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Realismo/Naturalismo

[Realismo] * [Naturalismo] * [Idealismo e Realismo] * [Antecedentes] * [Estética Literária Realista]
[Ideologia subjacente ao Realismo] * [Estética Naturalista] * [Cenáculo]



Realismo



Não é empresa fácil historiar – e muito menos resumir – o complexo movimento chamado «Realismo» na literatura portuguesa do séc. XIX. Por trás dessa palavra, cifra simplista, se escondem e convivem fenómenos e atitudes estéticas de natureza muito diversa. Abre esse período a ruidosa Questão Coimbrã, polémica literária que significou – na frase de Teófilo Braga – «a dissolução do Romantismo». Nela se manifestou pela primeira vez o protesto da geração nascida por meados do século contra o exagero balofo e caduco do gosto romântico, convertido em gesto vácuo de monótona artificiosidade. Dela surgiu o Realismo. A França – e através desta a Alemanha e a Inglaterra – foi a principal inspiradora dos dirigentes da rebelião coimbrã. Entre 1860 e 1865 saturaram-se de cultura europeia, aspirando a plenos haustos os ares que vinham de fora, absorvendo de golpe o humanitarismo social francês de 48. Leram e decoraram Proudhon e Quinet, o satanismo baudelairiano, a erudição histórica de Leconte de Lisle, o determinismo de Taine, as eloquências liberais humanitárias de Rugo, o diletantismo crítico de Renan, o revolucionarismo apostólico de Michelet, – e ainda Hegel, e Heine, e Darwin, e Flaubert. Espíritos muitos díspares, tinham, porém, em comum o prurido de irreverência e de liberdade, o sentimento de revolta contra a estagnação do Ultrarromantismo constitucionalista e o intuito de renovação do clima das letras e da vida portuguesa. Fora desta comunidade de formação e de atitude geracional, cada um deles seguiu uma trajetória criadora e vital acentuadamente diferenciada. Contudo, Antero de Quental, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro – e Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, que depois se lhes uniram – surgem nos manuais de literatura agrupados sob a epígrafe irmanadora de «Realismo». E talvez isso não seja tão injusto e inexato como à primeira vista pode parecer, porquanto não é fácil acharmos uma etiqueta mais adequada e precisa para denominar os laços emotivos, intelectuais e artísticos que os ligavam.

De facto, a palavra «realismo» já se envolvera na contenda literária de 1865-66 e fora utilizada como sinónimo de «arte nova» ou «estilo coimbrão». Um dos espíritos críticos mais avisados da época, Luciano Cordeiro, que terçou armas na polémica entre coimbrões e lisboetas, publicou um artigo n' A Revolução de Setembro (7 de novembro de 1867), intitulado «A arte realista», no qual, adotando uma posição eclética, verberava quer os moços que injuriavam Castilho em nome da «verdade» artística do «Realismo», quer os ultrarromânticos que tremiam de furor e desespero à simples menção da odiada palavra. Cordeiro acusava tanto uns como outros de aceitar como «Realismo» a banal e superficial «tradução da objetividade material das coisas». E anunciava, com a dissolução do Romantismo, periclitante e decrépito, o advento da «escola crítica», que, falando à consciência e à razão e exigindo maior cultura intelectual e mais profundo conhecimento dos problemas filosóficos e sociais da época, repudiaria tanto o realismo materialista da arte pela arte como a «inspiração» romântica – cuja manifestação nesse momento era o lirismo sentimental e elegíaco e o formalismo estreitamente provinciano da literatura oficial, na poesia e no romance. Cordeiro, de facto, percebia que nessa altura os rebeldes de  Coimbra representavam um segundo Romantismo que tinha tanto de truculento como o Ultrarromantismo tinha de pacato. Neste segundo Romantismo latejava, porém, uma inquietação viva por formas de verdade artística de que havia de brotar o Realismo.

O segundo episódio do processo de aparecimento do Realismo verificou-se em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino. Nesta nova manifestação pública da geração de Coimbra, já em plena maturidade, os contornos do Realismo desenharam-se mais nitidamente, embora a sua formulação teórica estivesse longe de responder aos postulados doutrinais hoje aceites como basilares do Realismo de escola francês. Eça de Queirós, que na Questão de 1865 fora simples espectador, e que até 1871 apenas se manifestara literariamente com uma nebulosa mistura de retalhos de romantismos de além-fronteiras e de parnasianismos de cunho satânico, foi agora o expositor doutrinário da «nova literatura». A sua conferência versou sobre «O Realismo como nova expressão da Arte» – título em que aparecia a palavra pomo de discórdia. Sob a influência do Cenáculo e do magistério de Antero, Eça aproximou curiosamente as teorias tainianas do determinismo do meio com os postulados estético-sociais de Proudhon, vergastando o estado decadente das letras nacionais e propugnando uma arte que respondesse às aspirações do espírito dos tempos, que agisse como regeneradora da consciência social e que, desterrando o falso, pintasse a realidade. Essa arte, uma arte revolucionária, era o Realismo; renegando a arte pela arte, a retórica vácua e a invenção romanesca, procedia pela observação e pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos carateres; enfim, visava a dilucidação dos problemas morais e o aperfeiçoamento da Humanidade. Com este cientificismo Eça já situava o Realismo, consciente ou inconscientemente, adentro do Naturalismo de Zola. A conferência de Eça provocou nova batalha. Nas páginas d' A Revolução de Setembro, Pinheiro Chagas – que fora motivo e combatente no recontro de 1865 – atacou Eça e o detestado Realismo. Outras penas, porém, saíram em defesa do conferencista e das suas ideias. E novamente Luciano Cordeiro entrou na lide, comentando a dissertação e salientando que já ele, em 1868, tinha defendido ideias parecidas, ao falar do seu conceito tainiano da arte. Dois anos mais tarde Eça publicou o conto «Singularidades duma Rapariga Loira» (recolhido em Contos, 1902) – que, na opinião de Fialho de Almeida, é «a primeira narrativa realista escrita em português».

A batalha efetiva da implantação do Realismo no romance começou com a publicação d' O Crime do Padre Amaro, seguida dois anos mais tarde por O Primo Basílio, obras caracterizadas ambas por métodos de narração e de descrição baseados numa minuciosa observação e análise psicofisiológicas, com a anatomia moral das personagens referida a fatores deterministas de meio, educação e hereditariedade, à maneira de Zola – e com evidente intuito de crítica de costumes e reforma social. O primeiro destes romances foi acolhido pelos críticos com um silêncio significativo e escandalizado. O segundo provocou o escândalo aberto. A colisão polémica entre os inimigos dos processos realistas de efabulação e os sequazes da nova tendência alcançou a sua maior virulência em 1880-81 – justamente quando o «chefe da escola» começara a fugir, com a publicação d' O Mandarim, da «incommode soumission à la vérité, la torture de l'analyse, l'impertinente tyrannie de la réalité». Naquela data novamente Pinheiro Chagas arremete, num jornal brasileiro, contra Eça, tachando-o de antipatriota, pelo modo como apresenta a sociedade portuguesa. António da Silva Pinto (1848-1911), que em 1877, num opúsculo intitulado Do Realismo na Arte, expusera a teoria da escola e elogiara Eça em termos calorosos, publicava agora outro (Realismos, 1880) ridiculizando os processos do novo estilo; e Camilo Castelo Branco, o mestre do romance romântico, então no cume da fama, que em 1879 dera a lume o Eusébio Macário, paródia da técnica narrativa dos realistas, publicava em 1880 um novo «pastiche», A Corja, onde o intuito caricatural era ainda mais evidente. O resultado foi uma violenta polémica, esmaltada de injúrias, com um dos paladinos das novas tendências, Alexandre da Conceição, e na qual tomaram parte apaixonadas penas dum e doutro bando. Curiosamente, Camilo, «realista inconsciente», acabou por aceitar, e empregar de boa fé, muitos dos processos do realismo, como provou n' A Brasileira de Prazins (1882). O atrevimento de certos passos dos romances de Eça, principalmente d' O Primo Basílio, escandalizava as pessoas de moral timorata, e chegaram a aparecer folhetos acusando os realistas de contribuírem para a «desmoralização das famílias» (Carlos Alberto Freire de Andrade, A Escola realista. Opúsculo oferecido às Mães, 1881).

Na década decorrida desde as Conferências Democráticas do Casino, o Realismo lograra um núcleo de adeptos que se empenharam em explicar e defender o seu credo estético, contra a acusação, que os ultrarromânticos puseram a circular, de «grosseria» e imoralidade. Alguns destes teóricos circunscreveram-se a um realismo limitado, como Luís de Magalhães («0 romance realista e a estética positivista», 1880; «Naturalismo e realismo», 1890), que deu o seu contributo à novelística com O Brasileiro Soares (1886), prefaciado por Eça. Dentro dessa tendência poderíamos incluir Trindade Coelho, Fialho de Almeida e Teixeira de Queirós. Outros fecharam-se num Naturalismo ortodoxo e intransigente. Os corifeus mais destacados desta posição doutrinária foram José António dos Reis Dâmaso (1850-1895) e Júlio Lourenço Pinto (1842-1907), autor da Estética Naturalista (1885), que pretendia ser o «evangelho» onde se continha o dogma da seita, mas que no campo teórico é o principal trabalho aparecido. Tanto estes dois como outros cultores do Naturalismo «enragé» não foram muito afortunados na prática artística dos seus dogmáticos princípios. Os seus romances, sistemáticamente elaborados de acordo com «O método a seguir na aplicação do Realismo à Arte» (1883-1884), de J. Lourenço Pinto, não passam hoje de mortos documentos histórico-literários. Tanto este «método» como os trabalhos críticos de Reis Dâmaso foram publicados na Revista de Estudos Livres, fundada em 1883 por Teófilo Braga sob o signo comtiano, publicação que foi o órgão oficial da ortodoxia naturalista. Nesta revista se insurgiu Reis Dâmaso contra Eça por este, ao publicar O Mandarim, ter «atraiçoado» os postulados do romance «fisiológico» à Zola. A oposição ao Realismo durava ainda em 1887, data em que Pinheiro Chagas, o «homem fata1», rejeitou A Relíquia no concurso para o Prémio D. Luís I, da Academia – a despeito de, nessa obra, Eça ter abandonado completamente as suas preocupações de escola para praticar uma fórmula livre e pessoal de estilização realista, na qual o seu lirismo essencial e o seu humor fantasista se combinavam com «as nudezas da Verdade». Por 1890 o Realismo-Naturalismo tinha perdido a sua vigência. Em 1893, o próprio Eça declara que «o homem experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que jamais existiu, a não ser em teoria)» («Positivismo e Idealismo», in Notas Contemporâneas).

Nos outros géneros o Realismo produziu frutos muito desiguais. Não houve uma crítica normativa, sistemática – se excetuarmos o malogrado Moniz Barreto, forte capacidade analítica e sintética, dotado de fina sensibilidade e munido de amplas leituras estrangeiras, que, inspirado em Taine, realizou uma obra breve, é certo, mas em muitos aspetos ainda válida. O teatro não foi atingido pelas novas ideias. Não houve drama que possa ser chamado realista; o palco ficou apegado anacrónicamente ao gosto romântico. A poesia foi multiforme e teve correntes que se entrecruzaram muito complexamente. Atuaram, com efeito, no período realista tendências assaz divergentes, sujeitas a influências muito diversas. Aliás, a própria natureza do género, de carácter subjetivo, íntimo e pessoal, conspirava contra o predomínio duma determinada doutrina. A par do revolucionarismo e do angustiado misticismo metafísico de Antero, encontramos a enfática poesia da Humanidade de Teófilo, o prosaísmo satírico de João Penha, o lirismo social e democrático de Guilherme de Azevedo e de Gomes Leal, o «quotidianismo» citadino e burguês de Cesário Verde, o parnasianismo preciosista de Gonçalves Crespo e o verbo satânico, caudaloso e tonitruante de Guerra Junqueiro, intentando casar Ciência e Poesia (v. Parnasianismo). Resumindo, poderia dizer-se que não foi o Realismo português, visto no seu conjunto, tanto uma escola literária, bem definida como um sentimento novo, uma nova atitude espiritual em que couberam direções e dimensões muito divergentes, que se alçou contra um «idealismo» sem ideais. A sua consequência mais vital e duradoura foi romper a incuriosidade do patriotismo provinciano dos ultrarromânticos, abrindo as comportas do espírito nacional a todas as influências de fora, alargando a escolha de motivos literários e renovando as letras duma maneira ampla.

Guerra da Cal, Ernesto, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979





Naturalismo



Em Portugal o Realismo e o Naturalismo, à semelhança do que ocorre com a literatura francesa, são duas direções estéticas com certa independência. Saindo do Realismo, a que é posterior cronologicamente, o Naturalismo dele se diferencia por conduzir a ciência para o plano da obra de arte, fazendo desta como que meio de demonstração de teses científicas, especialmente de psicopatologia. O Realismo, mais esteticizante, embora se apoie no que as ciências do séc. XIX vinham afirmando e desvendando, não vai até à profundidade analítica do Naturalismo, donde advém a sua não-preocupação pela patologia, característica do romance naturalista. A par disso, enquanto o Naturalismo implica uma posição combativa, de análise dos problemas que a decadência social evidenciava, fazendo da obra de arte uma verdadeira tese com intenção científica, o Realismo apenas «fotografa» com certa isenção a realidade circundante, sem ir mais longe na pesquisa, sem trazer a ciência, dissertativamente, para o plano da obra. O romance realista encara a podridão social usando luvas de pelica, numa atitude fidalga de quem deseja sanar os males sociais, mas sente perante eles profunda náusea, própria dos sensíveis e estetas. O naturalista, controlando a sua sensibilidade, ou acomodando-a à ciência, põe luvas de borracha e não hesita em chafurdar as mãos nas pústulas sociais e analisá-las com rigorismo técnico, mais de quem faz ciência do que literatura. Em suma, realistas e naturalistas amparam-se nos mesmos preconceitos científicos bebidos na atmosfera cultural que envolve a todos, mas diferenciam-se no modo como aproveitam os dados de conhecimento na elaboração da sua obra de arte.

Essas diferenças, postas aqui em síntese e nos seus aspetos fundamentais, não têm valor absoluto, porquanto existem vários pontos de contacto entre Realismo e Naturalismo, por se orientarem pelas mesmas «verdades» científicas e coexistirem numa época saturada de revolução cultural. Mais ainda: muito embora se classifiquem os romancistas dessa época em realistas e naturalistas conforme a predominância duma dessas direções estéticas, nos autores portugueses Realismo e Naturalismo acabam muitas vezes por se confundir.

Introduzido o espírito realista em Portugal através da Questão Coimbrã (1865), das Conferências do Casino (1871) e do Crime do Padre Amaro (1875) de Eça de Queirós, iniciou-se um movimento teórico que iria conduzir ao aparecimento do Naturalismo pouco depois. Assim, Júlio Lourenço Pinto (1842-1907) (Do Realismo na Arte, 1877; ensaios in Letras e Artes, 1883-1884; Estética Naturalista, 1885 ), José António dos Reis Dâmaso (1850-1895) (Anjo da Caridade, romance, 1871; Cenografias, contos, 1882; Júlio Dinis e o Naturalismo, 1884), António José da Silva Pinto (1848-1911) (Do Realismo na Arte, 3.ª ed., in Controvérsias e Estudos Literários, 1878; Realismos, 1880), Alexandre da Conceição (1842-1889) «Realismo e Realistas» e «Realistas e Românticos», in Ensaios de Crítica e Literatura, 1882), Alberto Carlos (A Escola Realista e a Moral, 1880), Luís Cipriano Coe!ho de Magalhães («Naturalismo e Realismo», in Notas e Impressões, 1890), Teixeira Bastos e outros teóricos movimentaram a questão do Naturalismo, que dessa forma se foi impondo ao longo da década de 80.

A par da atividade teorizante, alguns dos teóricos e outros autores lançaram-se à concretização do ideário naturalista. De pronto, duas foram as rotas seguidas, representadas pelo Realismo e pelo Naturalismo. Ressalvando-se os elementos comuns, à primeira pertenceram Eça de Queirós, Fialho de Almeida, até certo ponto Trindade Coelho – o contista de Os meus amores, cuja poética delicadeza merece lugar à parte –, Teixeira de Queirós, Luís de Magalhães (O Brasileiro Soares, 1886) e outros, mais preocupados com os aspetos exteriores da realidade física e humana, não obstante, como no caso de Eça, a tendência para o psicologismo. Mais descritivos do que analíticos, exceção feita de Eça, e assim mesmo parcialmente, não sondam a alma e o espírito das personagens senão para corroborar desvios de comportamento, no geral baseados no exacerbamento dos sentidos e nos apetites carnais. Esse primitivismo, feito de obediência a impulsos anormais superiores à vontade, tirânicos, patenteia-se em todos eles, exceto ainda Eça, que não lhe escapa por completo, como se observa na Luísa d' O Primo Basílio e na Amélia d' O Crime do Padre Amaro. Retratistas de exteriores e de episódios do quotidiano fisiológico e rasteiro, atêm-se mais à preocupação de surpreender coerentemente uma sociedade corroída que ao propósito de submetê-la à análise fria, imparcial, orientada para um mundo melhor. O naturalismo desses romancistas e contistas está muito mais na posição de espírito baseada no repúdio de qualquer subjetivismo e no desejar para a obra de arte uma orientação mental definidamente científica e objetiva. Esse relativo apego ao naturalismo de Zola explica-se pela influência recebida do romance balzaquiano, especialmente, e do flaubertiano.

É pouco, porém, em face do que se pode observar em romancistas ortodoxamente naturalistas, como José Augusto Vieira, Júlio Lourenço Pinto, Abel Botelho. Do primeiro citam-se: Fototipias do Minho, contos, 1879, e A divorciada, romance, 1881. Júlio Lourenço Pinto, teórico apaixonado do Naturalismo, pôs em vários romances (Margarida, 1879; Vida Atribulada, 1880; O Senhor Deputado, 1882; O Homem Indispensável, 1884; O Bastardo, 1889) e num livro de contos (Esboços do Natural, 1882) um quadro humano colhido ao vivo e, portanto, atual, mas com cientificismo dogmático que rouba autenticidade às suas criações, pelo intuito de só analisar produtos bastardos e hospitalares. Aqui, como em tudo, se observa a influência de Zola, tomado ao pé da letra, e não mesclado a talento e sensibilidade, necessários para o superar e criar romances de maior força e permanência.

Ainda sob a influência de Zola, Abel Botelho dispôs-se a criticar a sociedade do tempo na série Patologia Social, em outros três romances (Sem remédio..., Amor Crioulo, Os Lázaros) e num livro de contos (Mulheres da Beira), mostrando-lhe, justamente os aspetos perecíveis e em flagrante decomposição. Sua linguagem, forte, abundante, ágil, não esconde a vista aguda do homem sensível e o teatrólogo, capaz de perceber e pintar matizes e subtilidades de toda a ordem. Com altos e baixos, a Patologia Social está toda ela dentro dos moldes do Naturalismo, manifestando, além das qualidades do A., reconhecíveis ao primeiro contacto, a preocupação, em que está quase inteiramente isolado, pela luta de classes e pelas questões sociais em geral (cf. sobretudo Amanhã, vol. III da Patologia Social). Sua ortodoxia naturalista deformou em parte o alcance e o poder da sua obra, mas A. B. soube servir-se do magistério, de Zola para criar romances em que o seu talento de escritor vigoroso e fluente está presente a cada instante. Não escapou à tentação de pintar cenas e tipos escabrosos, mas mesmo nesse aspeto, sobretudo pelo modo como o fez, abriu caminho para as obras de Raul Brandão, debruçado sobre as mesmas chagas sociais, numa atitude de indignado e contemplativo, a sonhar um destino melhor para o Homem. Nesse sentido não se lhe nega valor, em que pese a superação do romance naturalista.

Com o advento do romance à Zola, o Realismo esgota o seu programa e o Naturalismo pouco dura no plano do interesse geral. Entrado o séc. XX noutra atmosfera mental, o Naturalismo desaparece, tragado pelo neo-espiritualismo que se vinha impondo a partir da década de 90. Feito o balanço, afora Eça, Fialho de Almeida e Trindade Coelho, mais realistas que naturalistas, só restam Abel Botelho, e, de certo ângulo, Teixeira de Queirós, como representantes de importância da prosa de ficção do último quartel do séc. XIX.

Moisés, Massaud, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979






Idealismo e Realismo 1



(A PROPÓSITO DA 2.ª EDIÇÃO DE «O CRIME DO PADRE AMARO»)
 
Aqui está pois um livro que eu escrevo pela segunda vez! Habent sua fata libelli!
Considerar-se-á talvez que esta reconstrução paciente é uma puerilidade, uma lamentável dissipação de esforço; que, num romance eivado originariamente de defeitos indestrutíveis, não é com adjetivos intercalados, entrelinhas e tiras coladas ao lado, que se melhoram os carateres mal observados, que se dá luz e cor a paisagens mortas e que se retificam os desenvolvimentos de uma paixão, erradamente seguidos...

Isto creio que é exato quando se trata de um trabalho puramente imaginativo, conto de fadas ou novela ideal.
Se eu criei um príncipe encantado ou um galã à Antony, e lhes dei, na minha edição original, cabelos louros e sonhos místicos – não é realmente útil refazer, numa nova edição, o meu trabalho, para dar ao herói cabelos negros e pesadelos carnais. É uma fantasia substituindo outra fantasia. Melhor seria escrever um livro novo, e apresentar o mesmo galã com outro nome, outra barba e outras paixões.
É porém diferente, penso eu, tratando-se de um romance de observação e de realidade, fundado em experiências, trabalhado sobre documentos vivos. Se eu quiser apresentar o tipo de um jogador, e o improvisar com reminiscências de leituras meio esquecidas, e sem mais notas do que aquelas que tenha acolhido uma noite, numa soirée honesta de praia de banhos, vendo primos joviais talharem uma batota doméstica a feijões – arrisco-me a fazer um jogador falso, pueril, vago e convencional.

Mas se, depois, eu frequentei a roleta bem instalada que o Estado patrocina, ou as baixas espeluncas da população do vício, se analisei, observei, colhi em flagrante a paixão, as expressões vivas em plena ação, estou habilitado talvez a pintar um jogador mais real e mais humano; e se, pela graça de um Deus favorável, o meu livro tiver uma segunda edição, eu devo claramente reconstruir o meu tipo com as observações e os documentos que acumulei – exatamente como, num tratado de medicina, um prático introduz, numa segunda edição, os últimos resultados das experiências recentes.

Quando publiquei pela primeira vez O Crime do Padre Amaro, eu tinha um conhecimento incompleto da província portuguesa, da vida devota, dos motivos e dos modos eclesiásticos. Depois, por uma frequência demorada e metódica, tendo talvez observado melhor, eu refiz simplesmente o meu livro sobre estas novas bases de análise.

Quer isto significar que O Crime do Padre Amaro, publicado agora, dá em absoluto, na sua realidade complexa, o padre e a beata, a intriga canónica, a província em Portugal nesse ano da graça de 1879? Oh! certamente que não! O quadro tem infelizmente lacunas, lados de natureza mal estudados, recantos de alma explorados incompletamente, amplificações, exageros de traço... "É, no entanto, toda a soma de observação e de experiência que eu possuo sobre este elemento parcial da sociedade portuguesa. A outros, mais penetrantes e mais hábeis, compete recomeçar este estudo, e decerto com realidade superior.

É por meio desta laboriosa observação da realidade. Desta investigação paciente da matéria viva, desta acumulação beneditina de notas e documentos, que se constroem as obras duradouras e fortes. Se as minhas são fracas e efémeras, é que eu não soube surpreender a verdade com suficiente penetração, e não provém decerto de que o método não seja eficaz.

A arte moderna é toda de análise, de experiência, de comparação. A antiga inspiração que em quinze noites de febre criava um romance, é hoje um meio de trabalho obsoleto e falso. Infelizmente já não há musas que insuflem num beijo o segredo da natureza! A nova musa é a ciência experimental dos fenómenos – e a antiga, que tinha uma estrela na testa e vestes alvas, devemos dizê-lo com lágrimas, lá está armazenada a um canto, sob o pó dos anos, entre as couraças dos cavaleiros andantes, as asas de Eloá; a alma de Antony, os suspiros de Graziela, e os outros acessórios, tão simpáticos mas tão arcaicos, do velho cenário romântico!

O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil e em Portugal alguma atenção da crítica, sobretudo quando foi publicado, ulteriormente, um romance intitulado – O Primo Basílio. E no Brasil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se aduzir nenhuma prova efetiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do Sr. Zola – La Faute de l'Abbé Mouret – ou que este livro do autor do Assommoir – e de outros magistrais estudos sociais, sugerira a ideia, os personagens, a intenção de O Crime do Padre Amaro.

Eu tenho algumas razões para crer que isto não é correto. O Crime do Padre Amaro foi escrito em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874. O livro do Sr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret ( que é o quinto volume da série Rougon-Macquart ), foi escrito e publicado em 1874.

Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) considero esta razão apenas como subalterna e insuficiente. Eu podia, enfim, ter penetrado no cérebro, no pensamento do Sr. Zola, e ter avistado, entre as formas ainda indecisas das suas criações futuras, a figura do abade Mouret –  exatamente como o venerável Anquises, no vale dos Elísios, podia ver, entre as sombras das raças vindouras, flutuando na névoa luminosa do Lete, aquele que um dia devia ser Marcelo! Tais coisas são possíveis. Nem o homem prudente as deve julgar mais extraordinárias do que o carro de fogo que arrebatou Elias aos Céus – e do que outros prodígios provados.

O que, segundo penso, mostra melhor que a acusação carece de exatidão, é a simples comparação dos dois romances. La Faute de l'Abbé Mouret é, no seu episódio central, o quadro alegórico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O abade Mouret (Sérgio), tendo sido atacado de uma febre cerebral, derivada principalmente da sua exaltação mística no culto da Virgem, na solidão de um vale abrasado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do século XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação alegórica do Paraíso. Aí, tendo perdido na febre a consciência de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdócio e da existência da aldeia, e a consciência do universo a ponto de ter medo do sol e das árvores do Paradou como de monstros estranhos – erra durante meses, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o génio, a Eva desse lugar de legenda.

Albina e Sérgio, seminus como no Paraíso, procuram sem cessar, por um instinto que os impele, uma árvore misteriosa, da rama da qual cai a influência afrodisíaca da matéria procriadora; sob este símbolo da árvore da ciência se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir, na sua inocência paradisíaca, o meio físico de realizar o amor. Depois, numa mútua vergonha súbita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e daí os expulsa, os arranca o padre Arcângias, que é a personificação teocrática do antigo Arcanjo.
Na última parte do livro, o abade Mouret recupera a consciência de si mesmo, subtrai-se à influência dissolvente da adoração à Virgem, obtém por um esforço da oração e um privilégio da graça a extinção da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada de humano, uma sombra caída aos pés da cruz; e é sem que lhe mude a cor do rosto que ele asperge e responsa o esquife de Albina, que se asfixiou no Paradou, sob um montão de flores de perfumes fortes.

E dito isto, parece ficarem indicados e suficientemente lúcidos, os motivos que tenho para não supor O Crime do Padre Amaro uma tradução malfeita da Faute de l'Abbé Mouret. E não insisto na diferença das datas, apesar dela constituir o que se chamava, creio eu, em lógica, uma impossibilidade metafísica, porque sou bom cidadão, e o art. 6.º da Carta impõe implicitamente o dever de não descrer dos milagres. Somente devo dizer que os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l'Abbé Mouret, não tinham, infelizmente, lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, que foi, talvez, a origem de toda a sua glória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro.

Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má fé cínica poderiam assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama de uma alma mística, a O Crime do Padre Amaro, simples intriga de clérigos e de beatas, tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé de província portuguesa.

– Mas, dir-me-ão indignadamente pessoas bem intencionadas, como se podem produzir tais acusações? – Meu Deus, bem simplesmente. Dos dois livros, a crítica decerto conheceu primeiro O Crime do Padre Amaro, e quando um dia, por acaso, descobriu, anunciado num jornal francês, ou viu numa vitrina de livreiro, a Faute de l'Abbé Mouret, estabeleceu imediatamente uma regra de três, concluindo que a Faute de l'Abbé Mouret devia estar para O Crime do Padre Amaro como a França está para Portugal. Assim achou sem esforço esta incógnita: PLAGIATO! Ou ainda, o que é mais provável, e mais grato ao Sr. Zola, conhecendo já a Faute de l'Abbé Mouret, apenas viu anunciado O Crime do Padre Amaro, estabeleceu logo a mesma regra de três, com os termos invertidos – e achou a mesma incógnita: PLAGIATO! Sic itur ad abyssum!

Mas parece que esta Faute de l'Abbé Mouret, tem sido para mim uma vasta e rica mina de arte, de onde eu vou, todas as manhãs, desenterrar a minha provisão de carateres, de paisagens, de imagens e de adjetivos. Assim fui amargamente acusado de ter copiado o Paraíso do Primo Basílio, do Paradou, da Faute de l'Abbé Mouret. O Paraíso, se por acaso leram e se lembram daquele meu livro, é um terceiro andar barato, para os lados da Bemposta, alugado ao mês, onde uma senhora e um cavalheiro se vão amar duas vezes por semana, do meio-dia às três. O Paradou, como já disse, é aquela vasta e maravilhosa floresta, onde erram, quase nus, Sérgio e Albina, procurando, num instinto amoroso, a árvore iniciadora da ciência!

–Mas então – dir-me-ão ainda – onde está a imitação?
– Pois não vêem? Para-dou, Para-íso – há evidentemente plagiato nas duas primeiras sílabas !
 
Que isto não pareça provir de um espírito rebelde e irreverente para com a crítica. Ninguém a respeita mais do que aqueles que fazem obras de observação e de realidade.

Os românticos (como confessa Sainte-Beuve) odiavam a crítica, e com razão, pelo mesmo motivo por que os monarcas absolutos detestavam a opinião pública. Para os românticos, a poesia ou a prosa desciam diretamente da inspiração, como o direito dos reis descia diretamente de Deus. O crítico, simples raciocinador, não tinha direito a achar defeitos ou mesmo a examinar de perto o que a inspiração, a musa, mandavam lá de cima a um Musset ou a uma George Sand. A poesia era um presente divino. O crítico, não iniciado, não podia avaliar pelas regras triviais do senso comum aquilo que cantava ou declamava um homem que vivia em comunicação permanente com o ideal. O poeta, o artista, o romancista, eram assim seres excecionais, fora da lei e da regra humana, eleitos, formando uma legião de seres entre o homem e o anjo! A sua vida mesmo não participava das condições humanas:
 
Aimer, prier, chanter, voilà toute ma vie...
 
diz Lamartine! Pode compreender-se a sua irritação quando um Cuvillier-Fleury, um Pontmartin, um Planche, pretendiam julgá-lo pelas leis razoáveis com que julgavam os outros homens.

Nós somos cristos! – exclamava Novalis. – E um Cristo suporta mal um folhetim hostil...
Nós, porém, burgueses que não vivemos em comunicação permanente com o ideal, que nunca recebemos o beijo da musa, a quem a forma aérea jamais disse:
 
Poète, prends ton luth et me donne un baiser...
 
nós, homens, consentimos em ser julgados por homens. Estudando a realidade humana e social, aceitamos como um favor um conselho, uma prática, todas as admoestações daqueles que, vivendo na humanidade e na sociedade, têm uma experiência própria dessas realidades.

E isto não é só respeito pelos críticos, pelos príncipes da crítica, pelos seus gros bonnets, os ditadores da opinião, os especialistas – e de qualquer homem, o mais obscuro, ainda que nunca escrevesse uma linha, podemos aceitar indicações preciosas.
Quando se trata de eloquência ou de retórica, decerto só se pode admitir o crítico que conheça estas artes ilustres. Mas quando escrevemos de paixões ou de vícios, todo aquele que os sentiu, ainda que os não saiba exprimir, pode julgar-nos e apontar-nos o erro. Só um poeta sabe apreciar Graziela, obra de eloquência lírica, mas um simples carpinteiro pode discutir o Assommoir, obra de realidade social.

Eu, por mim, adoro a crítica: leio-a com unção, noto as suas observações, corrijo-me quando as suas indicações me parecem justas, desejo fazer minha a sua experiência das coisas humanas.
 
Foi por ocasião do aparecimento destes meus livros, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, que se começou a falar em Portugal no Realismo e numa outra instituição que me dizem chamar-se a ideia nova. Ora o meu nome tem sido geralmente, em Portugal e no Brasil, associado a este realismo e a esta nova instituição. Designo-a pelo nome genérico de instituição, porque ignoro se é uma nova arte, uma nova política, uma nova religião ou uma nova filosofia; não sei mesmo se não será um novo clube ou uma companhia de seguros! Não creio que tivesse nascido em França, em Inglaterra ou na Alemanha, as três grandes nações pensantes. Suponho que é de origem portuguesa e inteiramente local. Ignoro os seus fins, o seu programa, os seus métodos, se já lançou, como é do estilo, a sua carta aos Coríntios e se nos traz alguma nova conceção do Universo!

Contudo, eu sou, nos documentos que tenho presentes, designado como «um dos seus chefes». Deduzo pois que há outros – talvez sete, como diante de Tebas! Num livro de versos que recebo agora, comentado por um mestre douto e amado, leio, a pág. 2, que «Lisboa recebeu com Hossanas os pregoeiros da ideia nova». Concluo que tivemos, como outros quaisquer, a nossa entrada triunfal em Jerusalém, e vejo daqui a nossa estimável estação dos Caminhos de Ferro, sonora de cantos e verde de palmas!... Em todo o caso, parece que foi breve o dia das alegrias e dos risos, porque um jornal recente me diz: «Aí estão, pois, aos golpes desse prodigioso atleta, prostrados por terra e mordendo o pó, os da ideia nova!» Concluo que fomos derrotados por um monstro solitário, um ser disforme no género de Polifemo ou do amante de Ônfale, e que, dos da «ideia nova», como da ala dos cavaleiros saxónios depois da jornada de Hastings, não resta mais do que um estendal de cadáveres, sobre que pairam os corvos de Usk!...

Tal foi a vida breve e morte trágica de uma ideia nacional que, segundo os jornais me afirmam, nos custou a vida, a mim e aos outros chefes!...

Eu sou pois associado a estes dois movimentos, e se ainda ignoro o que seja a ideia nova, sei pouco mais ou menos o que chamam aí a escola realista. Creio que em Portugal e no Brasil se chama realismo, termo já velho em 1840, ao movimento artístico que em França e em Inglaterra é conhecido por «naturalismo» ou «arte experimental». Aceitemos porém realismo, como a alcunha familiar e amiga pela qual o Brasil e Portugal conhecem uma certa fase na evolução da arte.

Este movimento tem encontrado em Portugal grandes hostilidades. Também no Brasil (não o digo sem algum despeito patriótico), se tem combatido o realismo com um talento superior e com ideias.

A opinião, porém, que os nossos inimigos fazem deste movimento literário, parece ser a seguinte: «Que é uma «escola» e se chama a escola realista. Que foi o Sr. Zola que a inventou, um belo dia, em Paris. Que o seu fim é pintar com minuciosidade quadros obscenos. E, finalmente, que tem uma retórica especial, abstrusa, torturada, rutilante, sem gramática e sem vernaculidade!»

É-me desagradável afetar um tom pedagógico e vir dar um desmentido autoritário a estas afirmações de pessoas estimáveis...
Mas na realidade o naturalismo nem foi inventado pelo Sr. Zola, nem consiste em descrever meticulosamente obscenidades, nem tem retórica própria, nem sobretudo é uma escola!

Em Portugal sempre houve uma tendência tenaz para subdividir a arte em escolas – o que prova, de resto, uma literatura de gramáticos e retóricos. Inventámos assim toda a sorte de escolas literárias – mais, certamente, em número, do que as de instrução primária! Chegámos a ter a escola de Lisboa, a escola de Coimbra, a escola de Castilho... coisas que nos parecem hoje tão antigas como o rapto de Helena ou as façanhas do impetuoso Ájax. Ainda conservamos, porém, as grandes escolas: clássica, romântica, satânica, elegíaca, e toda a sorte de confrarias das letras, isoladas em cubículos e celas, separadas por paredes-mestras : o cubículo de Boileau, o cubículo de Lamartine, o cubículo de Byron, o cubículo de Petrarca... Até o subtil e fino Baudelaire tem o seu cubículo! E aqueles grupos inimigos, arreganhando-se o dente, uns usando a cabeleira de Racine, outros o capacete de Percival, outros os cornos de Satã, outros a frauta pastoril de Semedo, ali vivem sepultados nas suas prosódias rivais, murando-se dentro delas, como o anão chinês dentro do seu vaso de porcelana...

Agora, temos a escola realista !

Não – perdoem-me – não há escola realista. Escola é a imitação sistemática dos processos de um mestre. Pressupõe uma origem individual, uma retórica ou uma maneira consagrada. Ora o naturalismo não nasceu da estética peculiar de um artista; é um movimento geral da arte, num certo momento da sua evolução. A sua maneira não está consagrada, porque cada temperamento individual tem a sua maneira própria: Daudet é tão diferente de Flaubert, como Zola é diferente de Dickens. Dizer «escola realista» é tão grotesco como dizer «escola republicana». O naturalismo é a forma científica que toma a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia.

Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos factos e da experiência dos fenómenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade.

Outrora uma novela romântica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje o romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-se o jogo das paixões a priori; hoje, analisa-se a posteriori, por processos tão exatos como os da própria fisiologia. Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos é a mesma que rege os seres vivos, que a constituição intrínseca de uma pedra obedeceu às mesmas leis que a constituição do espírito de uma donzela, que há no mundo uma fenomenalidade única, que a lei que rege os movimentos dos mundos não difere da lei que rege as paixões humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente de observar. O verdadeiro autor do naturalismo não é pois Zola – é Claude Bernard. A arte tornou-se o estudo dos fenómenos vivos e não a idealização das imaginações inatas...

É fácil deduzir daqui que não foi o Sr. Zola o inventor do natutalismo. Ele é decerto uma forte e grande personalidade que deu ao movimento um grande e forte impulso. Ninguém como ele, nos seus escritos, o tem defendido e desprendido melhor do vago de teoria – e sejam quais forem os seus defeitos, o homem que escreveu o Assommoir ficará como um dos mais prodigiosos artistas deste século de artistas. Mas seria tão absurdo dizer que ele inventou o naturalismo, como dizer que Gambetta inventou a democracia!
Neste século, porém, no período científico do naturalismo, o Sr. Zola teve precursores ilustres: antes dele, estão os Goncourts; antes dos Goncourts, Flaubert, Taine e Sainte-Beuve – (porque o método do crítico penetrante que estuda um romancista, não difere do método do romancista que estuda um personagem) – e antes destes, havia ainda Stendhal, e ao lado dele, Balzac, e no século passado, Molière... Não me obriguem a remontar até Homero!... É verdadeiramente uma genealogia ilustre!

 
Mas, dir-me-á o leitor – o verdadeiro leitor, o cidadão que não é letrado nem teórico, mas simplesmente um ser impressionável, um átomo do grande público, que é no fim de tudo quem faz a arte – em que consiste pois esse famoso naturalismo? Que tenho eu com isso? Que posso eu lucrar com essa descoberta? Em que me interessa ela? Em que me educa, me diverte, me mostra a sua superioridade sobre a velha novela idealista? Porque me querem forçar a comprar o Sr. Zola, em vez de levar o meu dinheiro ao Sr. Júlio Sandeau?

Ora aqui tens, meu caro concidadão: supõe que tu queres ter na tua sala a imagem de Napoleão I passando os Alpes (estas fantasias são-te permitidas: a parede é tua, e podes cobri-la de escarros ou de figuras imperiais; são coisas que ficam com a tua consciência e com o Deus severo que te há-de julgar um dia). Que fazes tu? Chamas dois pintores: um que é idealista e que vem com a sua grenha, o seu casaco de veludo e o seu chapéu de aba larga, e outro que é realista, e que vem, como tu, de chapéu alto, com a sua caixa de tintas debaixo do braço. Dás-lhes o teu assunto e vais aos teus negócios.

E aqui está o que se passa na tua ausência sobre a tua parede:

O pintor idealista arregaça as mangas e brocha-te imediatamente este quadro: um píncaro de montanha; sobre este píncaro, um cavalo com as proporções heroicas do cavalo de Fídias, empinado; sobre esse cavalo premindo-lhe as ilhargas, Napoleão, de braços e pernas nuas, como um César romano, com uma coroa de louros na cabeça. Em volta, nuvens; em baixo, a assinatura.

Dir-me-ão: é falso! – Como, falso ? Este quadro foi, creio que é ainda, uma das joias do Museu do Luxemburgo.

Durante esse tempo, o pintor realista, tendo lido a história, consultado as crónicas do tempo, estudado as paisagens dos Alpes, os uniformes da época, etc., deixou na tua parede o seguinte quadro: sob um céu triste, um caminho escabroso de serra; por ele, resfolgando e retesando os músculos, sobe uma mula; sobre a mula, Bonaparte, abafado em peles, com um barrete de lontra e óculos azuis por causa da reverberação da neve, viaja, doente e derreado ...

Qual destes quadros escolhes tu, caro concidadão? O primeiro, que te inventou a história ou o segundo, que ta pintou? O idealista deu-te uma falsificação, o naturalista, uma verificação. Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica.

Dir-me-ás talvez: mas isso é simples matéria de acessório, de decoração! E quando se trata de pintar a alma, o ser interior...

– Perfeitamente, aqui tens outro exemplo:

Suponho (tudo é permitido a uma alma como a tua, amante da arte e curiosa da vida), suponho, digo, que se trata de te descrever uma menina que mora ali defronte, num prédio da Baixa.

Apresentam-se dois novelistas – o idealista e o naturalista. Tu dás-lhes o teu assunto: uma menina que se chama Virgínia e que habita ali defronte.

O idealista não a quer ver nem ouvir; não quer saber mais detalhes. Toma imediatamente a sua boa pena de Toledo, recorda durante um momento os seus autores, e, num relance, cria-te a menina Virgínia deste modo: na figura, a graça de Margarida; no coração, a paixão grandiosa de Julieta; nos movimentos, a languidez de qualquer odalisca (à escolha); na mente, a prudência de Salomão, e nos lábios, a eloquência de Santo Agostinho...

Dir-me-ão: é mentira! – Como, mentira? Vejam a criação da Morgadinha dos Canaviais, um romance, e feito pelo talento delicado e paciente de Júlio Dinis, o artista que entre nós mais importância deu à realidade. E todavia a sua Morgadinha é bem extraordinária. Ali está uma burguesinha da serra, vivendo na serra, educada na serra, e querendo ser a personificação da mulher da classe média em Portugal: ama com a sinceridade heroica de Cordélia; tem com os sobrinhos o tom de maternidade romântica da amante de Werther; pensa, em matéria de moral, com a altivez de Bossuet; fala da natureza com o colorido místico de Lamartine; junta a isto, em intrigas sentimentais, a finura das duquesas de Balzac – e quando fala de amor, julgamos ouvir Rousseau declamar. Sem contar que tudo quanto diz, de poesia, de arte ou de religião, é de Chateaubriand!...

Mas voltemos à nossa Virgínia, que mora ali defronte. É agora o nosso escritor naturalista que a vai pintar. Este homem começa por fazer uma coisa extraordinária: vai vê-la!...

Não se riam: o simples facto de ir ver Virgínia quando se pretende descrever Virgínia, é uma revolução na arte! É toda a filosofia cartesiana: significa que só a observação dos fenómenos dá a ciência das coisas. Este homem vai ver Virgínia, estuda-lhe a figura, os modos, a voz; examina o seu passado, indaga da sua educação, estuda o meio em que ela vive, as influências que a envolvem, os livros que lê, os gestos que tem – e dá enfim uma Virgínia que não é Cordélia, nem Ofélia, nem Santo Agostinho, nem Clara de Borgonha – mas que é a burguesa da Baixa, em Lisboa, no ano da graça de 1879.

Caro concidadão, a qual dás tu a preferência? O primeiro mentiu-te. A Virgínia que tens diante de ti é um ser vago, feito de frases, que não tem carne nem osso, e que, portanto, não pertencendo à humanidade a que tu pertences, não te pode interessar. É uma quimera, não é um ser vivo. O que ela diz, pensa ou faz, não te adianta uma linha no conhecimento da paixão e do homem.

Uma tal Virgínia não pode ficar como documento de uma certa sociedade, num determinado período: é um livro inútil.

Tens diante de ti uma moeda falsa.

O segundo dá-te uma lição de vida social: põe diante dos teus olhos, num resumo, o que são as Virgínias contemporâneas; faz-te conhecer o fundo, a natureza, o carácter da mulher com quem tens que viver. Se a Virgínia, em conclusão, não é boa – evitarás que tua filha seja assim; podes-te acautelar desde já com a nora que te espera; é-te lição no presente, e, para o futuro, ficará como um documento histórico.

É uma verificação da natureza.

E aqui tens, caro concidadão, reduzido a fórmula familiar, ao alcance da tua compreensão e despido de névoas filosóficas, o que é o idealismo e o que é o naturalismo, na pintura, no romance e no drama.
 
Brístol,1879.

1 - Este artigo, encontrado entre os papéis de Eça de Queiroz, esboçado a lápis, foi escrito para servir de prefácio à 2.ª edição, refundida, de O Crime do Padre Amaro. Posto de parte pelo seu tom irónico e ligeiro, que mal se coadunava com a índole grave do livro, o autor aproveitou contudo alguns trechos essenciais, que formam a «Nota à 2.ª Edição» que atualmente antecede aquele seu romance.

Queiroz, Eça de, Cartas Inéditas de Fradique Mendes, Lello & Irmão - Editores, Porto,1973







Antecedentes




Na segunda metade do século XIX, a Europa vê-se sacudida de lés a lés por novos ventos políticos, científicos, sociais e religiosos.
A Espanha proclama a república em 1868; a França imita-a pouco depois; Vítor Manuel destrói os Estados Pontifícios em 1870; anos atrás desfazia-se a Santa Aliança, último reduto contra a expansão do liberalismo.

Lamark insiste na evolução dos seres por influência do meio; Darwin apregoa a mesma evolução pela seleção natural; Huxley aplica as doutrinas transformistas ao próprio homem; Mendel descobre as leis da hereditariedade. Começa desta maneira a gerar-se uma visão materialista, pampsiquista e monista do Cosmos ao mesmo tempo que se abre o caminho para o estudo do homem sob os aspetos psíquico e fisiológico.

A Revolução Francesa tinha conduzido ao apogeu a burguesia capitalista. Para maior desequilíbrio económico, o motor de explosão e o elétrico lançam agora no desemprego milhões de braços. O proletariado começa a ser um facto alarmante. Engels e Carlos Marx apontam a solução comunista para a «questão social». Saint Simon, Proudhon, Fourier e outros preferem o socialismo utópico. A luta de classes prepara-se para deixar na literatura o seu rasto de dor e sangue.

O criticismo histórico e racionalista curva-se sobre as fontes do cristianismo. Hamach, Renan, Reinach e outros, sem negarem o facto cristão, desvirtuam-no e procuram explicá-lo pela fé puramente idealista.


1.    Os literatos reagem contra o idealismo romântico

Depois de 1850, os homens de letras constatam que a Química, a Física, a Biologia, a Zoologia, a Botânica, para não falarmos da Matemática, numa palavra, constatam que todas as ciências procuravam alicerçar-se em comprovadas certezas e que até os cultores de Arte se esforçavam por serem verídicos, objetivos.

Ora, sendo estas coisas assim, porque é que os literatos haviam de continuar presos 
 
a um sentimentalismo doentio,
a um idealismo aéreo, divorciado da realidade,
a uma expressão hipócrita da paixão amorosa,
à idealização de um mundo irreal?
 
Sentindo que perdiam um comboio a correr vertiginosamente para o campo da verdade nua e crua, reagiram. Como as restantes atividades do espírito humano, a literatura começou a buscar a realidade, não a deformada pelos românticos, mas a autêntica, tal qual se apresenta, sem artifícios, sem retoques.

Ainda por analogia com a técnica e a indústria e a ciência, que não conhecem fronteiras mas são as mesmas em qualquer clima, a nova arte literária deixou de ser nacionalista e revestiu-se de carácter cosmopolita.


2.    Esta reação chega a Portugal

Portugal, nesta época, já não estava separado do resto da Europa. O caminho de ferro encurtara a distância Coimbra – Paris em meses.A barreira dos Pirenéus era ineficaz para suster o avanço rapidíssimo destas novas ideias. Por isso, a sua influência entre nós não se fez esperar.

No primeiro período do Romantismo, como dissemos, os escritores portugueses sofreram influências do romance histórico de Walter Scott e Vítor Hugo (Nossa Senhora de Paris sobretudo), da poesia sentimental e tradicionalista de Lamartine, da evocação histórico-religiosa de Chateaubriand, do espiritualismo filosófico de Vítor Cousin, da teoria da literatura de Madame de Staël e de Schlegel.

Agora, novas influências vão entrar em ação. De França, sobretudo, chegam a Coimbra livros onde se aponta à literatura uma orientação muito diferente da seguida nas décadas anteriores. E todas as especializações do pensamento humano e da cultura vão ser afetadas em Portugal por doutrinas inovadoras nascidas no estrangeiro.

Barreiros, António José, HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992






Estética Literária Realista



Numa conferência proferida no «Casino», disse Eça de Queirós a respeito do Realismo (reconstituição de Antônio Salgado Júnior, História das Conferências do Casino, Lisboa, 1930J páginas 55-56):
 
«É a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada arte de promover a emoção, usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o realismo é uma reação contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter, é a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.»
 
E, sobre os preceitos a seguir na nova escola, acrescentou o mesmo romancista:
 
«A norma agora são as narrativas a frio, deslizando como as imagens na superfície de um espelho, sem intromissão do narrador. O romance tem de nos transmitir a natureza em quadros exatíssimos, flagrantes, reais.»
 
Estas frases do autor d'Os Maias são elucidativas. Aí se encontram as principais características do Realismo, que podemos resumir nas alíneas que seguem.
 
a) Conteúdo ideológico profundo.
 
A carga ideológica transportada nas obras românticas não era grande, nem mesmo bem definida. A este vazio se quiseram opor, logo de início, os realistas. O problema aparece bem enunciado na «Questão Coimbrã» por Antero, que pergunta na carta Bom Senso e Bom Gosto : «Será possível viver sem ideias ? Esta é que é a grande questão». E tal problema foi trabalhado, ou pelo menos começou a sê-lo, nas «Conferências do Casino», que, no entender dos seus promotores, deviam expor ao público português «as grandes questões contemporâneas, religiosas, literárias, políticas, sociais e científicas». Proibidas as «Conferências», o aprofundamento ideológico da obra de arte foi ainda a finalidade de muitos artigos d'As Farpas, da poesia de Antero, das obras de Oliveira Martins, etc.
A literatura – era convencimento geral dos realistas – devia inspirar-se nas correntes filosóficas e sociológicas modernas (hegelianismo, positivismo, socialismo) para exprimir a real problemática do homem da época. Só a expressão dessa problemática lhe ofereceria conteúdo ideológico válido.
 
b) Impassibilidade na análise do real.
 
Reage a escola realista contra o idealismo e as atitudes emocionais enfáticas e hiperbólicas dos românticos e advoga a análise, síntese e exposição da realidade com verdade e com neutralidade do coração. O «eu» pensante ficará indiferente diante da Natureza, que deve ser recriada com exatidão, com pormenor, em retratos fidelíssimos.
Perante o bem e o mal, o vício e a virtude, o belo e o feio, o coração do escritor realista não deixará transparecer quaisquer emoções. Também não dará nomes belos ao que é imoral e baixo, nem encobrirá as reais consequências do crime, por mais perfeita e apaixonante que tenha sido a sua execução.
 
c) Crítica social e de costumes.
 
Cedo se comprometeram  os realistas portugueses com a reforma da sociedade. O passado olhavam-no como estéril; o presente sem nada que se lhe aproveitasse. Daí os ataques que começaram a ser lançados d’As Farpas, das Odes Modernas de Antero, dos romances de Eça de Queirós, das obras e Oliveira Martins contra a alta e média burguesia e o clero, contra a política e a literatura do tempo, contra a educação e a economia, etc.
Paralelamente, os realistas descobrem e atacam a imoralidade, os maus costumes. Analisam corajosamente os aspetos baixos da vida, sobretudo os vícios e as taras, não ocultando essas mazelas por mais asquerosas e degradantes que sejam. E, para que a obra literária se revista de cariz científico, esforçam-se por relacionar as causas (biológias e/ou sociais) do comportamento das personagens do romance com o tipo desse mesmo comportamento.
Às vezes, os processos desta crítica moral acabam eles próprios paradoxalmente por fomentar também a imoralidade. Nem sempre são tão inofensivos e construtivos como pretendiam os seus autores. Mas o que desejavam com essa crítica era, sem dúvida, corrigir as pessoas que por ela se viam atingidas como se se olhassem num espelho. Não se lê em Stendhal que «o romance é um espelho que se passeia ao longo de uma estrada»?
 
d) Técnica narrativa e descritiva perfeita.
 
Em oposição à retórica e ao hiperbolismo dos românticos, os realistas procuram ver as coisas e os factos dentro dos seus limites naturais e depois recriá-los, narrando ou descrevendo, de maneira que a obra literária não seja mais que um puro reflexo da realidade.
Por isso, usam os escritores a expressão simples, o tom desafetado. São então mestres no desenho, no colorido, na inserção oportuna e significativa do tempo da narração. Deste modo, os lugares, os acontecimentos, as ideias transparecem das suas criações literárias sem esforço, sem convencionalismos, com naturalidade. Simultaneamente cuidam com esmero o aspeto formal da escrita.
 
Lembramos que o romance romântico é, por vezes, absolutamente verosímil e pode mesmo propugnar uma tese. Mas, na sua base, é todo fruto da imaginação e do sentimentalismo do autor, que, por isso, lança mão de lugares comuns arredados da objetividade: o quimérico e o prodigioso, o ideal e o sentimento, o monstro e o super-homem. Nisto se afasta do romance realista.

Barreiros, António José, HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992






Ideologia subjacente ao Realismo



a) Irreligiosismo.
 
Os novos de Coimbra comentam asserções de Loisy e de Renan, que no seu criticismo bíblico separavam o Cristo da história do Cristo da fé. Agrada-lhes sobretudo uma religião sem dogmas, de cunho panteísta. Assumem atitudes vincadamente anticlericais.
 
b) Inconformismo com a tradição.
 
Graças ao avanço da ciência e da técnica, os nossos como os de fora convencem-se de que o homem pode superar muitas limitações que paralisaram os antigos; e, conseguido o nivelamento de classes, acreditam que a consciência humana não mais se importará com os entraves que lhe opunha outrora a sociedade absolutista, burguesa e feudal.
Sobre traçado de Michelet, muitos escritores nossos (Eça, Antero, Oliveira Martins) tentam desmontar peça por peça a sociedade lusa, apeá-la do pedestal da tradição e alicerçá-la em novos princípios de justiça e dinamismo.
 
c) Supremacia da verdade física.
 
As ciências exatas e experimentais, secundadas pelo avanço da técnica, levaram os estudiosos a considerar a verdade física como a única válida. Facto que não se demonstre empiricamente, será de facto para arrumar. As verdades metafísicas e morais são relegadas para o mundo das conjeturas.
 
d) Novas teorias filosóficas.
 
A geração coimbrã de 70 estuda com avidez
 
o idealismo de Hegel,
o socialismo de Proudhon,
o positivismo de Comte,
o evolucionismo de Darwin e Lamarck.
 
e) Materialismo otimista.
 
Ao mesmo tempo, todos se deixam contaminar por uma esperança firme no bem-estar material dos tempos futuros, devido ao auxílio da técnica e da máquina. E explicam o atraso do passado por os homens se terem deixado conduzir por forças espirituais, sobretudo pela religião. Daí o manifestarem-se contra todos os cultos revelados.
 
Estas doutrinas iriam fermentar depressa e ficariam na base do Realismo cujas características vamos indicar.

Barreiros, António José, HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992






Estética Naturalista



A filosofia positivista de Comte, as doutrinas de Taine, afirmando que a «virtude e o vício são produtos como o vitríolo e o açúcar», as teorias de Darwin e Haeckel sobre a hereditariedade, a adaptação ao meio e a luta pela vida levaram Zola a uma conceção determinista da existência humana.

Por causa disso, o citado escritor entendeu que o romancista não devia limitar-se a observar os acontecimentos e expô-los, como faziam os realistas; teria de mostrar, com rigor próprio da ciência, que os factos psíquicos estão sujeitos a leis rígidas como os fenómenos físicos. Então o romance adquirirá valor social e científico.

Assim, como ideologia fermentadora da estética naturalista deveremos ver o positivismo, um certo cientismo fanático de meados do século XIX e ainda fortes desejos de uma modificação da sociedade inspirados nas doutrinas de Proudhon.

Júlio Lourenço Pinto publicou na revista Estudos Livres (dirigida por Teófilo Braga e Teixeira Bastos) uma série de artigos sobre esta matéria, os quais depois reuniu em volume com o título de Estética Naturalista (1885). Alguns dos princípios que aí defende podem considerar-se características da corrente naturalista, que o autor praticamente não distingue do Realismo:
 
  1. a literatura naturalista é a expressão dos progressos da ciência (Fisiologia, Sociologia, estudo dos carateres, da evolução, da influência do meio, etc.);
  2. o romance naturalista inspira-se na vida quotidiana, comum;
  3. o Naturalismo deve usar o método fisiológico, isto é, deve descrever as emoções através das suas manifestações físicas, com base no estudo dos fisiologistas.
 
Já muito antes de meados do século XIX se falava em Naturalismo. Designava então esse termo o interesse predominante de filósofos e artistas pela substância material deste mundo e pelas suas manifestações naturais e leis físicas que as regem. Preceituava consequentemente a imitação estética das formas reais da Natureza, com repúdio das imaginativas, concretizadas na Mitologia.

Com o advento da Geração de 70, o Naturalismo surge para muitos críticos como o movimento estético idêntico ao Realismo. Para outros, porém, as coisas não são assim tão simples. Vêem em ambas as estéticas aspetos comuns:
 
  1. a arte como representação mimética objetiva da realidade exterior (em contraste com a transfiguração imaginativa, impregnada de subjetivismo, praticada pelos românticos);
  2. a objetividade dos temas;
  3. a técnica impessoal de narrar.
 
Mas vêem nelas também elementos diferentes.

O Naturalismo pretende fazer-se acreditar pelo menos como séria tentativa de aplicar à obra literária as descobertas e métodos das ciências do século XIX (Biologia, Positivismo filosófico, Psicopatologia sobretudo). Propõe-se então arrastar a ciência para o plano da obra literária. A obra literária ficará assim a funcionar como meio de demonstração de teses científicas.

O Realismo, mais estetizante, ignora a Patologia ou qualquer outra ciência: como meio de explicar e ilustrar a obra de arte, nem desce às profundezas de análise do Naturalismo. Limita-se a «fotografar» com isenção a realidade circundante. E, ao contrário dos naturalistas, que chafurdam nos males sociais e neles mexem com notória insensibilidade, os realistas, ao contactar com os aludidos males, que mostram e criticam, sentem profunda náusea, que nem sequer ocultam (cfr. Lilian R. Furst e Peter N. Skrine – O Naturalismo, Lisboa, 1975, págs. 9-20 e 98-100).

Barreiros, António José, HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992






Cenáculo



Designação por que é geralmente conhecido o grupo formado por alguns escritores e intelectuais pertencentes à chamada geração de 1865, que se reuniam em Lisboa, passados anos dos seus estudos em Coimbra, para discutir livremente os assuntos que apaixonavam essa mocidade atenta ao movimento de ideias do seu tempo. Alguns nomes do Cenáculo: J. Batalha Reis, Eça de Queirós, Antero de Quental, Germano Vieira de Meireles, Salomão Sáraga e Manuel de Arriaga. Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro frequentaram ainda o grupo, que também mantinha relações com João de Deus. O Cenáculo, que, segundo Batalha Reis, começava por não ter consciência clara da sua existência como grupo constituído, tentava um pouco prolongar em Lisboa os tempos de Coimbra - anos de apaixonante iniciação na cultura europeia, de fervor revolucionário, de romanesca efervescência intelectual e sentimental.

As discussões do Cenáculo começaram na Travessa do Guarda-Mor, onde Batalha Reis tinha um quarto alugado; passaram depois para S. Pedro de Alcântara e para a R. da Cruz de Pau, e acabaram por se instalar numa casa da Rua dos Prazeres. Eram, de princípio, tumultuosas invetivas contra todos os sistemas e todas as instituições: contra a sociedade portuguesa da Regeneração - os seus bacharéis, os seus ministros, os seus poetas - mas também contra a ordem do mundo, contra Deus e o Universo («Revolução, Metafísica, Satanismo, Anarquia, Boémia feroz»). Eram ainda reminiscências da fase coimbrã dos poemas cíclicos de exaltação da Humanidade. Foi nessa época que Eça resolveu colecionar em volume os contos publicados na Gazeta de Portugal, as Prosas Bárbaras, embora encarasse já com ironia esse esforço de arte pela arte e meditasse um romance realista, a História dum lindo corpo. Foi também na mesma altura que o grupo inventou os Poemas do Macadame, do imaginário Carlos Fradique Mendes, à maneira dos igualmente imaginários Satânicos do Norte; tratava-se duma paródia do Satanismo, destinada a escandalizar e agitar a sociedade lisboeta. A figura de Fradique, dandy, culto, viajado, orientalista, sempre a par das últimas novidades da ciência, excêntrico e irreverente, encarna em certos aspetos o espírito do Cenáculo.

A chegada de Antero veio pôr certa ordem naquela boémia de tiradas líricas, ditos de espírito e noitadas ruidosas; Antero trouxe a paixão de Proudhon, da Sociologia e da discussão metafísica. A inquietação inconformista do grupo achou alguém capaz de a encaminhar, lhe dar forma e fim. Assim surgiu a ideia das «Conferências do Casino», realização em que, por assim dizer, se materializou o espírito de vanguarda, combativo, irreverente, que animava os homens do Cenáculo.

O nome de «Cenáculo» parece não ter sido contemporâneo das reuniões: anos mais tarde, aparece nos escritos de alguns dos componentes para designar esse grupo que nada teve dum clube, e muito menos dum clube político, como depois se pretendeu insinuar - grupo flutuante na composição e instável na localização, que foi apenas a aproximação espontânea e natural de espíritos ligados por formação semelhante, por verdadeira amizade, e por interesses e ansiedades comuns.

Lemos, Ester de, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 1.º volume, Porto, Figueirinhas, 1979

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