluta
liberdade. Essa liberdade é o tipo e a
essência da vida espiritual; e o Nirvana,
puro Não-Ser
para a inteligência, é, para o sentimento
moral, o símbolo e o veículo de toda a
perfeição e virtude: radicalmente negativo
na esfera da razão, é, na esfera do
sentimento absolutamente afirmativo. O
pessimismo torna-se desta forma um otimismo
gigantesco; toda a inércia é condenada, e o
sistema das coisas, agitando-se, movendo-se
na direção do aniquilamento final, move-se e
agita-se no sentido de uma liberdade
evolutivamente progressiva, até atingir a
plenitude. O Universo é uma grande vida que
tem, no termo, o termo de todas as vidas - a
morte, idealizada agora e tornada luminosa e
apetecível por essa idealização.
Leiam-se
os
dois sonetos Redenção, talvez os
mais belos de todo o livro, e
compreender-se-á melhor o que fica dito.
Leia-se o Elogio da Morte,
Dormirei no teu seio inalterável,
Na
comunhão da paz universal,
Morte libertadora e
inviolável!
e ver-se-á quanto estamos longe do
desespero trágico de outros anos. A
tempestade acalmou,
Na esfera do invisível, do
intangível,
Sobre
desertos, vácuo, soledade,
Voa e
paira o espírito impassível,
presidindo à evolução dos seres
(v. o soneto Evolução), desde a
rocha até ao homem, evolução que seria
absolutamente inexpressiva se não tivesse um
destino, um fim, um ideal. A teoria do
progresso indefinido é, com efeito,
racionalmente absurda. Esse destino, para os
neobudistas, é o Nada transcendente; esse
ideal é a Liberdade. A existência está,
pois, consagrada racionalmente: falta
consagrá-la sentimentalmente. Falta ainda ao
sistema medianeiro: é o Amor.
Porém o coração, feito valente
Na
escola da tortura repetida,
E
no uso do penar tornado crente,
Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver
não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi demais o desengano e
a dor.
O Universo está pois construído e
santificado na mente do poeta e na razão do
filósofo. Dir-se-á portanto que a quimera,
de que a princípio falámos, ficou
desvendada, o problema resolvido, conciliada
a visão com a razão, e que nos não resta
mais do que fazermo-nos todos budistas?
Suprema ilusão! Creia-o embora o poeta; eu,
como crítico, observando que o pensamento
humano, desde que existe e trabalha,
progride sempre, com efeito, mas progride em
três estradas paralelas que, por serem
paralelas, nunca podem encontrar-se,
atrevo-me a afirmar a irredutibilidade do
misticismo, racional ou imaginativamente
concebido, e do naturalismo, ponderada ou
orgiacamente realizado. Atrevo-ma a dizer
que estes dois feitios ou temperamentos são
constitucionais do espírito humano, e que da
coexistência necessária deles resulta um
terceiro - o cético, o crítico, o que provém
da comparação de ambos, e por isso não tem
cor, nem é afirmativo; [...]
«Um helenismo coroado por um
budismo», eis a fórmula com que mais de uma
vez Antero de Quental me tem exprimido o seu
pensamento - a sua quimera! Quimera, digo,
porque a coroa não nos pode assentar na
cabeça, sob pena de a crivar de espinhos e
de a deixar escorrendo sangue. Fundar o
princípio da ação na inércia sistemática, a
realidade no Não-Ser, a vida no
aniquilamento, só é praticamente aceitável
para o comum dos homens quando acreditem na
metempsicose, dogma tão infantilmente mítico
do budismo como, v. g., o inferno do
cristianismo. Ao cristianismo, porém,
tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação
semita deu para a sua formação, fica ainda o
helenismo, isto é, um idealismo mais ou
menos panteísta e uma teoria moral - coisas
que eu não afirmo que resistam a uma análise
rigorosamente lógica, por isso mesmo que
todo o nosso conhecimento racional das
coisas assenta apenas sobre axiomas do senso
comum - ao passo que, em se tirando a
metempsicose ao budismo, o budismo reduz-se
a uma névoa de abstrações.
Pobre humanidade, se se visse
condenada à coroação budista! Nós, europeus,
incapazes de nos sujeitarmos ao regime de
contemplação inerte, sofreríamos as agonias,
experimentaríamos as aflições do poeta, que,
tendo no peito um coração ativo, tem na
cabeça uma imaginação mística, e, para
obedecer ao pensamento, tortura o coração,
sem poder também esmagá-lo sob o manto da
inteligência.
Deste
cruel
estado vêm os documentos que atestam a
transformação sofrida pela ironia dos
períodos anteriores. Que nome se há de dar
ao sentimento que inspira os sonetos À
Virgem Santíssima e o Na Mão de Deus,
que fecha o volume? Eu, por mim, chamarei
humorismo transcendente a essa liga íntima
da piedade e da ironia, e declaro que
nunca vi coisa parecida em verso. [...]
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me
assim calada, assim chorosa,
E
deixa-me sonhar a vida inteira!
A visão é a Virgem Santíssima, e
a poesia é tão sincera, tão verdadeira, tão
cheia de piedade e unção, que eu sei de mais
de um livro de rezas onde andam cópias
escritas.
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus
eternamente!
Um monge cristão escreveria isto. E
Antero de Quental nem é cristão, nem crê em
Deus, nem na Virgem, segundo o sentido
ordinário da palavra crer.
Blasfemar
era
bom noutros tempos; para a ironia também a
idade passou; finalmente para o exercício
literário nunca se inclinou a pena que o
poeta molhou sempre no seu sangue. Como
explicar, pois, o fenómeno?
Por
acaso subiu já o leitor ao cume de um monte
suficientemente alto para que toda a
paisagem lhe aparecesse à vista, fundida ao
ponto de não distinguir uma árvore de um
casal, nem um rio de um vale sem curso de
água? Pois sucede assim nas campinas da
história do pensamento humano, quando as
olhamos das cumeadas luminosas da crítica.
Veem-se as coisas na sua essência, não
importam os acidentes. O fetiche que o
selvagem adora, a imagem perante a qual se
prostra o comum dos crentes, o arquiteto
universal dos pensadores livres, e
finalmente esse quid inominado a que
a filosofia moderna chamou Inconsciente -
tudo isso é igualmente Deus: somente é Deus
percebido pela inteligência vulgar, Deus
percebido pelo saber incipiente, e Deus
finalmente incompreendido, mas sentido, pela
sabedoria. E todas essas modalidades de uma
mesma impressão, recebida e representada de
forma diversa, consoante a natureza e o
estado de educação dos homens, são
igualmente verdadeiras, igualmente santas e
igualmente humorísticas, para aquele que tem
coração para sentir as coisas por dentro e
olhos para as ver de fora - objetivamente,
como os alemães dizem, e nós diremos
criticamente.
Eis aí a suprema liberdade do
espírito, o Nirvana apenas intelectual, a
que eu prefiro chamar impassibilidade
subjetiva: um estado que permite compreender
todas as coisas, analisando-as e
classificando-as, sem todavia nos transmitir
essa espécie de frialdade de coração,
própria dos naturalistas quando estudam uma
rocha, uma planta ou um animal. O filósofo,
impassível ao analisar e classificar os
fenómenos do espírito humano, há de misturar
ao sorriso que provocam todas as vaidades e
ilusões o amor que merecem todos os
sentimentos ingénuos e fundamentalmente
bons; há de aliar à compreensão da nulidade
extrínseca das coisas a compreensão da sua
excelência intrínseca; exigindo que o homem
seja ativo, porque a atividade é boa por ser
indispensável à saúde do espírito, embora os
objetos da atividade sejam as mais das vezes
írritos e nulos, quando considerados em si
próprios e isoladamente.
E
eis aí as razões por que não sou budista...
nem Antero de Quental o é, embora julgue
sê-lo. A evolução dolorosa que terminou com
o seu último soneto, esta longa e
tempestuosa viagem através do mar tenebroso
da fantasia metafísica, parece ter
concluído. A idade, talvez, acima de tudo,
trouxe ao espírito do poeta uma paz
iluminada de bondade e sabedoria: e como a
sua alma é sã e a sua inteligência firme e
sempre ativa, é mais que provável que o
declinar da vida de Antero de Quental
enriqueça o pecúlio, por sinal bem pobre, da
filosofia portuguesa com algum trabalho tão
digno de se conservar na memória dos tempos
como estes Sonetos,
que são as amargas flores de uma mocidade.
Esse trabalho, porém, não será um catecismo
budista, não pode ser nenhuma revelação
milagrosa do verdadeiro sistema,
porque a sabedoria nos diz que toda a
pretensão da Verdade é ilusória, pois sendo
nós, a nossa inteligência, os nossos
pensamentos, simples e fugitivas
contingências, é loucura pensar que jamais
possamos definir o Absoluto. Cada qual
sente-o a seu modo, segundo o seu
temperamento; e sábio é aquele que se limita
a registar as relações das coisas.
III
Quem diante destes versos não
sentir elevar-se-lhe o espírito, como numa
oração, àquela espécie de Deus que é
compatível com o seu temperamento ou com o
estado de educação do seu pensamento, é
porque tem dentro do peito, no lugar do
coração, um seixo polido e frio. Quem, no
meio do lidar da vida, roçando os braços
pelas arestas cortantes que a eriçam de
ângulos, pousar o olhar da alma sobre um
destes sonetos e não sentir o que os
sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de
água límpida, é porque tem a alma feita
apenas de egoísmo. Quem, emergindo dos
montões de papelada que as imprensas vomitam
diariamente, deitar os olhos sobre estas
páginas e não sentir o deslumbramento que os
diamantes produzem, é porque a sua vista se
embaciou com o exame dos livros grosseiros
em todo o sentido, e a sua língua perdeu o
hábito de falar português. Um dos nossos
queridos amigos, um dos que conhecem de
perto Antero de Quental - e somente o
conhece quem com ele viveu largo tempo na
intimidade -, interroga-me geralmente deste
modo: «E santo Antero, como vai?»
Di-lo com a convicção quente dos
artistas, mas eu, que o não sou, tenho a pôr
embargos, porque a santidade não é planta
adequada ao clima do nosso tempo. Exige uma
porção de sentimento ingénuo que já não há
nos ares que respiramos.
A vida contemplativa, porém, a vida
asceta inclusivamente: essa virtude austera
para consigo, tolerante para com tudo e para
com todos; esse observar constante de si
próprio e o dispensar de um sorriso sempre
bom, embora indiferente com frequência, aos
que alguma vez o rodeiam; a caridade, o
amor, a abnegação, as tentações, as crises,
as lágrimas, as aflições, as dúvidas
cruciantes e as dores angustiosas: tudo o
que, reunido, forma uma mística - tudo isso
mora na alma deste poeta arrebatada pela
visão inextinguível do Bem.
Só no meu coração, que sondo e meço,
Não
sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma
o Bem.
E para nada faltar a este místico,
anacronicamente perdido no meio do
burburinho de um século ativo até à
demência, tem também uma fé ardente - uma fé
budista. Somente o seu Deus, Deus sem
vontade, sem inteligência e sem consciência,
é para nós outros, a quem são vedados os
mistérios da metafísica budista, igual a
coisa nenhuma.
Este homem, fundamentalmente bom,
se tivesse vivido no século VI ou no século
XIII, seria um dos companheiros de S. Bento
ou de S. Francisco de Assis. No século XIX é
um excêntrico, mas desse feitio de
excentricidade que é indispensável, porque a
todos os tempos foram indispensáveis os
hereges, a que hoje se chama dissidentes.
Oliveira Martins, in A
GERAÇÃO DE 70, Antero de Quental, Sonetos,
Círculo de Leitores, 1987
topo
Missão Social e Moral da Poesia
e da Arte
A
primeira edição das Odes Modernas,
1865, traz uma nota final Sobre a Missão
Revolucionária da Poesia [recolhida em Prosas,
I, pp. 306-315]. Logo no primeiro parágrafo, a
poesia é caracterizada como sendo «a confissão
sincera do pensamento mais íntimo de uma
idade», donde se infere que «a poesia moderna
é a voz da Revolução - porque revolução é o
nome que o sacerdote da história, o tempo,
deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso
século». Esta conceção está de acordo com uma
série de folhas volantes que desde 1862
imprimia para distribuição no Teatro
Académico, em saraus dominados pela intenção
de homenagem a Itália de Garibaldi, como
mostra António Salgado Júnior num muito seguro
prefácio para Raios de Extinta Luz. (1) Segundo
essa Nota, já muito tocada por Proudhon, que
doravante será sempre o maior «mestre»
reconhecido de Antero, é a própria burguesia
que, meio século após o seu triunfo, se
esfacela e, involuntariamente, prepara a
transformação iminente. «Não há já mão que a
possa salvar. O seu nome é contradição.
Contradição de desejos e condições.
Contradição de palavras e obras.» É certo que
a Revolução social ainda poderia aos
portugueses parecer muito distante, por
viverem ainda «fora da história e do
progresso». Mas nem por isso deixaria de lhes
chegar «essa onda misteriosa», preparada pelos
«apóstolos de um Evangelho tão grande que pode
conter no seu seio todos quantos têm [...]
pregado ao norte e ao sul, os Cristos de todas
as raças e de todas as cores. [...]
Reconstrução do mundo humano sobre as bases
eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com
exclusão dos Reis e de Governos tirânicos, de
Deus e Religiões inúteis e ilusórias - é este
o mais alto desejo, a aspiração mais santa
desta sociedade tumultuosa. [...] Esta voz, se
é a mais alta, deve ser também a mais poética.
A poesia que quiser corresponder ao sentir
mais fundo do seu tempo, hoje, tem
forçosamente de ser uma poesia revolucionária.
Que importa que a
palavra não pareça poética às vestais
literárias do culto da arte pela arte? (2)
É ainda no estilo
tribunício deste posfácio que, quatro meses
mais tarde (ou seja, em novembro de 1865), se
dirige num folheto de carta aberta a António
Feliciano de Castilho que deu o nome à mais
intensa polémica literária portuguesa: Bom Senso e Bom Gosto.
(3)
Bastara uma alusão desdenhosa de Castilho aos
poemas recém-publicados de Teófilo Braga e
Antero (4)
para que este reagisse como se tivesse
perigado a sua «liberdade absoluta», a sua
independência de «homem sem pretensões
literárias». Deixando de lado o muito que tal
folheto tem de puramente oratório e agressivo,
registemos apenas que «a imensa missão do
escritor» é aí concebida como «um sacerdócio,
um ofício público e religioso»; que, nos seus
termos, a primeira «condição da grandeza, da
beleza, da bondade, não é o talento, nem a
ciência, nem a experiência: é a elevação moral
[...] a dignidade do pensamento e do
carácter». Castilho é visado como «mero
adorador da palavra», desprezador da «ideia
que custa muito e nada luz», como simples
imitador e efeitador de «ninharias luzidias».
Ora a época era de «transformação dolorosa.
(...) Refundem-se as crenças antigas. Geram-se
com esforço novas ideias. Desmoronam-se velhas
religiões. [...] Há toda uma humanidade em
dissolução, de que é preciso extrair uma
humanidade viva, sã, crente e formosa. [...]
Todavia quem pensa e sabe hoje na Europa não é
Portugal, não é Lisboa [...] é Paris, é
Londres, é Berlim». O foliculário menciona
então os seus mestres e novas disciplinas, «a
filosofia alemã, a crítica francesa [da
religião], o positivismo, o naturalismo, a
[filosofia da] história e a metafísica»,
cifrando tudo isto numa palavra-chave que
Castilho ridicularizara: o Ideal.
Logo
no mês seguinte (dezembro de 1865) Antero
volta à estacada com um novo folheto, A
Dignidade das Letras e as Literaturas
Oficiais, que em apêndice faz uma
crítica, quase toda ela justa e ponderada, à
obra literária de Castilho, então patriarca
abonador de diversos epígonos do primeiro
Romantismo português. A sua nota mais
insistente é a da responsabilidade dos
escritores e dos artistas, «que fazem a
corrupção e a grandeza das épocas», a sua
responsabilidade perante a Nação. «Mas a
nação, a nação verdadeira, não sois vós,
senhores do funcionalismo, parasitas ociosos,
improdutivos. A nação portuguesa são três
milhões de homens que trabalham, suam,
produzem, ativos e honrados» e que apenas
conhecem o Governo para o maldizer, e nem
sequer sabem os nomes dos pretensos «grandes
homens [...] a três léguas das vossas
academias e das vossas redações».
Antero
não mais deixará de conceber-se investido de
uma grande responsabilidade como escritor,
mesmo quando substitui o Ideal revolucionário
por um «novo misticismo». Pois com efeito a
sua conceção histórica da poesia e da arte
oscilará entre dois extremos. Em 1865, como
vimos, pensa que a poesia revolucionária, voz
mais íntima do seu tempo, seria também «a mais
alta» e por isso «a mais poética». Num
prefácio do mesmo ano, vê-a mesmo como «a
ciência do Ideal». (5)
E num artigo pouco mais ou menos do mesmo
período considera a arte como eterna, síntese
imperecível da Ciência e da Religião, ambas
perecíveis, como Espírito em que se fundem e
culminam a Alma e a Natureza. (6)
Sem embargo disso, e por influência indireta
da dialética racionalista de Hegel, da
conceção genética do espírito humano vinda de
G. Vico através do seu tradutor e admirador
Michelet, e ainda de outros ideólogos então
muito influentes, como P.-C. E. Pelletan (Profession
de foi du XIX siècle, 1852), já em 1866
Antero se mostra convicto de que a música
(Antero preferiu sempre as artes rítmicas às
artes plásticas) desaparecerá um dia com a
racionalização da vida social, pois ela seria
expressão de um conflito tipicamente moderno:
«Este contraste inaudito de esperança sem
termo e profunda melancolia, este paradoxo do
maior desejo e a maior desgraça, unidos num
mesmo sentimento e dentro do coração, é isto
que faz a alta originalidade do espírito dos
últimos três séculos, o fundo mesmo da alma
moderna.» (7)
E ainda em 1881 abraça a ideia de Vico segundo
a qual a poesia, contemporânea da «produção
das línguas e dos mitos», reduzir-se-á, graças
ao progresso científico, «à expressão isolada
de sentimentos muito pessoais e muito
limitados», pois «a alta poesia, épica,
lírica» - essa irmã da metafísica e da
religião -, terá assim desaparecido. (8)
Salta à vista que estas conceções colidem com
a primazia que por diversas vezes Antero
atribui ao sentimento sobre a razão. (9)
Há
ainda um ponto importante a consignar na
atividade teorética e crítica de Antero com
respeito à função social da literatura e da
Arte. A geração da Questão
Coimbrã de 1865 e das Conferências Democráticas
de 1871 é muitas vezes ligada à teoria e
prática do realismo. Esta
conotação carece de várias especificações,
mormente pelo que se relaciona com o nosso
poeta. Em primeiro lugar, a apologia, a
preceituação e o exercício do realismo tinham já, por
finais do decénio de 1860, conciliado diversas
adesões, antes da intervenção de Eça de
Queirós nas Conferências Democráticas
que constitui o primeiro manifesto em forma da
nova estética. Balzac foi, em geral, pouco
prezado pelos românticos portugueses da
primeira geração, mas na carreira do (mais)
consagrado novelista, Camilo Castelo Branco, o
aproveitamento da melhor técnica balzaquiana é
evidente desde cerca de 1855, e a qualificação
de realista era já favoravelmente
atribuída a obras da chamada «escola do elogio
mútuo» de Castilho, na barricada oposta à de
Antero na Questão Coimbrã. (10) A teoria do
realismo exposta por Eça de Queirós em 1871,
quer na conferência sobre «O Realismo como nova
expressão da Arte» quer em textos
contemporâneos no folheto periódico As
Farpas, baseia-se afinal numa obra que
Antero impusera ao estudo dos companheiros de
Cenáculo: De la
justice dans la révolution et dans l' église,
3 vols., 1958, P.-J. Proudhon. (11)
Antero nem sempre acompanhou o realismo tal
como foi praticado por Eça de Queirós.
Encontram-se ácidas críticas aos realistas, e
nomeadamente a Eça de Queirós, em várias
cartas. (12)
No entanto Antero reconhece os méritos do
realismo. São várias as referências a leituras
em curso, ou em projeto, de Balzac, cujos
romances admira profundamente. (13)
(1) Trata-se da 3.ª
edição, muito modificada, desta recolha
póstuma, Lisboa, 1948, pp. V-XLII.
(2) Nota cit., Prosas,
I, especialmente pp. 306 e 313-315.
(3) Recolhido em Prosas,
I, pp. 330-347.
(4) Visão dos Tempos e
Tempestades Sonoras, 1864, de Teófilo, Odes
Modernas, ob. ci. de Antero.
(5) Introdução a Cantos na
Solidão de Manuel Ferreira da Portela,
incluso em Prosas, I, pp. 316-321.
(6) «Arte e verdade», inserto
em Prosas, I, pp. 322-329.
(7) «O futuro da música», in O
Instituto, vol. XIII, n.º 10, Coimbra,
1866, recolhido em Prosas, II, pp.
26-46.
(8) A Poesia na Atualidade,
opúsculo impresso no Porto, 1881, e incluído
em Prosas, II, pp. 310-326.
(9) A expressão mais cabal do
primado da poesia como «evidência da alma» no
âmbito do primado e sobrevivência do
sentimento em relação às ideias encontra-se
numa longa carta não datada a Anselmo de
Andrade, Cartas, 1.ª ed., IX, pp.
22-35.
(10) António José Saraiva e
Óscar Lopes, História da Literatura
Portuguesa, 12.ª ed., Porto, 1979, pp.
827 e seguintes.
(11) Vejam-se, nomeadamente,
os capítulos VII e VIII do Neuvième Étude,
«Progrès et Décadence», que na edição anotada
de 1930-1935, em 4 vols., figuram no vol. III,
pp. 582-648; e veja-se ainda de P.-J. Proudhon
Du principe de l' art et de sa destination
sociale, Paris, 1865, cuja influência é
ainda mais sensível na exposição de Eça.
Estudo fundamental a este respeito: António
Salgado Júnior, História das Conferências
do Casino, Lisboa, 1930.
(12) Cartas a António de
Azevedo Castelo Branco, Lisboa, 1942,
XXIV, de 1875, pp. 81-83, e XXVII, de
24-2-1876, pp. 97-99; Cartas, 1.ª ed.,
Porto, 1915, CXI, a José Félix Pereira, de
24-9-1880, p. 216; XVIII, de 25-7-1873, pp.
78-81. Cartas Inéditas de Antero de
Quental a Oliveira Martins, Coimbra,
1931, nomeadamente XV, pp. 33-34.
(13) Cartas, ob. cit.,
LIV, a Germano Meireles, 1886, pp. 138-139:
«Os romances de Balzac são uma verdadeira
história íntima do nosso século, e tenho
admirado como em certas coisas capitais (como
a influência da bancocracia, a anarquia do
livre-câmbio, as ilusões do
constitucionalismo, etc.) a sua observação
despreocupada da sociedade se encontra e
concorda com a crítica sistemática do grande
Proudhon.» Ver ainda ibidem, XXII, a
Cândido de Figueiredo, de 1-5-1870, pp. 60-86,
onde contradiz Cousin e os espiritualistas
franceses quanto ao preceito da
intemporalidade clássica, nomeadamente no
teatro de Schiller, e sustenta, de acordo com
uma linha teorética romântico-realista, que as
personagens não podem «viver sem pátria nem
idade certa», sob pena de se reduzirem a «uma
abstracção» sem vida ou existência possível.
Em Cartas Inéditas de Antero de Quental a
Oliveira Martins, XXXIII, de 5-2-1877,
pp. 72-73, pede ao amigo a aquisição de quatro
romances de Balzac.
Lopes,
Óscar, Antero de Quental - Vida
e Legado de uma Utopia, Editorial
Caminho, Lisboa, 1983
topo
Carta Biográfica a Wilhem Stork
Ponta Delgada (Ilha de S. Miguel,
Açores)
24
de Maio de 1887
Ex.mo Sr.:
Só agora me chegou às mãos a sua
estimada carta de 23 de abril último, pelo
facto de me encontrar, há dois meses, nesta
ilha (que é a minha pátria) trazido aqui por
urgentes negócios de família. A demora das
comunicações com o continente explica este
atraso.
Agradeço
a V. Ex.ª as amáveis e para mim tão honrosas
expressões de sua carta, e nada me pode ser,
como poeta e como homem, mais grato do que o
apreço que um tal mestre e crítico manifesta
pelas minhas composições, ao ponto de querer
ser meu intérprete e introdutor junto do
público o mais culto do mundo e que mais
direito tem a ser exigente. Discípulo da
Alemanha filosófica e poética, oxalá que ela
receba com benignidade essas pobres flores,
que uma semente sua, trazida pelo vento do
século, faz desabrochar neste solo pouco
preparado. Qualquer que seja a sua fortuna,
toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil
espírito, que generosamente me
toma pela mão, para me apresentar.
As
informações biográficas e bibliográficas que
V. Ex.a me pede, podem reduzir-se ao seguinte:
nasci nesta ilha de S. Miguel, descendente de
uma das mais antigas famílias dos seus
colonizadores, em abril de 1842, tendo por
conseguinte perfeito 45 anos. Cursei, entre
1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo
por ela bacharel formado em Direito. Confesso,
porém, que não foi o estudo do Direito que me
interessou e absorveu durante aqueles anos,
tendo sido e ficando um insignificante
legista.
O facto
importante da minha vida, durante aqueles
anos, e provavelmente o mais decisivo dela,
foi a espécie de revolução intelectual e moral
que em mim se deu, ao sair, pobre criança
arrancada do viver quase patriarcal de uma
província remota e imersa no seu plácido sono
histórico, para o meio da irrespeitosa
agitação intelectual de um centro, onde mais
ou menos vinham repercutir-se as encontradas
correntes do espírito moderno. Varrida num
instante toda a minha educação católica e
tradicional, caí num estado de dúvida e
incerteza, tanto mais pungentes quanto,
espírito naturalmente religioso, tinha nascido
para crer placidamente e obedecer sem esforço
a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção,
estado terrível de espírito, partilhado mais
ou menos por quase todos os da minha geração,
a primeira em Portugal que saiu decididamente
e conscientemente da velha estrada da
tradição.
Se a
isto se juntar a imaginação ardente, com que
em excesso me dotara a natureza, o acordar das
paixões amorosas próprias da primeira
mocidade, a turbulência e a petulância, os
fogachos e os abatimentos de um temperamento
meridional, muito boa fé e boa vontade, mas
muita falta de paciência e método, ficará
feito o quadro das qualidades e defeitos com
que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo do
pensamento e da poesia.
No meio
das católicas leituras a que então me
entregava, devorando com igual voracidade
romances e livros de ciências naturais, poetas
e publicistas e até teólogos, a leitura do Fausto de Goethe (na tradução
francesa de Blaze de Bury) e o livro de
Rémusat sobre a nova filosofia alemã exerceram
todavia sobre o meu espírito uma impressão
profunda e duradoura: fiquei definitivamente
conquistado para o germanismo; e,
se entre os franceses, preferi a todos
Proudhon e Michelet, foi sem dúvida por serem
estes dois os que mais se ressentem do
espírito de além-Reno. Li depois muito de He
gel, nas traduções francesas de Vera (pois só
mais tarde é que aprendi alemão); não sei se o
entendi bem, nem a independência do meu
espírito me consentia ser discípulo: mas é
certo que me seduziam as tendências grandiosas
daquele estupenda síntese. Em todo o caso o
hegelianismo foi o ponto de partida das minhas
especulações filosóficas, e posso dizer que
foi dentro dele que se deu a minha evolução
intelectual.
Como
acomodava eu este culto pelas doutrinas do
apologista do Estado prussiano, com o
radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet
e Proudhon? Mistérios da incoerência da
mocidade! O que é certo é que, revestido com
esta armadura mais brilhante do que sólida,
desci confiado para a arena: queria reformar
tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio
caminho da formação de mim mesmo! Consumi
muita atividade e algum talento, merecedor de
melhor emprego, em artigos de jornais, em
folhetos, em proclamações, em conferências
revolucionárias: ao mesmo tempo que conspirava
a favor da União Ibérica, fundava com a outra
mão sociedades operárias e introduzia, adepto
de Marx e de Engels, em Portugal a Associação
Internacional dos Trabalhadores. Fui durante
uns sete ou oito anos uma espécie de pequeno
Lassalle, e tive a minha hora de vã
popularidade.
Do que
publiquei por esse tempo, aí vai o que ainda
posso lembrar. O meu primeiro folheto é do ano
de 1864. Intitula-se: Defesa da
Carta Encíclica de S. S. Pio
IX contra a Chamada Opinião Liberal. É
um protesto contra a falta de lógica com que
as folhas liberais atacavam o Syllabus,
declarando-se ao mesmo tempo fiéis
católicos. O autor, glorificando o Pontífice
pela beleza da sua atitude intransigente em
face do século, via nessa intransigência uma
lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a Igreja
condenada pela mesma grandeza da sua
instituição a cair inteira mas não a
render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais
liberais.
O meu
último folheto é de 1871. Intitula-se: Carta ao Ex.mo Marquês de' Ávila e
Bolama, sobre a Portaria Que Mandou Fechar
as Conferências do Casino Lisbonense. As
Conferências Democráticas
tinham sido fundadas por mim com o concurso de
homens moços (que quase todos têm hoje nome na
política) e eram muito frequentadas pelo escol
da classe operária. Pareceram perigosas ao
Governo, que arbitrariamente as mandou fechar.
O meu folheto parece que concorreu, segundo se
disse, para a queda do ministério, que, de
resto, não ,podia durar muito, sendo dos
chamados de transição. E uma diatribe, mas
eloquente.
Entre
esses dois extremos, coloca-se a famosa Questão Literária ou a Questão de Coimbra, que
durante mais de seis meses agitou o nosso
pequeno mundo literário, e foi o ponto de
partida da atual evolução da literatura
portuguesa. Os novos datam
todos de então. O hegelianismo dos coimbrões
fez explosão.
O velho
Castilho, o árcade póstumo, como então lhe
chamaram, viu a geração nova insurgir-se
contra a sua chefatura anacrónica. Houve em
tudo isto muita irreverência e muito excesso;
mas é certo que Castilho, artista primoroso
mas totalmente destituído de ideia, não podia
presidir, como pretendia, a uma geração
ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava
a uma nova direção, a orientar-se
como depois se disse, nas correntes do
espírito da época. Havia na mocidade uma
grande fermentação intelectual, confusa,
desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não
compreendia, julgou poder suprimi-la com
processos de velho pedagogo. lnde
irae. Rompi eu o fogo com o folheto Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao
Ex.mo A. F. de Castilho. Seguiu-se
Teófilo Braga, seguiram-se depois muitos
outros, la mêlée devint générale.
Todo o inverno de 1865 a 66 se passou
neste batalhar. Quando o fumo se dissipou, o
que se viu mais claramente foi que havia em
Portugal um grupo de dezasseis a vinte
rapazes, que não queriam saber da Academia nem
dos académicos, que já não eram católicos nem
monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel
como os velhos tinham falado de Chateaubriand
e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os
outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes
bárbaros e ciências desconhecidas, como
glótica, filologia, etc., que inspiravam
talvez pouca confiança pela petulância e
irreverência, mas que inquestionavelmente
tinham talento e estavam de boa-fé e que, em
suma, havia a esperar deles alguma cousa, quando assentassem.
Os
factos confirmaram esta impressão: os dez ou
doze primeiros nomes da literatura de hoje
saíram todos (salvos dois ou três) da Escola
Coimbrã ou da influência dela. O germanismo
tomara pé em Portugal. Abrira-se uma nova era
para o pensamento português. O velho Portugal
ainda conservado artificialmente por uma
literatura de convenção morrera
definitivamente. Desta espécie de revolução
fui eu o porta-estandarte, com o que me não
desvaneço sobremaneira, mas do que também não
me arrependo. Se a uma ordem artificial se
seguiu uma espécie de anarquia, é isso ainda
assim preferível, porque uma contém gérmenes
de vida, e da outra nada havia a esperar.
Pertence ainda a essa época o folheto: Dignidade das Letras e Literaturas
Oficiais.
Durante
o ano de 1867 e parte de 68 viajei em França e
Espanha e visitei os Estados Unidos da
América. No fim desse ano de 68 publiquei o
folheto: Portugal perante a
Revolução de Espanha. Advogava aí a
União Ibérica por meio da República Federal,
então representada em Espanha por Castellar,
Pi y Margall e a maioria das Cortes
Constituintes. Era uma grande ilusão, da qual
porém só desisti ( como de muitas outras desse
tempo) à força de golpes brutais e repetidos
da experiência. Tanto custa a corrigir um
certo falso idealismo nas cousas da sociedade!
O meu Discurso sobre as Causas da
Decadência dos Povos Peninsulares nos
Séculos XVII e XVIII, embora pisasse um
terreno mais sólido, o terreno da História,
ressente-se ainda muito da influência das
ideias políticas preconcebidas, da crítica
histórica com tendências. E
do ano de 1871.
Nesse
ano e no seguinte tomei parte ativa no
movimento socialista, que se iniciava em
Lisboa, e tanto nessa cidade como no Porto
escrevi bastante nos jornais políticos.
Incidentemente publiquei, num pequeno volume,
uma série de estudos com o título de Considerações sobre a Filosofia da
História Literária Portuguesa. Creio
que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou
pelo menos, de mais razoável em prosa.
Confesso sinceramente que dou muito pouca
importância a todos esses meus escritozinhos
de ocasião, e até, às vezes, preciso de certa
força de reflexão para não me envergonhar de
ter publicado tanta cousa pouco pensada. E
todavia era aplaudido! Porquê? Em primeiro
lugar, creio eu, porque os que me aplaudiam
não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do
que eu. Em segundo lugar, porque me concedeu a
natureza o dom da prosa portuguesa, não da
prosa de convenção, arremedando o estilo dos
séculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o
seu tipo na língua viva e falada hoje,
analítica já nos movimentos da frase, mas na
linguagem ainda e sempre portuguesa. Isso
agradou, porque era o que convinha e, em suma,
acabei por ser citado como modelo da prosa
moderna! É certo porém que tudo aquilo são
escritinhos de ocasião e que, em prosa, não
produzi ainda o que se chama uma
obra, isto é, uma cousa original,
pessoal e aprofundada. Há muito tempo que sei
escrever, mas foi-me necessário chegar aos 45
anos para ter que escrever. Por isso, deixemos
toda essa farragem que não cito senão para
corresponder ao desejo de V. Ex.a
na matéria bibliográfica. E passemos aos
versos.
Além da
coleção de sonetos que V. Ex.a
conhece, publiquei ainda mais dois volumes.
Um, de 1872, com o título de Primaveras
Românticas contém os meus Juvenília,
as poesias de amor e fantasia, compostas
na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que
andavam dispersas por várias publicações
periódicas, e que só em 72 reuni em volume,
juntamente com mais alguma cousa posterior, de
mesmo carácter e estilo. Talvez a melhor
maneira de caracterizar esse volume será dizer
em francês que é du Heine de
deuxième qualité. Como muitas pessoas,
por cá, têm achado essa semelhança, por isso a
indico. A segunda secção dos Sonetos
Completos que não contém senão
composições desse período dará a V. Ex.a
uma ideia suficiente do fundo e do estilo
daquela poesia: assim como a terceira secção
lhe dará ideia das Odes Modernas,
cuja primeira edição apareceu em 1865. Não
sei bem como caracterizar este livro: não é
certamente medíocre; há nele paixão sincera e
elevação de pensamento; mas além de
declamatória e abstrata, por vezes aquela
poesia é indistinta, e não define bem e
tipicamente o estado de espírito que a
produziu. O que ela representa perfeitamente é
a singular aliança, a que atrás me referi já,
do naturalismo hegeliano e do humanitarismo
radical francês. Acima de tudo é, como dizem
os franceses, poesia de combate;
o panfletário divisa-se muitas vezes por
detrás do poeta, e a Igreja, a monarquia, os
grandes do mundo, são o alvo das suas
apóstrofes de nivelador idealista. Noutras
composições, é verdade, o tom é mais calmo e
patenteia-se nelas a intenção filosófica do
livro, vaga sim, mas humana e elevada. A
novidade, o arrojo, talvez a mesma
indeterminação do pensamento, apenas vagamente
idealista e humanitária, fizeram a fortuna do
livro, junto da geração nova, o que prova pelo
menos que veio no seu momento: é
tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este
ciclo os sonetos compreendidos na secção dos Sonetos Completos, muitos
dos quais já entraram nas Odes
Modernas. Em 1874 teve este livro uma
segunda edição muito correta e contendo várias
composições novas que considero, tal como é e
com todos os defeitos inerentes à própria
essência do género, como definitiva.
Nesse
mesmo ano de 1874 adoeci gravissimamente, com
uma doença nervosa de que nunca mais pude
restabelecer-me completamente. A forçada
inação, a perspetiva da morte vizinha, a ruína
de muitos projetos ambiciosos e uma certa
acuidade de sentimentos, própria da nevrose,
puseram-me novamente, e mais imperiosamente do
que nunca, em face do grande problema da
existência. A minha antiga vida pareceu-me vã
e a existência em geral incompreensível. Da
luta que então combati, durante cinco ou seis
anos, com o meu próprio pensamento e o meu
próprio sentimento que me arrastavam para um
pessimismo vácuo e para o desespero, dão
testemunho, além de muitas poesias, que depois
destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira
Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as
composições que perfazem a quarta secção (de
1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as V.
Ex.a, não preciso comentá-las. Direi somente
que esta evolução de sentimento correspondia a
uma evolução de pensamento. O naturalismo,
ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o
de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções
verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o
sentimento, no que ele tem de mais profundo,
por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e
só aparente; no fundo não é mais do que um
paganismo intelectual e requintado. Ora eu
debatia-me desesperadamente, sem poder sair do
naturalismo, dentro do qual nascera para a
inteligência e me desenvolvera. Era a minha
atmosfera, e todavia sentia-me asfixiar dentro
dela. O .naturalismo, na sua forma empírica e
científica, é o struggle for
life, o horror duma luta universal no
meio da cegueira universal; na sua forma
transcendente é uma dialética gelada e inerte,
ou um epicurismo egoistamente contemplativo.
Eram estas as consequências que eu via sair da
doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora que a
interrogava com a seriedade e a energia de
quem, antes de morrer, quer ao menos saber
para que veio ao mundo.
A reação
das forças morais e um novo esforço do
pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo
tempo que percebia que a voz da consciência
moral não pode ser a única voz sem
significação no meio das vozes inúmeras do
Universo, refundindo a minha educação
filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer
na História, a confirmação deste ponto de
vista; Voltei a ler muito os filósofos,
Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo às
origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant.
Li ainda mais os moralistas e místicos antigos
e modernos, entre todos a Teologia
Germânica e os livros budistas. Achei
que o misticismo, sendo a última palavra do
desenvolvimento psicológico, deve
corresponder, a não ser a consciência humana
uma extravagância no meio do Universo, à
essência mais funda das cousas.
O
naturalismo apareceu-me, não já como a
explicação última das cousas, mas apenas como
o sistema exterior, a lei das aparências e a
fenomenologia do Ser . No psiquismo,
isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que
encontrei a explicação última e verdadeira de
tudo, não só do homem moral mas de toda a
natureza, ainda nos seus momentos fisicos
elementares. A monadologia de
Leibnitz, convenientemente reformada,
presta-se perfeitamente a esta interpretação
do mundo, ao mesmo tempo naturalista e
espiritualista. O espírito é que é o tipo da
realidade: a natureza não é mais do que uma
longínqua imitação, um vago arremedo, um
símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O
Universo tem pois como lei suprema o bem,
essência do espírito. A liberdade, em despeito
do determinismo inflexível da natureza, não é
uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na
santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser
um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do
mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só
por ele é que o Universo sabe para que existe:
só ele realiza o fim do Universo.
Estes
pensamentos e muitos outros, mas concatenados
sistematicamente, formam o que eu chamarei,
embora ambiciosamente, a minha filosofia. O
meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como
um budista. Há, com efeito, muita coisa comum
entre as minhas doutrinas e o budismo, mas
creio que há nelas mais alguma cousa do que
isso. Parece-me que é esta a tendência do
espírito moderno que, dada a sua direção e os
seus pontos de partida, não pode sair do
naturalismo, cada vez em maior estado de
bancarrota, senão por esta porta do
psicodinamismo ou panpsiquismo. Creio que é
este o ponto nodal e o centro de atração da
grande nebulose do pensamento moderno, em via
de condensação. Por toda a parte, mas
sobretudo na Alemanha, encontram-se claros
sintomas desta tendência. O Ocidente produzirá
pois, por seu turno, o seu budismo, a sua
doutrina mística definitiva, mas com mais
sólidos alicerces e, por todos os lados, em
melhores condições do que o Oriente.
Não sei
se poderei realizar, como tenho desejo, a
exposição dogmática das minhas ideias
filosóficas. Quisera concentrar nessa obra
suprema toda a atividade dos anos que me
restam a viver. Desconfio, porém, que não o
conseguirei; a doença que me ataca os centros
nervosos não me permite esforço tão grande e
tão aturado como fora indispensável para levar
a cabo tão grande empresa. Morrerei, porém,
com a satisfação de ter entrevisto a direcção
definitiva do pensamento europeu, o norte para
onde se inclina a divina bússola do espírito
humano. Morrerei também, depois de uma vida
moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez
de pensamentos tão irmãos das mais íntimas
aspirações da alma humana, e, como diziam os
antigos, na paz do Senhor! Assim o espero.
Os
últimos vinte e um sonetos do meu livrinho dão
um reflexo desta fase final do meu espírito e
representam simbólica e sentimentalmente as
minhas atuais ideias sobre o mundo e a vida
humana. É bem pouco para tão vasto assunto,
mas não estava na minha mão fazer mais, nem
melhor. Fazer versos foi sempre em mim cousa
perfeitamente involuntária; pelo menos ganhei
com isso fazê-los sempre perfeitamente
sinceros. Estimo este livrinho dos Sonetos por
acompanhar, como a notação dum diário íntimo e
sem mais preocupações do que a exatidão das
notas dum diário, as fases sucessivas da minha
vida intelectual e sentimental. Ele forma uma
espécie de autobiografia de um pensamento e
como que as memórias de uma consciência.
Se
entrei em tão largos desenvolvimentos
biográficos, foi por entender que, sem eles,
se havia de perder a maior parte do interesse
que a leitura dos meus sonetos pode inspirar.
Os críticos alemães acharão talvez
interessante observar as reações provocadas
pela inoculação do germanismo, no espírito não
preparado dum meridional, descendente dos
navegadores católicos do século XVI. Poderá
essa ser mais uma página, embora ténue, na
história do germanismo na Europa, e porventura
parecerá curiosa aos que se ocupam da
psicologia comparada dos novos.
Ao bom e
amável espírito que me introduz, a mim
neófito, nesses grandes círculos do pensamento
e do saber, tributo, além de muita simpatia,
indelével gratidão.
E sou de
V. Ex.a com a máxima consideração.
criado m.to obrg.º
ANTERO DE QUENTAL
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