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Realismo
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Não é empresa
fácil historiar – e muito menos
resumir – o complexo movimento chamado
«Realismo» na literatura portuguesa do
séc. XIX. Por trás dessa palavra,
cifra simplista, se escondem e
convivem fenómenos e atitudes
estéticas de natureza muito diversa.
Abre esse período a ruidosa Questão
Coimbrã, polémica literária que
significou – na frase de Teófilo Braga
– «a dissolução do Romantismo».
Nela
se
manifestou pela primeira vez o
protesto da geração nascida por meados
do século contra o exagero balofo e
caduco do gosto romântico, convertido
em gesto vácuo de monótona
artificiosidade. Dela surgiu o
Realismo. A França – e através desta a
Alemanha e a Inglaterra – foi a
principal inspiradora dos dirigentes
da rebelião coimbrã. Entre 1860 e 1865
saturaram-se de cultura europeia,
aspirando a plenos haustos os ares que
vinham de fora, absorvendo de golpe o
humanitarismo social francês de 48.
Leram e decoraram Proudhon e Quinet, o
satanismo baudelairiano, a erudição
histórica de Leconte de Lisle, o
determinismo de Taine, as eloquências
liberais humanitárias de Rugo, o
diletantismo crítico de Renan, o
revolucionarismo apostólico de
Michelet, – e ainda Hegel, e Heine, e
Darwin, e Flaubert. Espíritos muitos
díspares, tinham, porém, em comum o
prurido de irreverência e de
liberdade, o sentimento de revolta
contra a estagnação do Ultrarromantismo
constitucionalista e o intuito de
renovação do clima das letras e da
vida portuguesa. Fora desta comunidade
de formação e de atitude geracional,
cada um deles seguiu uma trajetória
criadora e vital acentuadamente
diferenciada. Contudo, Antero de
Quental, Teófilo Braga, Eça de
Queirós, Guerra Junqueiro – e Ramalho
Ortigão e Oliveira Martins, que depois
se lhes uniram – surgem nos manuais de
literatura agrupados sob a epígrafe
irmanadora de «Realismo». E talvez
isso não seja tão injusto e inexato
como à primeira vista pode parecer,
porquanto não é fácil acharmos uma
etiqueta mais adequada e precisa para
denominar os laços emotivos,
intelectuais e artísticos que os
ligavam.
De facto, a
palavra «realismo» já se envolvera na
contenda literária de 1865-66 e fora
utilizada como sinónimo de «arte nova»
ou «estilo coimbrão». Um dos espíritos
críticos mais avisados da época,
Luciano Cordeiro, que terçou armas na
polémica entre coimbrões e lisboetas,
publicou um artigo n' A Revolução de Setembro
(7 de novembro de 1867), intitulado «A
arte realista», no qual, adotando uma
posição eclética, verberava quer os
moços que injuriavam Castilho em nome
da «verdade» artística do «Realismo»,
quer os ultrarromânticos que tremiam
de furor e desespero à simples menção
da odiada palavra. Cordeiro acusava
tanto uns como outros de aceitar como
«Realismo» a banal e superficial
«tradução da objetividade material das
coisas». E anunciava, com a dissolução
do Romantismo,
periclitante e decrépito, o advento da
«escola crítica», que, falando à
consciência e à razão e exigindo maior
cultura intelectual e mais profundo
conhecimento dos problemas filosóficos
e sociais da época, repudiaria tanto o
realismo materialista da arte pela
arte como a «inspiração» romântica –
cuja manifestação nesse momento era o
lirismo sentimental e elegíaco e o
formalismo estreitamente provinciano
da literatura oficial, na poesia e no
romance. Cordeiro, de facto, percebia
que nessa altura os rebeldes de Coimbra
representavam um segundo Romantismo
que tinha tanto de truculento como o Ultrarromantismo
tinha de pacato. Neste segundo Romantismo
latejava, porém, uma inquietação viva
por formas de verdade artística de que
havia de brotar o Realismo.
O segundo
episódio do processo de aparecimento
do Realismo verificou-se em 1871, nas
Conferências
Democráticas
do
Casino. Nesta nova manifestação
pública da geração de Coimbra, já em
plena maturidade, os contornos do
Realismo desenharam-se mais
nitidamente, embora a sua formulação
teórica estivesse longe de responder
aos postulados doutrinais hoje aceites
como basilares do Realismo de escola
francês. Eça de Queirós, que na Questão
de 1865 fora simples espectador,
e que até 1871 apenas se manifestara
literariamente com uma nebulosa
mistura de retalhos de romantismos de
além-fronteiras e de parnasianismos de
cunho satânico, foi agora o expositor
doutrinário da «nova literatura».
A sua conferência versou sobre «O
Realismo como nova expressão da Arte»
– título em que aparecia a palavra
pomo de discórdia. Sob a influência do
Cenáculo e do magistério de Antero, Eça
aproximou curiosamente as teorias
tainianas do determinismo do meio com
os postulados estético-sociais de
Proudhon, vergastando o estado
decadente das letras nacionais e
propugnando uma arte que respondesse
às aspirações do espírito dos tempos,
que agisse como regeneradora da
consciência social e que, desterrando
o falso, pintasse a realidade. Essa
arte, uma arte revolucionária, era o
Realismo; renegando a arte pela arte,
a retórica vácua e a invenção
romanesca, procedia pela observação e
pela experiência, pela fisiologia,
ciência dos temperamentos e dos
carateres; enfim, visava a dilucidação
dos problemas morais e o
aperfeiçoamento da Humanidade. Com
este cientificismo Eça já situava o
Realismo, consciente ou
inconscientemente, adentro do
Naturalismo de Zola. A conferência de
Eça provocou nova batalha. Nas páginas
d' A
Revolução de Setembro, Pinheiro
Chagas – que fora motivo e combatente
no recontro
de 1865 – atacou Eça e o
detestado Realismo. Outras penas,
porém, saíram em defesa do
conferencista e das suas ideias. E
novamente Luciano Cordeiro entrou na
lide, comentando a dissertação e
salientando que já ele, em 1868, tinha
defendido ideias parecidas, ao falar
do seu conceito tainiano da arte. Dois
anos mais tarde Eça publicou o conto
«Singularidades duma Rapariga Loira»
(recolhido em Contos, 1902) – que, na
opinião de Fialho de Almeida, é «a
primeira narrativa realista escrita em
português».
A batalha
efetiva da implantação do Realismo no
romance começou com a publicação d' O Crime
do Padre Amaro, seguida dois
anos mais tarde por O
Primo Basílio, obras
caracterizadas ambas por métodos de
narração e de descrição baseados numa
minuciosa observação e análise
psicofisiológicas, com a anatomia
moral das personagens referida a
fatores deterministas de meio,
educação e hereditariedade, à maneira
de Zola – e com evidente intuito de
crítica de costumes e reforma social.
O primeiro destes romances foi
acolhido pelos críticos com um
silêncio significativo e
escandalizado. O segundo provocou o
escândalo aberto. A colisão polémica
entre os inimigos dos processos
realistas de efabulação e os sequazes
da nova tendência alcançou a sua maior
virulência em 1880-81 – justamente
quando o «chefe da escola» começara a
fugir, com a publicação d'
O Mandarim, da
«incommode soumission à la vérité, la
torture de l'analyse, l'impertinente
tyrannie de la réalité». Naquela data
novamente Pinheiro Chagas arremete,
num jornal brasileiro, contra Eça,
tachando-o de antipatriota, pelo modo
como apresenta a sociedade portuguesa.
António da Silva Pinto (1848-1911),
que em 1877, num opúsculo intitulado Do Realismo na Arte,
expusera a teoria da escola e elogiara
Eça em termos calorosos, publicava
agora outro (Realismos,
1880) ridiculizando os processos do
novo estilo; e Camilo Castelo Branco,
o mestre do romance romântico, então
no cume da fama, que em 1879 dera a
lume o Eusébio Macário,
paródia da técnica narrativa dos
realistas, publicava em 1880 um novo
«pastiche», A Corja,
onde o intuito caricatural era ainda
mais evidente. O resultado foi uma
violenta polémica, esmaltada de
injúrias, com um dos paladinos das
novas tendências, Alexandre da
Conceição, e na qual tomaram parte
apaixonadas penas dum e doutro bando.
Curiosamente, Camilo, «realista
inconsciente», acabou por aceitar, e
empregar de boa fé, muitos dos
processos do realismo, como provou n'
A Brasileira de Prazins
(1882). O atrevimento de certos passos
dos romances de Eça, principalmente d' O Primo
Basílio, escandalizava as
pessoas de moral timorata, e chegaram
a aparecer folhetos acusando os
realistas de contribuírem para a
«desmoralização das famílias» (Carlos
Alberto Freire de Andrade, A Escola realista. Opúsculo
oferecido às Mães, 1881).
Na década
decorrida desde as Conferências
Democráticas
do
Casino, o Realismo lograra um
núcleo de adeptos que se empenharam em
explicar e defender o seu credo
estético, contra a acusação, que os ultrarromânticos
puseram a circular, de «grosseria» e
imoralidade. Alguns destes teóricos
circunscreveram-se a um realismo
limitado, como Luís de Magalhães («0
romance realista e a estética
positivista», 1880; «Naturalismo e
realismo», 1890), que deu o seu
contributo à novelística com
O Brasileiro Soares (1886),
prefaciado por Eça. Dentro dessa
tendência poderíamos incluir Trindade
Coelho, Fialho de Almeida e Teixeira
de Queirós. Outros fecharam-se num
Naturalismo ortodoxo e intransigente.
Os corifeus mais destacados desta
posição doutrinária foram José António
dos Reis Dâmaso (1850-1895) e Júlio
Lourenço Pinto (1842-1907), autor da
Estética Naturalista (1885), que
pretendia ser o «evangelho» onde se
continha o dogma da seita, mas que no
campo teórico é o principal trabalho
aparecido. Tanto estes dois como
outros cultores do Naturalismo
«enragé» não foram muito afortunados
na prática artística dos seus
dogmáticos princípios. Os seus
romances, sistemáticamente elaborados
de acordo com «O método a seguir na
aplicação do Realismo à Arte»
(1883-1884), de J. Lourenço Pinto, não
passam hoje de mortos documentos
histórico-literários. Tanto este
«método» como os trabalhos críticos de
Reis Dâmaso foram publicados na Revista de Estudos Livres,
fundada em 1883 por Teófilo Braga sob
o signo comtiano, publicação que foi o
órgão oficial da ortodoxia
naturalista. Nesta revista se insurgiu
Reis Dâmaso contra Eça por este, ao
publicar O Mandarim,
ter «atraiçoado» os postulados do
romance «fisiológico» à Zola. A
oposição ao Realismo durava ainda em
1887, data em que Pinheiro Chagas, o
«homem fata1», rejeitou A
Relíquia no concurso para o
Prémio D. Luís I, da Academia – a
despeito de, nessa obra, Eça ter
abandonado completamente as suas
preocupações de escola para praticar
uma fórmula livre e pessoal de
estilização realista, na qual o seu
lirismo essencial e o seu humor
fantasista se combinavam com «as
nudezas da Verdade». Por 1890 o
Realismo-Naturalismo tinha perdido a
sua vigência. Em 1893, o próprio Eça
declara que «o homem experimental, de
observação positiva, todo estabelecido
sobre documentos, findou (se é que
jamais existiu, a não ser em teoria)»
(«Positivismo e Idealismo», in Notas Contemporâneas).
Nos outros
géneros o Realismo produziu frutos
muito desiguais. Não houve uma crítica
normativa, sistemática – se
excetuarmos o malogrado Moniz Barreto,
forte capacidade analítica e
sintética, dotado de fina
sensibilidade e munido de amplas
leituras estrangeiras, que, inspirado
em Taine, realizou uma obra breve, é
certo, mas em muitos aspetos ainda
válida. O teatro não foi atingido
pelas novas ideias. Não houve drama
que possa ser chamado realista; o
palco ficou apegado anacrónicamente ao
gosto romântico. A poesia foi
multiforme e teve correntes que se
entrecruzaram muito complexamente.
Atuaram, com efeito, no período
realista tendências assaz divergentes,
sujeitas a influências muito diversas.
Aliás, a própria natureza do género,
de carácter subjetivo, íntimo e
pessoal, conspirava contra o
predomínio duma determinada doutrina.
A par do revolucionarismo e do
angustiado misticismo metafísico de Antero,
encontramos a enfática poesia da
Humanidade de Teófilo, o prosaísmo
satírico de João Penha, o lirismo
social e democrático de Guilherme de
Azevedo e de Gomes Leal, o
«quotidianismo» citadino e burguês de
Cesário Verde, o
parnasianismo preciosista de
Gonçalves Crespo e o verbo satânico,
caudaloso e tonitruante de Guerra
Junqueiro, intentando casar Ciência e
Poesia (v. Parnasianismo).
Resumindo,
poderia
dizer-se que não foi o Realismo
português, visto no seu conjunto,
tanto uma escola literária, bem
definida como um sentimento novo, uma
nova atitude espiritual em que
couberam direções e dimensões muito
divergentes, que se alçou contra um
«idealismo» sem ideais. A sua
consequência mais vital e duradoura
foi romper a incuriosidade do
patriotismo provinciano dos ultrarromânticos,
abrindo as comportas do espírito
nacional a todas as influências de
fora, alargando a escolha de motivos
literários e renovando as letras duma
maneira ampla.
Guerra da Cal, Ernesto, DICIONÁRIO DE
LITERATURA, 3ª edição, 3º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979
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Naturalismo
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Em Portugal o Realismo
e o Naturalismo, à semelhança do que
ocorre com a literatura francesa, são
duas direções estéticas com certa
independência. Saindo do Realismo, a
que é posterior cronologicamente, o
Naturalismo dele se diferencia por
conduzir a ciência para o plano da
obra de arte, fazendo desta como que
meio de demonstração de teses
científicas, especialmente de
psicopatologia. O Realismo, mais
esteticizante, embora se apoie no que
as ciências do séc. XIX vinham
afirmando e desvendando, não vai até à
profundidade analítica do Naturalismo,
donde advém a sua não-preocupação pela
patologia, característica do romance
naturalista. A par disso, enquanto o
Naturalismo implica uma posição
combativa, de análise dos problemas
que a decadência social evidenciava,
fazendo da obra de arte uma verdadeira
tese com intenção científica, o
Realismo apenas «fotografa» com certa
isenção a realidade circundante, sem
ir mais longe na pesquisa, sem trazer
a ciência, dissertativamente, para o
plano da obra. O romance realista
encara a podridão social usando luvas
de pelica, numa atitude fidalga de
quem deseja sanar os males sociais,
mas sente perante eles profunda
náusea, própria dos sensíveis e
estetas. O naturalista, controlando a
sua sensibilidade, ou acomodando-a à
ciência, põe luvas de borracha e não
hesita em chafurdar as mãos nas
pústulas sociais e analisá-las com
rigorismo técnico, mais de quem faz
ciência do que literatura. Em suma,
realistas e naturalistas amparam-se
nos mesmos preconceitos científicos
bebidos na atmosfera cultural que
envolve a todos, mas diferenciam-se no
modo como aproveitam os dados de
conhecimento na elaboração da sua obra
de arte.
Essas
diferenças, postas aqui em síntese e
nos seus aspetos fundamentais, não têm
valor absoluto, porquanto existem
vários pontos de contacto entre
Realismo e Naturalismo, por se
orientarem pelas mesmas «verdades»
científicas e coexistirem numa época
saturada de revolução cultural. Mais
ainda: muito embora se classifiquem os
romancistas dessa época em realistas e
naturalistas conforme a predominância
duma dessas direções estéticas, nos
autores portugueses Realismo e
Naturalismo acabam muitas vezes por se
confundir.
Introduzido o
espírito realista em Portugal através
da Questão
Coimbrã (1865), das Conferências
do Casino (1871) e do Crime do Padre Amaro
(1875) de Eça de Queirós, iniciou-se
um movimento teórico que iria conduzir
ao aparecimento do Naturalismo pouco
depois. Assim, Júlio Lourenço Pinto
(1842-1907) (Do Realismo
na Arte, 1877; ensaios in Letras e Artes,
1883-1884; Estética
Naturalista, 1885 ), José
António dos Reis Dâmaso (1850-1895) (Anjo da Caridade,
romance, 1871; Cenografias,
contos, 1882; Júlio Dinis
e o Naturalismo, 1884), António
José da Silva Pinto (1848-1911) (Do Realismo na Arte,
3.ª ed., in Controvérsias
e Estudos Literários, 1878; Realismos, 1880),
Alexandre da Conceição (1842-1889)
«Realismo e Realistas» e «Realistas e
Românticos», in Ensaios
de Crítica e Literatura, 1882),
Alberto Carlos (A Escola
Realista e a Moral, 1880), Luís
Cipriano Coe!ho de Magalhães
(«Naturalismo e Realismo», in Notas e Impressões,
1890), Teixeira Bastos e outros
teóricos movimentaram a questão do
Naturalismo, que dessa forma se foi
impondo ao longo da década de 80.
A par da
atividade teorizante, alguns dos
teóricos e outros autores lançaram-se
à concretização do ideário
naturalista. De pronto, duas foram as
rotas seguidas, representadas pelo Realismo
e pelo Naturalismo. Ressalvando-se os
elementos comuns, à primeira
pertenceram Eça de Queirós, Fialho de
Almeida, até certo ponto Trindade
Coelho – o contista de Os
meus amores, cuja poética
delicadeza merece lugar à parte –,
Teixeira de Queirós, Luís de Magalhães
(O Brasileiro Soares,
1886) e outros, mais preocupados com
os aspetos exteriores da realidade
física e humana, não obstante, como no
caso de Eça, a tendência para o
psicologismo. Mais descritivos do que
analíticos, exceção feita de Eça, e
assim mesmo parcialmente, não sondam a
alma e o espírito das personagens
senão para corroborar desvios de
comportamento, no geral baseados no
exacerbamento dos sentidos e nos
apetites carnais. Esse primitivismo,
feito de obediência a impulsos
anormais superiores à vontade,
tirânicos, patenteia-se em todos eles,
exceto ainda Eça, que não lhe escapa
por completo, como se observa na Luísa
d' O
Primo Basílio e na Amélia d' O Crime
do Padre Amaro. Retratistas de
exteriores e de episódios do
quotidiano fisiológico e rasteiro,
atêm-se mais à preocupação de
surpreender coerentemente uma
sociedade corroída que ao propósito de
submetê-la à análise fria, imparcial,
orientada para um mundo melhor. O
naturalismo desses romancistas e
contistas está muito mais na posição
de espírito baseada no repúdio de
qualquer subjetivismo e no desejar
para a obra de arte uma orientação
mental definidamente científica e
objetiva. Esse relativo apego ao
naturalismo de Zola explica-se pela
influência recebida do romance
balzaquiano, especialmente, e do
flaubertiano.
É pouco, porém,
em face do que se pode observar em
romancistas ortodoxamente
naturalistas, como José Augusto
Vieira, Júlio Lourenço Pinto, Abel
Botelho. Do primeiro citam-se: Fototipias do Minho,
contos, 1879, e A
divorciada, romance, 1881. Júlio
Lourenço Pinto, teórico apaixonado do
Naturalismo, pôs em vários romances (Margarida, 1879; Vida Atribulada, 1880;
O Senhor Deputado,
1882; O Homem
Indispensável, 1884; O Bastardo, 1889) e num
livro de contos (Esboços
do Natural, 1882) um quadro
humano colhido ao vivo e, portanto,
atual, mas com cientificismo dogmático
que rouba autenticidade às suas
criações, pelo intuito de só analisar
produtos bastardos e hospitalares.
Aqui, como em tudo, se observa a
influência de Zola, tomado ao pé da
letra, e não mesclado a talento e
sensibilidade, necessários para o
superar e criar romances de maior
força e permanência.
Ainda sob a
influência de Zola, Abel Botelho
dispôs-se a criticar a sociedade do
tempo na série Patologia
Social, em outros três romances
(Sem remédio..., Amor
Crioulo, Os Lázaros)
e num livro de contos (Mulheres
da Beira), mostrando-lhe,
justamente os aspetos perecíveis e em
flagrante decomposição. Sua linguagem,
forte, abundante, ágil, não esconde a
vista aguda do homem sensível e o
teatrólogo, capaz de perceber e pintar
matizes e subtilidades de toda a
ordem. Com altos e baixos, a Patologia Social está
toda ela dentro dos moldes do
Naturalismo, manifestando, além das
qualidades do A., reconhecíveis ao
primeiro contacto, a preocupação, em
que está quase inteiramente isolado,
pela luta de classes e pelas questões
sociais em geral (cf. sobretudo Amanhã, vol. III da Patologia Social). Sua
ortodoxia naturalista deformou em
parte o alcance e o poder da sua obra,
mas A. B. soube servir-se do
magistério, de Zola para criar
romances em que o seu talento de
escritor vigoroso e fluente está
presente a cada instante. Não escapou
à tentação de pintar cenas e tipos
escabrosos, mas mesmo nesse aspeto,
sobretudo pelo modo como o fez, abriu
caminho para as obras de Raul Brandão,
debruçado sobre as mesmas chagas
sociais, numa atitude de indignado e
contemplativo, a sonhar um destino
melhor para o Homem. Nesse sentido não
se lhe nega valor, em que pese a
superação do romance naturalista.
Com o advento do
romance à Zola, o Realismo esgota o
seu programa e o Naturalismo pouco
dura no plano do interesse geral.
Entrado o séc. XX noutra atmosfera
mental, o Naturalismo desaparece,
tragado pelo neo-espiritualismo que se
vinha impondo a partir da década de
90. Feito o balanço, afora Eça, Fialho
de Almeida e Trindade Coelho, mais
realistas que naturalistas, só restam
Abel Botelho, e, de certo ângulo,
Teixeira de Queirós, como
representantes de importância da prosa
de ficção do último quartel do séc.
XIX.
Moisés, Massaud, DICIONÁRIO DE
LITERATURA, 3ª edição, 3º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979
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Idealismo
e Realismo 1
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(A PROPÓSITO DA 2.ª EDIÇÃO DE
«O CRIME DO PADRE AMARO»)
Aqui
está pois um livro que eu escrevo pela
segunda vez! Habent sua fata
libelli!
Considerar-se-á
talvez
que esta reconstrução paciente é uma
puerilidade, uma lamentável dissipação
de esforço; que, num romance eivado
originariamente de defeitos
indestrutíveis, não é com adjetivos
intercalados, entrelinhas e tiras
coladas ao lado, que se melhoram os
carateres mal observados, que se dá luz
e cor a paisagens mortas e que se
retificam os desenvolvimentos de uma
paixão, erradamente seguidos...
Isto
creio que é exato quando se trata de um
trabalho puramente imaginativo, conto de
fadas ou novela ideal.
Se
eu criei um príncipe encantado ou um
galã à Antony, e lhes dei, na minha
edição original, cabelos louros e sonhos
místicos – não é realmente útil refazer,
numa nova edição, o meu trabalho, para
dar ao herói cabelos negros e pesadelos
carnais. É uma fantasia substituindo
outra fantasia. Melhor seria escrever um
livro novo, e apresentar o mesmo galã
com outro nome, outra barba e outras
paixões.
É
porém diferente, penso eu, tratando-se
de um romance de observação e de
realidade, fundado em experiências,
trabalhado sobre documentos vivos. Se eu
quiser apresentar o tipo de um jogador,
e o improvisar com reminiscências de
leituras meio esquecidas, e sem mais
notas do que aquelas que tenha acolhido
uma noite, numa soirée honesta
de praia de banhos, vendo primos joviais
talharem uma batota doméstica a feijões
– arrisco-me a fazer um jogador
falso, pueril, vago e convencional.
Mas se, depois, eu frequentei a
roleta bem instalada que o Estado
patrocina, ou as baixas espeluncas da
população do vício, se analisei,
observei, colhi em flagrante a paixão,
as expressões vivas em plena ação, estou
habilitado talvez a pintar um jogador
mais real e mais humano; e se, pela
graça de um Deus favorável, o meu livro
tiver uma segunda edição, eu devo
claramente reconstruir o meu tipo com as
observações e os documentos que acumulei
– exatamente como, num tratado de
medicina, um prático introduz, numa
segunda edição, os últimos resultados
das experiências recentes.
Quando
publiquei pela primeira vez O
Crime do Padre Amaro, eu tinha um
conhecimento incompleto da província
portuguesa, da vida devota, dos motivos
e dos modos eclesiásticos. Depois, por
uma frequência demorada e metódica,
tendo talvez observado melhor, eu refiz
simplesmente o meu livro sobre estas
novas bases de análise.
Quer
isto significar que O Crime
do Padre Amaro, publicado agora,
dá em absoluto, na sua realidade
complexa, o padre e a beata, a intriga
canónica, a província em Portugal nesse
ano da graça de 1879? Oh! certamente que
não! O quadro tem infelizmente lacunas,
lados de natureza mal estudados,
recantos de alma explorados
incompletamente, amplificações, exageros
de traço... "É, no entanto, toda a soma
de observação e de experiência que eu
possuo sobre este elemento parcial da
sociedade portuguesa. A outros, mais
penetrantes e mais hábeis, compete
recomeçar este estudo, e decerto com
realidade superior.
É
por meio desta laboriosa observação da
realidade. Desta investigação paciente
da matéria viva, desta acumulação
beneditina de notas e documentos, que se
constroem as obras duradouras e fortes.
Se as minhas são fracas e efémeras, é
que eu não soube surpreender a verdade
com suficiente penetração, e não provém
decerto de que o método não seja eficaz.
A arte moderna é toda de
análise, de experiência, de comparação.
A antiga inspiração que em quinze noites
de febre criava um romance, é hoje um
meio de trabalho obsoleto e falso.
Infelizmente já não há musas que
insuflem num beijo o segredo da
natureza! A nova musa é a ciência
experimental dos fenómenos – e a antiga,
que tinha uma estrela na testa e vestes
alvas, devemos dizê-lo com lágrimas, lá
está armazenada a um canto, sob o pó dos
anos, entre as couraças dos cavaleiros
andantes, as asas de Eloá; a alma de
Antony, os suspiros de Graziela, e os
outros acessórios, tão simpáticos mas
tão arcaicos, do velho cenário
romântico!
O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil
e em Portugal alguma atenção da crítica,
sobretudo quando foi publicado,
ulteriormente, um romance intitulado – O Primo Basílio. E no
Brasil e em Portugal escreveu-se (sem
todavia se aduzir nenhuma prova efetiva)
que O Crime do Padre Amaro
era uma imitação do romance do Sr. Zola
– La Faute de l'Abbé Mouret
– ou que este livro do autor do Assommoir – e de outros
magistrais estudos sociais, sugerira a
ideia, os personagens, a intenção de O Crime do Padre
Amaro.
Eu
tenho algumas razões para crer que isto
não é correto. O Crime do Padre Amaro
foi escrito em 1871, lido a alguns
amigos em 1872, e publicado em 1874. O
livro do Sr. Zola, La Faute de
l'Abbé Mouret ( que é o quinto
volume da série Rougon-Macquart
), foi escrito e publicado em 1874.
Mas (ainda que isto pareça
sobrenatural) considero esta razão
apenas como subalterna e insuficiente.
Eu podia, enfim, ter penetrado no
cérebro, no pensamento do Sr. Zola, e
ter avistado, entre as formas ainda
indecisas das suas criações futuras, a
figura do abade Mouret –
exatamente como o venerável
Anquises, no vale dos Elísios, podia
ver, entre as sombras das raças
vindouras, flutuando na névoa luminosa
do Lete, aquele que um dia devia ser
Marcelo! Tais coisas são possíveis. Nem
o homem prudente as deve julgar mais
extraordinárias do que o carro de fogo
que arrebatou Elias aos Céus – e do que
outros prodígios provados.
O que, segundo penso, mostra
melhor que a acusação carece de
exatidão, é a simples comparação dos
dois romances. La Faute de
l'Abbé Mouret é, no seu episódio
central, o quadro alegórico da iniciação
do primeiro homem e da primeira mulher
no amor. O abade Mouret (Sérgio), tendo
sido atacado de uma febre cerebral,
derivada principalmente da sua exaltação
mística no culto da Virgem, na solidão
de um vale abrasado da Provença
(primeira parte do livro), é levado para
convalescer ao Paradou,
antigo parque do século XVII a que o
abandono refez uma virgindade selvagem,
e que é a representação alegórica do
Paraíso. Aí, tendo perdido na febre a
consciência de si mesmo a ponto de se
esquecer do seu sacerdócio e da
existência da aldeia, e a consciência do
universo a ponto de ter medo do sol e
das árvores do Paradou
como de monstros estranhos – erra
durante meses, pelas profundidades do
bosque inculto, com Albina que é o
génio, a Eva desse lugar de legenda.
Albina e Sérgio, seminus como
no Paraíso, procuram sem cessar, por um
instinto que os impele, uma árvore
misteriosa, da rama da qual cai a
influência afrodisíaca da matéria
procriadora; sob este símbolo da árvore
da ciência se possuem, depois de dias
angustiosos em que tentam descobrir, na
sua inocência paradisíaca, o meio físico
de realizar o amor. Depois, numa mútua
vergonha súbita, notando a sua nudez,
cobrem-se de folhagens; e daí os
expulsa, os arranca o padre Arcângias,
que é a personificação teocrática do
antigo Arcanjo.
Na última parte do livro, o
abade Mouret recupera a consciência de
si mesmo, subtrai-se à influência
dissolvente da adoração à Virgem, obtém
por um esforço da oração e um privilégio
da graça a extinção da sua virilidade, e
torna-se um asceta sem nada de humano,
uma sombra caída aos pés da cruz; e é
sem que lhe mude a cor do rosto que ele
asperge e responsa o esquife de Albina,
que se asfixiou no Paradou,
sob um montão de flores de perfumes
fortes.
E dito isto, parece ficarem
indicados e suficientemente lúcidos, os
motivos que tenho para não supor O Crime do Padre Amaro
uma tradução malfeita da Faute
de l'Abbé Mouret. E não insisto na
diferença das datas, apesar dela
constituir o que se chamava, creio eu,
em lógica, uma impossibilidade
metafísica, porque sou bom
cidadão, e o art. 6.º da Carta impõe
implicitamente o dever de não descrer
dos milagres. Somente devo dizer que os
críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de
ser apenas uma imitação da Faute
de l'Abbé Mouret, não tinham,
infelizmente, lido o romance maravilhoso
do Sr. Zola, que foi, talvez, a origem
de toda a sua glória. A semelhança
casual dos dois títulos induziu-os em
erro.
Com
conhecimento dos dois livros, só uma
obtusidade córnea ou má fé cínica
poderiam assemelhar esta bela alegoria
idílica, a que está misturado o patético
drama de uma alma mística, a O Crime do Padre Amaro,
simples intriga de clérigos e de beatas,
tramada e murmurada à sombra de uma
velha Sé de província portuguesa.
–
Mas, dir-me-ão indignadamente pessoas
bem intencionadas, como se podem
produzir tais acusações? – Meu Deus, bem
simplesmente. Dos dois livros, a crítica
decerto conheceu primeiro O
Crime do Padre Amaro, e quando um
dia, por acaso, descobriu, anunciado num
jornal francês, ou viu numa vitrina de
livreiro, a Faute de l'Abbé
Mouret, estabeleceu imediatamente
uma regra de três, concluindo que a Faute de l'Abbé Mouret
devia estar para O Crime do
Padre Amaro como a França está
para Portugal. Assim achou sem esforço
esta incógnita: PLAGIATO! Ou ainda, o
que é mais provável, e mais grato ao Sr.
Zola, conhecendo já a Faute
de l'Abbé Mouret, apenas viu
anunciado O Crime do Padre
Amaro, estabeleceu logo a mesma
regra de três, com os termos invertidos
– e achou a mesma incógnita: PLAGIATO! Sic itur ad abyssum!
Mas
parece que esta Faute de
l'Abbé Mouret, tem sido para mim
uma vasta e rica mina de arte, de onde
eu vou, todas as manhãs, desenterrar a
minha provisão de carateres, de
paisagens, de imagens e de adjetivos.
Assim fui amargamente acusado de ter
copiado o Paraíso do Primo Basílio, do Paradou, da Faute
de l'Abbé Mouret. O Paraíso, se
por acaso leram e se lembram daquele meu
livro, é um terceiro andar barato, para
os lados da Bemposta, alugado ao mês,
onde uma senhora e um cavalheiro se vão
amar duas vezes por semana, do meio-dia
às três. O Paradou, como já disse, é
aquela vasta e maravilhosa floresta,
onde erram, quase nus, Sérgio e Albina,
procurando, num instinto amoroso, a
árvore iniciadora da ciência!
–Mas
então – dir-me-ão ainda – onde está a
imitação?
–
Pois não vêem? Para-dou,
Para-íso – há
evidentemente plagiato nas duas
primeiras sílabas !
Que
isto não pareça provir de um espírito
rebelde e irreverente para com a
crítica. Ninguém a respeita mais do que
aqueles que fazem obras de observação e
de realidade.
Os
românticos (como confessa Sainte-Beuve)
odiavam a crítica, e com razão, pelo
mesmo motivo por que os monarcas
absolutos detestavam a opinião pública.
Para os românticos, a poesia ou a prosa
desciam diretamente da inspiração, como
o direito dos reis descia diretamente de
Deus. O crítico, simples raciocinador,
não tinha direito a achar defeitos ou
mesmo a examinar de perto o que a
inspiração, a musa, mandavam lá de cima
a um Musset ou a uma George Sand. A
poesia era um presente divino. O
crítico, não iniciado, não podia avaliar
pelas regras triviais do senso comum
aquilo que cantava ou declamava um homem
que vivia em comunicação permanente com
o ideal. O poeta, o artista, o
romancista, eram assim seres
excecionais, fora da lei e da regra
humana, eleitos, formando uma legião de
seres entre o homem e o anjo! A sua vida
mesmo não participava das condições
humanas:
Aimer,
prier, chanter, voilà toute ma vie...
diz Lamartine! Pode
compreender-se a sua irritação quando um
Cuvillier-Fleury, um Pontmartin, um
Planche, pretendiam julgá-lo pelas leis
razoáveis com que julgavam os outros
homens.
–
Nós somos cristos! –
exclamava Novalis. – E um Cristo suporta
mal um folhetim hostil...
Nós,
porém, burgueses que não vivemos em
comunicação permanente com o ideal, que
nunca recebemos o beijo da musa, a quem
a forma aérea jamais disse:
Poète,
prends ton luth et me donne un
baiser...
nós, homens, consentimos em ser
julgados por homens. Estudando a
realidade humana e social, aceitamos
como um favor um conselho, uma prática,
todas as admoestações daqueles que,
vivendo na humanidade e na sociedade,
têm uma experiência própria dessas
realidades.
E
isto não é só respeito pelos críticos,
pelos príncipes da crítica, pelos seus gros bonnets,
os ditadores da opinião, os
especialistas – e de qualquer homem, o
mais obscuro, ainda que nunca escrevesse
uma linha, podemos aceitar indicações
preciosas.
Quando se trata de eloquência
ou de retórica, decerto só se pode
admitir o crítico que conheça estas
artes ilustres. Mas quando escrevemos de
paixões ou de vícios, todo aquele que os
sentiu, ainda que os não saiba exprimir,
pode julgar-nos e apontar-nos o erro. Só
um poeta sabe apreciar Graziela,
obra de eloquência lírica, mas um
simples carpinteiro pode discutir o Assommoir, obra de
realidade social.
Eu,
por mim, adoro a crítica: leio-a com
unção, noto as suas observações,
corrijo-me quando as suas indicações me
parecem justas, desejo fazer minha a sua
experiência das coisas humanas.
Foi
por ocasião do aparecimento destes meus
livros, O Crime do Padre
Amaro e O Primo
Basílio, que se começou a falar em
Portugal no Realismo e
numa outra instituição que me dizem
chamar-se a ideia nova.
Ora o meu nome tem sido geralmente, em
Portugal e no Brasil, associado a este realismo e a esta nova
instituição. Designo-a pelo nome
genérico de instituição,
porque ignoro se é uma nova arte, uma
nova política, uma nova religião ou uma
nova filosofia; não sei mesmo se não
será um novo clube ou uma companhia de
seguros! Não creio que tivesse nascido
em França, em Inglaterra ou na Alemanha,
as três grandes nações pensantes.
Suponho que é de origem portuguesa e
inteiramente local. Ignoro os seus fins,
o seu programa, os seus métodos, se já
lançou, como é do estilo, a sua carta
aos Coríntios e se nos traz alguma nova
conceção do Universo!
Contudo,
eu sou, nos documentos que tenho
presentes, designado como «um dos seus
chefes». Deduzo pois que há outros –
talvez sete, como diante de Tebas! Num
livro de versos que recebo agora,
comentado por um mestre douto e amado,
leio, a pág. 2, que «Lisboa recebeu com
Hossanas os pregoeiros da ideia nova».
Concluo que tivemos, como outros
quaisquer, a nossa entrada triunfal em
Jerusalém, e vejo daqui a nossa
estimável estação dos Caminhos de Ferro,
sonora de cantos e verde de palmas!...
Em todo o caso, parece que foi breve o
dia das alegrias e dos risos, porque um
jornal recente me diz: «Aí estão, pois,
aos golpes desse prodigioso atleta,
prostrados por terra e mordendo o pó, os
da ideia nova!» Concluo que fomos
derrotados por um monstro solitário, um
ser disforme no género de Polifemo ou do
amante de Ônfale, e que, dos da «ideia
nova», como da ala dos cavaleiros
saxónios depois da jornada de Hastings,
não resta mais do que um estendal de
cadáveres, sobre que pairam os corvos de
Usk!...
Tal foi a vida breve e morte
trágica de uma ideia nacional que,
segundo os jornais me afirmam, nos
custou a vida, a mim e aos outros
chefes!...
Eu
sou pois associado a estes dois
movimentos, e se ainda ignoro o que seja
a ideia nova, sei pouco
mais ou menos o que chamam aí a escola realista. Creio
que em Portugal e no Brasil se chama
realismo, termo já velho em 1840, ao
movimento artístico que em França e em
Inglaterra é conhecido por «naturalismo»
ou «arte experimental». Aceitemos porém
realismo, como a alcunha
familiar e amiga pela qual o Brasil e
Portugal conhecem uma certa fase na
evolução da arte.
Este
movimento tem encontrado em Portugal
grandes hostilidades. Também no Brasil
(não o digo sem algum despeito
patriótico), se tem combatido o realismo
com um talento superior e com ideias.
A
opinião, porém, que os nossos inimigos
fazem deste movimento literário, parece
ser a seguinte: «Que é uma «escola» e se
chama a escola realista.
Que foi o Sr. Zola que a inventou, um
belo dia, em Paris. Que o seu fim é
pintar com minuciosidade quadros
obscenos. E, finalmente, que tem uma
retórica especial, abstrusa, torturada,
rutilante, sem gramática e sem
vernaculidade!»
É-me
desagradável afetar um tom pedagógico e
vir dar um desmentido autoritário a
estas afirmações de pessoas
estimáveis...
Mas
na realidade o naturalismo nem foi
inventado pelo Sr. Zola, nem consiste em
descrever meticulosamente obscenidades,
nem tem retórica própria, nem sobretudo
é uma escola!
Em
Portugal sempre houve uma tendência
tenaz para subdividir a arte em escolas
– o que prova, de resto, uma literatura
de gramáticos e retóricos. Inventámos
assim toda a sorte de escolas literárias
– mais, certamente, em número, do que as
de instrução primária! Chegámos a ter a
escola de Lisboa, a escola de Coimbra, a
escola de Castilho... coisas que nos
parecem hoje tão antigas como o rapto de
Helena ou as façanhas do impetuoso Ájax.
Ainda conservamos, porém, as grandes
escolas: clássica, romântica, satânica,
elegíaca, e toda a sorte de confrarias
das letras, isoladas em cubículos e
celas, separadas por paredes-mestras : o
cubículo de Boileau, o cubículo de
Lamartine, o cubículo de Byron, o
cubículo de Petrarca... Até o subtil e
fino Baudelaire tem o seu cubículo! E
aqueles grupos inimigos, arreganhando-se
o dente, uns usando a cabeleira de
Racine, outros o capacete de Percival,
outros os cornos de Satã, outros a
frauta pastoril de Semedo, ali vivem
sepultados nas suas prosódias rivais,
murando-se dentro delas, como o anão
chinês dentro do seu vaso de
porcelana...
Agora,
temos a escola realista !
Não
– perdoem-me – não há escola realista.
Escola é a imitação sistemática dos
processos de um mestre. Pressupõe uma
origem individual, uma retórica ou uma
maneira consagrada. Ora o naturalismo
não nasceu da estética peculiar de um
artista; é um movimento geral da arte,
num certo momento da sua evolução. A sua
maneira não está consagrada, porque cada
temperamento individual tem a sua
maneira própria: Daudet é tão diferente
de Flaubert, como Zola é diferente de
Dickens. Dizer «escola realista» é tão
grotesco como dizer «escola
republicana». O naturalismo é a forma
científica que toma a arte, como a
república é a forma política que toma a
democracia, como o positivismo é a forma
experimental que toma a filosofia.
Tudo
isto se prende e se reduz a esta fórmula
geral: que fora da observação dos factos
e da experiência dos fenómenos, o
espírito não pode obter nenhuma soma de
verdade.
Outrora
uma novela romântica, em lugar de
estudar o homem, inventava-o. Hoje o
romance estuda-o na sua realidade
social. Outrora no drama, no romance,
concebia-se o jogo das paixões a priori; hoje,
analisa-se a posteriori,
por processos tão exatos como os da
própria fisiologia. Desde que se
descobriu que a lei que rege os corpos
brutos é a mesma que rege os seres
vivos, que a constituição intrínseca de
uma pedra obedeceu às mesmas leis que a
constituição do espírito de uma donzela,
que há no mundo uma fenomenalidade
única, que a lei que rege os movimentos
dos mundos não difere da lei que rege as
paixões humanas, o romance, em lugar de
imaginar, tinha simplesmente de
observar. O verdadeiro autor do
naturalismo não é pois Zola – é Claude
Bernard. A arte tornou-se o estudo dos
fenómenos vivos e não a idealização das
imaginações inatas...
É
fácil deduzir daqui que não foi o Sr.
Zola o inventor do natutalismo. Ele é
decerto uma forte e grande personalidade
que deu ao movimento um grande e forte
impulso. Ninguém como ele, nos seus
escritos, o tem defendido e desprendido
melhor do vago de teoria – e sejam quais
forem os seus defeitos, o homem que
escreveu o Assommoir
ficará como um dos mais prodigiosos
artistas deste século de artistas. Mas
seria tão absurdo dizer que ele inventou
o naturalismo, como
dizer que Gambetta inventou a democracia!
Neste século, porém, no período
científico do naturalismo, o Sr. Zola
teve precursores ilustres: antes dele,
estão os Goncourts; antes dos Goncourts,
Flaubert, Taine e Sainte-Beuve – (porque
o método do crítico penetrante que
estuda um romancista, não difere do
método do romancista que estuda um
personagem) – e antes destes, havia
ainda Stendhal, e ao lado dele, Balzac,
e no século passado, Molière... Não me
obriguem a remontar até Homero!... É
verdadeiramente uma genealogia ilustre!
Mas,
dir-me-á o leitor – o verdadeiro leitor,
o cidadão que não é letrado nem teórico,
mas simplesmente um ser impressionável,
um átomo do grande público, que é no fim
de tudo quem faz a arte – em que
consiste pois esse famoso naturalismo?
Que tenho eu com isso? Que posso eu
lucrar com essa descoberta? Em que me
interessa ela? Em que me educa, me
diverte, me mostra a sua superioridade
sobre a velha novela idealista? Porque
me querem forçar a comprar o Sr. Zola,
em vez de levar o meu dinheiro ao Sr.
Júlio Sandeau?
Ora
aqui tens, meu caro concidadão: supõe
que tu queres ter na tua sala a imagem
de Napoleão I passando os Alpes (estas
fantasias são-te permitidas: a parede é
tua, e podes cobri-la de escarros ou de
figuras imperiais; são coisas que ficam
com a tua consciência e com o Deus
severo que te há-de julgar um dia). Que
fazes tu? Chamas dois pintores: um que é
idealista e que vem com a sua grenha, o
seu casaco de veludo e o seu chapéu de
aba larga, e outro que é realista, e que
vem, como tu, de chapéu alto, com a sua
caixa de tintas debaixo do braço.
Dás-lhes o teu assunto e vais aos teus
negócios.
E
aqui está o que se passa na tua ausência
sobre a tua parede:
O
pintor idealista arregaça as mangas e
brocha-te imediatamente este quadro: um
píncaro de montanha; sobre este píncaro,
um cavalo com as proporções heroicas do
cavalo de Fídias, empinado; sobre esse
cavalo premindo-lhe as ilhargas,
Napoleão, de braços e pernas nuas, como
um César romano, com uma coroa de louros
na cabeça. Em volta, nuvens; em baixo, a
assinatura.
Dir-me-ão:
é falso! – Como, falso ? Este quadro
foi, creio que é ainda, uma das joias do
Museu do Luxemburgo.
Durante
esse tempo, o pintor realista, tendo
lido a história, consultado as crónicas
do tempo, estudado as paisagens dos
Alpes, os uniformes da época, etc.,
deixou na tua parede o seguinte quadro:
sob um céu triste, um caminho escabroso
de serra; por ele, resfolgando e
retesando os músculos, sobe uma mula;
sobre a mula, Bonaparte, abafado em
peles, com um barrete de lontra e óculos
azuis por causa da reverberação da neve,
viaja, doente e derreado ...
Qual
destes quadros escolhes tu, caro
concidadão? O primeiro, que te inventou
a história ou o segundo, que ta pintou?
O idealista deu-te uma falsificação,
o naturalista, uma verificação.
Toda a diferença entre o idealismo e o
naturalismo está nisto. O primeiro
falsifica, o segundo verifica.
Dir-me-ás
talvez: mas isso é simples matéria de
acessório, de decoração! E quando se
trata de pintar a alma, o ser
interior...
–
Perfeitamente, aqui tens outro exemplo:
Suponho
(tudo é permitido a uma alma como a tua,
amante da arte e curiosa da vida),
suponho, digo, que se trata de te
descrever uma menina que mora ali
defronte, num prédio da Baixa.
Apresentam-se
dois novelistas – o idealista e o
naturalista. Tu dás-lhes o teu assunto:
uma menina que se chama Virgínia e que
habita ali defronte.
O
idealista não a quer ver nem ouvir; não
quer saber mais detalhes. Toma
imediatamente a sua boa pena de Toledo,
recorda durante um momento os seus
autores, e, num relance, cria-te a
menina Virgínia deste modo: na figura, a
graça de Margarida; no coração, a paixão
grandiosa de Julieta; nos movimentos, a
languidez de qualquer odalisca (à
escolha); na mente, a prudência de
Salomão, e nos lábios, a eloquência de
Santo Agostinho...
Dir-me-ão:
é mentira! – Como, mentira? Vejam a
criação da Morgadinha dos
Canaviais, um romance, e feito
pelo talento delicado e paciente de
Júlio Dinis, o artista que entre nós
mais importância deu à realidade. E
todavia a sua Morgadinha
é bem extraordinária. Ali está uma
burguesinha da serra, vivendo na serra,
educada na serra, e querendo ser a
personificação da mulher da classe média
em Portugal: ama com a sinceridade
heroica de Cordélia; tem com os
sobrinhos o tom de maternidade romântica
da amante de Werther; pensa, em matéria
de moral, com a altivez de Bossuet; fala
da natureza com o colorido místico de
Lamartine; junta a isto, em intrigas
sentimentais, a finura das duquesas de
Balzac – e quando fala de amor, julgamos
ouvir Rousseau declamar. Sem contar que
tudo quanto diz, de poesia, de arte ou
de religião, é de Chateaubriand!...
Mas
voltemos à nossa Virgínia, que mora ali
defronte. É agora o nosso escritor
naturalista que a vai pintar. Este homem
começa por fazer uma coisa
extraordinária: vai vê-la!...
Não
se riam: o simples facto de ir ver
Virgínia quando se pretende descrever
Virgínia, é uma revolução na arte! É
toda a filosofia cartesiana: significa
que só a observação dos fenómenos dá a
ciência das coisas. Este homem vai ver
Virgínia, estuda-lhe a figura, os modos,
a voz; examina o seu passado, indaga da
sua educação, estuda o meio em que ela
vive, as influências que a envolvem, os
livros que lê, os gestos que tem – e dá
enfim uma Virgínia que não é Cordélia,
nem Ofélia, nem Santo Agostinho, nem
Clara de Borgonha – mas que é a burguesa
da Baixa, em Lisboa, no ano da graça de
1879.
Caro
concidadão, a qual dás tu a preferência?
O primeiro mentiu-te. A Virgínia que
tens diante de ti é um ser vago, feito
de frases, que não tem carne nem osso, e
que, portanto, não pertencendo à
humanidade a que tu pertences, não te
pode interessar. É uma quimera, não é um
ser vivo. O que ela diz, pensa ou faz,
não te adianta uma linha no conhecimento
da paixão e do homem.
Uma
tal Virgínia não pode ficar como
documento de uma certa sociedade, num
determinado período: é um livro inútil.
Tens
diante de ti uma moeda falsa.
O
segundo dá-te uma lição de vida social:
põe diante dos teus olhos, num resumo, o
que são as Virgínias contemporâneas;
faz-te conhecer o fundo, a natureza, o
carácter da mulher com quem tens que
viver. Se a Virgínia, em conclusão, não
é boa – evitarás que tua filha seja
assim; podes-te acautelar desde já com a
nora que te espera; é-te lição no
presente, e, para o futuro, ficará como
um documento histórico.
É
uma verificação da natureza.
E
aqui tens, caro concidadão, reduzido a
fórmula familiar, ao alcance da tua
compreensão e despido de névoas
filosóficas, o que é o idealismo e o que
é o naturalismo, na pintura, no romance
e no drama.
Brístol,1879.
1 - Este
artigo, encontrado entre os papéis de
Eça de Queiroz, esboçado
a lápis, foi escrito para servir de
prefácio à 2.ª edição, refundida, de O Crime do Padre Amaro. Posto
de parte pelo seu tom irónico e
ligeiro, que mal se coadunava com a
índole grave do livro, o autor
aproveitou contudo alguns trechos
essenciais, que formam a «Nota à 2.ª
Edição» que atualmente antecede aquele
seu romance.
Queiroz, Eça de, Cartas Inéditas
de Fradique Mendes, Lello &
Irmão - Editores, Porto,1973
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Antecedentes |
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Na segunda metade
do século XIX, a Europa vê-se sacudida
de lés a lés por novos ventos políticos,
científicos, sociais e religiosos.
A Espanha proclama
a república em 1868; a França imita-a
pouco depois; Vítor Manuel destrói os
Estados Pontifícios em 1870; anos atrás
desfazia-se a Santa Aliança, último
reduto contra a expansão do liberalismo.
Lamark insiste na
evolução dos seres por influência do
meio; Darwin apregoa a mesma evolução
pela seleção natural; Huxley aplica as
doutrinas transformistas ao próprio
homem; Mendel descobre as leis da
hereditariedade. Começa desta maneira a
gerar-se uma visão
materialista, pampsiquista e monista
do Cosmos ao mesmo tempo que se
abre o caminho para o estudo do homem
sob os aspetos psíquico e fisiológico.
A Revolução
Francesa tinha conduzido ao apogeu a
burguesia capitalista. Para maior
desequilíbrio económico, o motor de
explosão e o elétrico lançam agora no
desemprego milhões de braços. O
proletariado começa a ser um facto
alarmante. Engels e Carlos Marx apontam
a solução comunista para a «questão
social». Saint Simon, Proudhon, Fourier
e outros preferem o socialismo utópico.
A luta de classes prepara-se para deixar
na literatura o seu rasto de dor e
sangue.
O criticismo
histórico e racionalista curva-se sobre
as fontes do cristianismo. Hamach,
Renan, Reinach e outros, sem negarem o
facto cristão, desvirtuam-no e procuram
explicá-lo pela fé puramente idealista.
1. Os
literatos reagem contra o idealismo
romântico
Depois de 1850, os
homens de letras constatam que a
Química, a Física, a Biologia, a
Zoologia, a Botânica, para não falarmos
da Matemática, numa palavra, constatam
que todas as ciências procuravam
alicerçar-se em comprovadas certezas e
que até os cultores de Arte se
esforçavam por serem verídicos,
objetivos.
Ora, sendo estas
coisas assim, porque é que os literatos
haviam de continuar presos
a um
sentimentalismo doentio,
a um idealismo
aéreo, divorciado da realidade,
a uma expressão
hipócrita da paixão amorosa,
à idealização de
um mundo irreal?
Sentindo que
perdiam um comboio a correr
vertiginosamente para o campo da verdade
nua e crua, reagiram. Como as restantes
atividades do espírito humano, a literatura começou a buscar
a realidade, não a deformada pelos
românticos, mas a autêntica, tal qual se
apresenta, sem artifícios, sem retoques.
Ainda por analogia
com a técnica e a indústria e a ciência,
que não conhecem fronteiras mas são as
mesmas em qualquer clima, a
nova arte literária deixou de ser
nacionalista e revestiu-se de carácter
cosmopolita.
2. Esta
reação chega a Portugal
Portugal, nesta
época, já não estava separado do resto
da Europa. O caminho de ferro encurtara
a distância Coimbra – Paris em meses.A
barreira dos Pirenéus era ineficaz para
suster o avanço rapidíssimo destas novas
ideias. Por isso, a sua influência entre
nós não se fez esperar.
No primeiro
período do Romantismo,
como dissemos, os escritores portugueses
sofreram influências do romance
histórico de Walter Scott e Vítor
Hugo (Nossa Senhora de Paris
sobretudo), da poesia
sentimental e tradicionalista de
Lamartine, da evocação histórico-religiosa
de Chateaubriand, do espiritualismo
filosófico de Vítor Cousin, da teoria da literatura de
Madame de Staël e de Schlegel.
Agora, novas
influências vão entrar em ação. De
França, sobretudo, chegam a Coimbra
livros onde se aponta à literatura uma
orientação muito diferente da seguida
nas décadas anteriores. E todas as
especializações do pensamento humano e
da cultura vão ser afetadas em Portugal
por doutrinas inovadoras nascidas no
estrangeiro.
Barreiros, António José,
HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA,
vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria
Editora Pax, Lda, 1992
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Estética
Literária Realista
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Numa
conferência proferida no «Casino», disse
Eça de Queirós a respeito do Realismo
(reconstituição de Antônio Salgado
Júnior, História das
Conferências do Casino, Lisboa,
1930J páginas 55-56):
«É a negação
da arte pela arte; é a proscrição do
convencional, do enfático e do piegas.
É a abolição da retórica considerada
arte de promover a emoção, usando da
inchação do período, da epilepsia da
palavra, da congestão dos tropos. É a
análise com o fito na verdade
absoluta. Por outro lado, o realismo é
uma reação contra o romantismo: o
romantismo era a apoteose do
sentimento; o realismo é a anatomia do
carácter, é a crítica do homem. É a
arte que nos pinta a nossos próprios
olhos – para condenar o que houver de
mau na nossa sociedade.»
E, sobre os
preceitos a seguir na nova escola,
acrescentou o mesmo romancista:
«A norma
agora são as narrativas a frio,
deslizando como as imagens na
superfície de um espelho, sem
intromissão do narrador. O romance tem
de nos transmitir a natureza em
quadros exatíssimos, flagrantes,
reais.»
Estas frases
do autor d'Os Maias são
elucidativas. Aí se encontram as
principais características do Realismo,
que podemos resumir nas alíneas que
seguem.
a) Conteúdo
ideológico profundo.
A carga
ideológica transportada nas obras
românticas não era grande, nem mesmo bem
definida. A este vazio se quiseram opor,
logo de início, os realistas. O problema
aparece bem enunciado na «Questão
Coimbrã» por Antero, que
pergunta na carta Bom Senso
e Bom Gosto : «Será possível viver
sem ideias ? Esta é que é a grande
questão». E tal problema foi trabalhado,
ou pelo menos começou a sê-lo, nas «Conferências
do Casino», que, no entender dos
seus promotores, deviam expor ao público
português «as grandes questões
contemporâneas, religiosas, literárias,
políticas, sociais e científicas».
Proibidas as «Conferências»,
o
aprofundamento
ideológico da obra de arte foi ainda a
finalidade de muitos artigos d'As Farpas, da poesia de Antero, das
obras de Oliveira Martins, etc.
A literatura –
era convencimento geral dos realistas –
devia inspirar-se nas correntes
filosóficas e sociológicas modernas
(hegelianismo, positivismo, socialismo)
para exprimir a real problemática do
homem da época. Só a expressão dessa
problemática lhe ofereceria conteúdo
ideológico válido.
b)
Impassibilidade na análise do real.
Reage a escola
realista contra o idealismo e as
atitudes emocionais enfáticas e
hiperbólicas dos românticos e advoga a
análise, síntese e exposição da
realidade com verdade e com neutralidade
do coração. O «eu» pensante ficará
indiferente diante da Natureza, que deve
ser recriada com exatidão, com pormenor,
em retratos fidelíssimos.
Perante o bem
e o mal, o vício e a virtude, o belo e o
feio, o coração do escritor realista não
deixará transparecer quaisquer emoções.
Também não dará nomes belos ao que é
imoral e baixo, nem encobrirá as reais
consequências do crime, por mais
perfeita e apaixonante que tenha sido a
sua execução.
c) Crítica
social e de costumes.
Cedo se
comprometeram os
realistas portugueses com a reforma da
sociedade. O passado olhavam-no como
estéril; o presente sem nada que se lhe
aproveitasse. Daí os ataques que
começaram a ser lançados d’As
Farpas, das Odes
Modernas de Antero, dos
romances de Eça de Queirós, das obras e
Oliveira Martins contra a alta e média
burguesia e o clero, contra a política e
a literatura do tempo, contra a educação
e a economia, etc.
Paralelamente,
os realistas descobrem e atacam a
imoralidade, os maus costumes. Analisam
corajosamente os aspetos baixos da vida,
sobretudo os vícios e as taras, não
ocultando essas mazelas por mais
asquerosas e degradantes que sejam. E,
para que a obra literária se revista de
cariz científico, esforçam-se por
relacionar as causas (biológias e/ou
sociais) do comportamento das
personagens do romance com o tipo desse
mesmo comportamento.
Às vezes, os
processos desta crítica moral acabam
eles próprios paradoxalmente por
fomentar também a imoralidade. Nem
sempre são tão inofensivos e
construtivos como pretendiam os seus
autores. Mas o que desejavam com essa
crítica era, sem dúvida, corrigir as
pessoas que por ela se viam atingidas
como se se olhassem num espelho. Não se
lê em Stendhal que «o romance é um
espelho que se passeia ao longo de uma
estrada»?
d) Técnica
narrativa e descritiva perfeita.
Em oposição à
retórica e ao hiperbolismo dos
românticos, os realistas procuram ver as
coisas e os factos dentro dos seus
limites naturais e depois recriá-los,
narrando ou descrevendo, de maneira que
a obra literária não seja mais que um
puro reflexo da realidade.
Por isso, usam
os escritores a expressão simples, o tom
desafetado. São então mestres no
desenho, no colorido, na inserção
oportuna e significativa do tempo da
narração. Deste modo, os lugares, os
acontecimentos, as ideias transparecem
das suas criações literárias sem
esforço, sem convencionalismos, com
naturalidade. Simultaneamente cuidam com
esmero o aspeto formal da escrita.
Lembramos que o
romance romântico é, por vezes,
absolutamente verosímil e pode mesmo
propugnar uma tese. Mas, na sua base, é
todo fruto da imaginação e do
sentimentalismo do autor, que, por isso,
lança mão de lugares comuns arredados da
objetividade: o quimérico e o
prodigioso, o ideal e o sentimento, o
monstro e o super-homem. Nisto se afasta
do romance realista.
Barreiros, António José,
HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA,
vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria
Editora Pax, Lda, 1992
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Ideologia
subjacente
ao
Realismo
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a) Irreligiosismo.
Os novos de
Coimbra comentam asserções de Loisy e de
Renan, que no seu criticismo bíblico
separavam o Cristo da
história do Cristo da
fé. Agrada-lhes sobretudo uma
religião sem dogmas, de cunho panteísta.
Assumem atitudes vincadamente
anticlericais.
b)
Inconformismo com a tradição.
Graças ao
avanço da ciência e da técnica, os
nossos como os de fora convencem-se de
que o homem pode superar muitas
limitações que paralisaram os antigos;
e, conseguido o nivelamento de classes,
acreditam que a consciência humana não
mais se importará com os entraves que
lhe opunha outrora a sociedade
absolutista, burguesa e feudal.
Sobre traçado
de Michelet, muitos escritores nossos (Eça, Antero,
Oliveira Martins) tentam desmontar peça
por peça a sociedade lusa, apeá-la do
pedestal da tradição e alicerçá-la em
novos princípios de justiça e dinamismo.
c)
Supremacia da verdade física.
As ciências
exatas e experimentais, secundadas pelo
avanço da técnica, levaram os estudiosos
a considerar a verdade física como a
única válida. Facto que não se demonstre
empiricamente, será de facto para
arrumar. As verdades metafísicas e
morais são relegadas para o mundo das
conjeturas.
d)
Novas teorias filosóficas.
A geração
coimbrã de 70 estuda com avidez
o idealismo de Hegel,
o socialismo de Proudhon,
o positivismo de Comte,
o evolucionismo de Darwin
e Lamarck.
e)
Materialismo otimista.
Ao mesmo
tempo, todos se deixam contaminar por
uma esperança firme no bem-estar
material dos tempos futuros, devido ao
auxílio da técnica e da máquina. E
explicam o atraso do passado por os
homens se terem deixado conduzir por
forças espirituais, sobretudo pela
religião. Daí o manifestarem-se contra
todos os cultos revelados.
Estas doutrinas
iriam fermentar depressa e ficariam na
base do Realismo cujas características
vamos indicar.
Barreiros, António José,
HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA,
vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria
Editora Pax, Lda, 1992
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Estética
Naturalista |
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A filosofia
positivista de Comte, as doutrinas de
Taine, afirmando que a «virtude e o
vício são produtos como o vitríolo e o
açúcar», as teorias de Darwin e Haeckel
sobre a hereditariedade, a adaptação ao
meio e a luta pela vida levaram Zola a
uma conceção determinista
da existência humana.
Por causa disso, o citado
escritor entendeu que o romancista não
devia limitar-se a observar
os acontecimentos e expô-los, como
faziam os realistas; teria
de mostrar, com rigor próprio da
ciência, que os factos psíquicos estão
sujeitos a leis rígidas como os
fenómenos físicos. Então o romance
adquirirá valor social e científico.
Assim, como
ideologia fermentadora da estética
naturalista deveremos ver o positivismo,
um certo cientismo fanático de meados do
século XIX e ainda fortes desejos de uma
modificação da sociedade inspirados nas
doutrinas de Proudhon.
Júlio Lourenço
Pinto publicou na revista Estudos
Livres (dirigida por Teófilo Braga
e Teixeira Bastos) uma série de artigos
sobre esta matéria, os quais depois
reuniu em volume com o título de Estética Naturalista
(1885). Alguns dos princípios que aí
defende podem considerar-se
características da corrente naturalista,
que o autor praticamente não distingue
do Realismo:
- a literatura naturalista
é a expressão dos progressos da
ciência (Fisiologia, Sociologia,
estudo dos carateres, da evolução,
da influência do meio, etc.);
- o romance naturalista
inspira-se na vida quotidiana,
comum;
- o Naturalismo deve usar o
método fisiológico, isto é, deve
descrever as emoções através das
suas manifestações físicas, com
base no estudo dos fisiologistas.
Já muito antes de
meados do século XIX se falava em
Naturalismo. Designava então esse termo
o interesse predominante de filósofos e
artistas pela substância material deste
mundo e pelas suas manifestações
naturais e leis físicas que as regem.
Preceituava consequentemente a imitação
estética das formas reais da Natureza,
com repúdio das imaginativas,
concretizadas na Mitologia.
Com o advento da Geração de 70,
o Naturalismo surge para muitos críticos
como o movimento estético idêntico ao
Realismo. Para outros, porém, as coisas
não são assim tão simples. Vêem em ambas
as estéticas aspetos comuns:
- a arte como
representação mimética objetiva da
realidade exterior (em contraste com
a transfiguração imaginativa,
impregnada de subjetivismo,
praticada pelos românticos);
- a objetividade dos
temas;
- a técnica impessoal de
narrar.
Mas vêem nelas
também elementos diferentes.
O Naturalismo
pretende fazer-se acreditar pelo menos
como séria tentativa de aplicar à obra
literária as descobertas e métodos das
ciências do século XIX (Biologia,
Positivismo filosófico, Psicopatologia
sobretudo). Propõe-se então arrastar a
ciência para o plano da obra literária.
A obra literária ficará assim a
funcionar como meio de demonstração de
teses científicas.
O Realismo, mais
estetizante, ignora a Patologia ou
qualquer outra ciência: como meio de
explicar e ilustrar a obra de arte, nem
desce às profundezas de análise do
Naturalismo. Limita-se a «fotografar»
com isenção a realidade circundante. E,
ao contrário dos naturalistas, que
chafurdam nos males sociais e neles
mexem com notória insensibilidade, os
realistas, ao contactar com os aludidos
males, que mostram e criticam, sentem
profunda náusea, que nem sequer ocultam
(cfr. Lilian R. Furst e Peter N. Skrine
– O Naturalismo,
Lisboa, 1975, págs. 9-20 e 98-100).
Barreiros, António José,
HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA,
vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria
Editora Pax, Lda, 1992
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Cenáculo |
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Designação por que
é geralmente conhecido o grupo formado
por alguns escritores e intelectuais
pertencentes à chamada geração de 1865,
que se reuniam em Lisboa, passados anos
dos seus estudos em Coimbra, para
discutir livremente os assuntos que
apaixonavam essa mocidade atenta ao
movimento de ideias do seu tempo. Alguns
nomes do Cenáculo: J. Batalha Reis, Eça de Queirós, Antero de Quental,
Germano Vieira de Meireles, Salomão
Sáraga e Manuel de Arriaga. Ramalho
Ortigão e Guerra Junqueiro frequentaram
ainda o grupo, que também mantinha
relações com João de Deus. O Cenáculo,
que, segundo Batalha Reis, começava por
não ter consciência clara da sua
existência como grupo constituído,
tentava um pouco prolongar em Lisboa os
tempos de Coimbra - anos de apaixonante
iniciação na cultura europeia, de fervor
revolucionário, de romanesca
efervescência intelectual e sentimental.
As discussões do
Cenáculo começaram na Travessa do
Guarda-Mor, onde Batalha Reis tinha um
quarto alugado; passaram depois para S.
Pedro de Alcântara e para a R. da Cruz
de Pau, e acabaram por se instalar numa
casa da Rua dos Prazeres. Eram, de
princípio, tumultuosas invetivas contra
todos os sistemas e todas as
instituições: contra a sociedade
portuguesa da Regeneração - os seus
bacharéis, os seus ministros, os seus
poetas - mas também contra a ordem do
mundo, contra Deus e o Universo
(«Revolução, Metafísica, Satanismo,
Anarquia, Boémia feroz»). Eram ainda
reminiscências da fase coimbrã dos
poemas cíclicos de exaltação da
Humanidade. Foi nessa época que Eça resolveu
colecionar em volume os contos
publicados na Gazeta de Portugal,
as Prosas Bárbaras, embora
encarasse já com ironia esse esforço de
arte pela arte e meditasse um romance
realista, a História dum lindo corpo.
Foi também na mesma altura que o grupo
inventou os Poemas do Macadame,
do imaginário Carlos Fradique Mendes, à
maneira dos igualmente imaginários
Satânicos do Norte; tratava-se duma
paródia do Satanismo, destinada a
escandalizar e agitar a sociedade
lisboeta. A figura de Fradique, dandy,
culto, viajado, orientalista, sempre a
par das últimas novidades da ciência,
excêntrico e irreverente, encarna em
certos aspetos o espírito do Cenáculo.
A chegada de Antero veio
pôr certa ordem naquela boémia de
tiradas líricas, ditos de espírito e
noitadas ruidosas; Antero trouxe
a paixão de Proudhon, da Sociologia e da
discussão metafísica. A inquietação
inconformista do grupo achou alguém
capaz de a encaminhar, lhe dar forma e
fim. Assim surgiu a ideia das «Conferências
do Casino», realização em que, por
assim dizer, se materializou o espírito
de vanguarda, combativo, irreverente,
que animava os homens do Cenáculo.
O nome de
«Cenáculo» parece não ter sido
contemporâneo das reuniões: anos mais
tarde, aparece nos escritos de alguns
dos componentes para designar esse grupo
que nada teve dum clube, e muito menos
dum clube político, como depois se
pretendeu insinuar - grupo flutuante na
composição e instável na localização,
que foi apenas a aproximação espontânea
e natural de espíritos ligados por
formação semelhante, por verdadeira
amizade, e por interesses e ansiedades
comuns.
Lemos, Ester de, DICIONÁRIO
DE LITERATURA, 3ª edição, 1.º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979
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