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Nos
primeiros anos do terceiro quartel do séc.
XIX, após a longa crise da implantação do
liberalismo em Portugal e sua adaptação à
estrutura histórica do país, o Romantismo
português propriamente dito já tinha dado
quanto dele se podia esperar. Depois da
morte de Garrett (v.) – intuição superior,
descobridora de todos os elementos
essenciais do génio lusitano –, a
insurgência inerente ao movimento
romântico personificara-se em Herculano
(v.), cuja obra foi «a primeira tentativa
de uma história crítica
de Portugal». Mas a rebeldia por ele
representada desapareceu com a sua
retirada para Vale de Lobos. Ficara, pois,
Castilho (v.), em redor do qual se
agruparam em Lisboa as hostes ultrarromânticas.
Castilho, porém, era exatamente o
contrário dum rebelde. Grande purista,
mestre do idioma, dotado de escassa
imaginação criadora, nunca fora realmente
romântico, embora seja em regra mencionado
como terceiro mentor do movimento. Formado
na dissolução do neoclassicismo arcádico,
que nunca abandonou, encarnava uma
peculiar adaptação das formas externas do
Romantismo a um espírito pseudo-clássico.
Fórmula esta que chegara nessa altura a
entronizar-se como gosto oficial do
constitucionalismo. Era ele, pois, o
obstáculo com que havia de tropeçar a nova
rebeldia da geração intelectual que por
volta de 1865 se estava formando em
Coimbra. Esta geração já desde 1861 vinha
dando provas do seu pendor para a rebeldia
à disciplina universitária com ruidos os
tumultos, irreverências e revoltas – que
indicavam claramente a inconformidade da
juventude académica com os valores
oficiais da sociedade em que vivia. A
chamada «Questão de Coimbra» ou do «Bom
senso e Bom gosto» foi a primeira
manifestação importante dessa mocidade,
conhecida hoje nos manuais pelos nomes de
«Geração», «Escola» ou «Dissidência de
Coimbra» e também «Geração de 70»,
e que, com a adição de novos elementos
afins, havia de realizar novas
demonstrações dos seus intuitos
reformistas na vida pública nacional. Com
a famosa «Questão Coimbrã» se pode dizer
que se inicia o espírito contemporâneo nas
letras portuguesas. Com ela entram em
conflito aberto o novo espírito cientifico
europeu e o velho sentimentalismo,
domesticado e retoricizado, do Ultrarromantismo
vernáculo. O novo lirismo que aparecia,
social, humanitário e crítico, não se
alçava apenas contra a tirania do gosto
literário vigente, exercida por Castilho –
que esses rapazes alcunharam de «árcade
póstumo» - mas também, e de modo mais
vasto, contra todos os conceitos
políticos, históricos e filosóficos que
ele e os seus satélites literários
simbolizavam.
A duas personalidades
muito diferentes coube a chefia visível do
fermento coimbrão de revolta: Antero de
Quental (v.), o «Príncipe da Mocidade», que já
se dera a conhecer como poeta com várias obras
(Sonetos, 1861, Beatrice,
1863, Fiat Lux, 1863, e Odes Modernas, 1865) em que
tentava harmonizar uma inspiração sinceramente
romântica com o espírito científico, e Teófilo
Braga (v.), que também tinha aparecido no
mundo das letras com dois poemas cíclicos de
padrão huguesco (Visão dos Tempos
e Tempestades Sonoras, 1864).
O motivo da «Questão» foi aparentemente
trivial. Nesse ano de 1865, Pinheiro Chagas
(v.), um dos jovens corifeus da roda lisboeta
do cego patriarca literário, publicara o Poema da Mocidade, ingénua
biografia lírica em quatro cantos, típica do
saudosismo ultrarromântico.
Castilho, na célebre carta-posfácio dirigida
ao editor do livro, na qual, entre grandes
elogios, indigitava o jovem poeta para uma
cadeira de Literatura, introduziu
incidentalmente referências ironicamente
adversas a Antero e a Teófilo, aludindo aos
«altos» rumos metafísicos da poesia dos dois
«mancebos». A resposta não se fez esperar,
tanto pelo caráter direto do ataque como pelo
desejo de polémica dos novos, impacientes por
afirmar em público a sua insubmissão
iconoclasta e por medir forças com o inimigo.
Antero lançou um opúsculo, intitulado Bom-Senso e Bom-Gosto (1865) –
as duas virtudes que Castilho negara aos dois
porta-estandartes dos académicos coimbrões –,
no qual, com altiva ironia e com
violentíssimos e sarcásticos desacatos,
respondia às palmatoadas do venerando
pontífice das letras oficiais. Os sequazes de
Castilho treplicaram com aparatoso alarde de
forças. A batalha estava travada. Os folhetos
começaram a chover dum e doutro lado. Quental
arremeteu com novo opúsculo, nesse mesmo ano,
sob o título A Dignidade das
Letras e as Literaturas oficiais. Pela
sua parte, Teófilo replicou ao «déspota do
purismo e do léxicon» com outro panfleto, Teocracias Literárias (1866). O
velho árcade não deixou de ter defensores
ilustres. Um deles foi Ramalho Ortigão (v.),
que mais tarde se haveria de integrar
plenamente no grupo de Coimbra, mas que nesta
altura saiu à liça como paladino de Castilho
em Literatura de Hoje (1866
), repreendendo Antero com ásperos adjetivos
pelo seu desrespeito – o que provocou um duelo
entre ambos. Note-se, porém, que nesse folheto
Ramalho marcou uma atitude de independência,
criticando também a fuga de Castilho à luta
das ideias. Outro combatente das hostes de
Castilho foi Camilo (v.), que, em Vaidades
irritadas e irritantes (1866 ), com o
seu temível sarcasmo polémico, veio atacar a
nova geração, – que lhe haveria de dar motivo
para ulteriores refregas. Os panfletos saíram
às dezenas, e derivavam mais e mais para o
terreno das diatribes pessoais. A refrega
entre os epígonos do Romantismo velho que
agonizava e a juvenil rebelião do Realismo
novo que despontava para a vida prolongou-se
pelo ano de 1866. (A bibliografia dos
projéteis desta «batalha» literária, em que
intervieram as figuras mais destacadas das
letras nacionais, e que chegou a estender-se
ao Brasil, está recolhida; v. Inocêncio, Dicionário Bibl. Português,
VIII, 404-408; T. Braga, Modernas
Ideias na Lit. Port., II, pp. 179-184; Catálogo da Biblioteca de F. Palha,
pp. 166-171; J. de Araújo, in Antero
de Quental. In Memoriam,
Apêndice, pp. X-XV).
A «Questão», embora
aparentemente literária, denunciava
incompatibilidades mais profundas. Os jovens
universitários de 1865 reagiam contra a
falsidade que representavam muitos outros
aspetos da vida nacional, produto da adaptação
das formas alienígenas do liberalismo à velha
estrutura tradicional do País. A revolta da
mocidade coimbrã havia de eclodir num
movimento político, filosófico e literário,
cuja amplitude ultrapassou talvez a do próprio
Romantismo. Este grupo que se sublevou contra
Castilho era o mesmo que, acrescido de
personalidades com tendências paralelas, havia
de tratar, em 1871, nas Conferências
Democráticas do Casino (v.), de colocar
Portugal a par da atualidade europeia,
ligando-o «com o movimento moderno», estudando
«as condições de transformação política,
económica e religiosa da sociedade
portuguesa». Na frase de Le Gentil: «para
encontrar uma semelhante fermentação de ideias
em Portugal, seria preciso remontar-se até ao
século de Quinhentos». Da ânsia de renovação
cultural dos estudantes universitários nessa
época dá uma boa ideia Eça de Queirós (v.), ao
lembrar a «ardente e fantástica Coimbra» do
seu tempo: «Pelos Caminhos de Ferro que tinham
aberto a Península, rompiam cada dia, descendo
da França e da Alemanha (através da França),
torrentes de coisas novas, ideias, sistemas,
estéticas, formas, sentimentos, interesses
humanitários. Cada manhã trazia a sua
revelação, como um sol que fosse novo. Era
Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e
Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro
dos Reis; e Balzac com o seu mundo perverso e
lânguido; e Goethe, vasto como um universo; e
Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos
outros! Naquela geração nervosa, sensível e
pálida como a de Musset (por ter sido talvez
como essa concebida durante as guerras civis)
todas estas maravilhas caíam à maneira de
achas numa fogueira, fazendo uma vasta
crepitação e uma vasta fumarada !». «Quando o
fumo [da Questão] se dissipou – conta Antero,
na sua «Carta a W Storck» –, o
que se viu mais claramente foi que havia em
Portugal um grupo de 16 ou 20 rapazes, que não
queriam saber nem da Academia nem dos
Académicos, que já não eram católicos nem
monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel
como os velhos tinham falado de Chateaubriand
e de Cousin; e de Michelet e Proudhon como os
outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes
bárbaros e ciências desconhecidas, como
glótica, filologia, etc.; que inspiravam
talvez pouca confiança pela petulância e pela
irreverência, mas que, inquestionavelmente,
tinham talento e estavam de boa fé, e que, em
suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem. Os factos
confirmaram esta impressão; os dez ou doze
primeiros nomes da literatura de hoje saíram
(salvo dois ou três) da Escola Coimbrã, ou da
influência dela». E assim é. Hoje, já com a
perspetiva que dá a distância histórica, essa
geração surgida à vida pública na famosa
«Questão» avulta como uma das mais brilhantes
constelações que a cultura portuguesa produziu
em qualquer época. O caráter regenerador e de
revisão de valores, o afã de reforma do estilo
da vida e da literatura do país, o europeísmo
cultural, a preocupação com as raízes
históricas da decadência, fazem dela um
antecedente da grande geração espanhola «de
98», que lhe é devedora em muitos aspetos
fundamentais – influência esta que reclama
urgente estudo. v. «D.Jaime» e
Porto.
Guerra da Cal,
Ernesto, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª
edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979
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