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Conferências do Casino

[Conferências do Casino] * [A abertura das Conferências do Casino]
[A supressão das Conferências do Casino] * [A 4ª Conferência do Casino]



Conferências do Casino



Série de conferências realizadas em Lisboa, na primavera de 1871, pelo grupo do Cenáculo, formado por jovens escritores e intelectuais de vanguarda.

O grande impulsionador foi Antero de Quental, que chegara a Lisboa em 1868, e logo principiara a influir nos gostos e interesses do grupo, iniciando-o na leitura de Proudhon, que tanto havia de transparecer nos trabalhos realizados. A ideia das Conferências (a que Antero entusiasticamente se refere em carta a Teófilo Braga, surgiu na Casa da Rua dos Prazeres, onde o Cenáculo reunia então. Antero e Batalha Reis alugaram a sala do Casino Lisbonense, no largo da Abegoaria, hoje de Rafael Bordalo Pinheiro; a Revolução de Setembro, onde então trabalhava Alberto de Queirós, irmão do romancista, encarregou-se da propaganda. A 18 de maio apareceu naquele jornal um manifesto (que já fora distribuído em prospeto), assinado por doze nomes: Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel Arriaga, Salomão Sáraga, Teófilo Braga. Ali se apontavam as intenções dos organizadores das chamadas «Conferências Democráticas»: perante a transformação política e social que o mundo sofria, os signatários sentiam-se no dever de «estudar serenamente a significação dos interesses em jogo»; de investigar como a sociedade é e como ela deve de ser»; de «estudar todas as ideias e todas as correntes do século». A atitude de indiferença e alheamento relativamente às prementes ansiedades do momento – atitude em que Portugal se mantinha – parecia-lhes criminosa e esterilizadora das energias vitais da nação. E os organizadores enunciavam mais claramente o seu programa: «Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas; estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa».

A 22 de maio, Antero de Quental fez a primeira conferência, a que chamou O Espírito das Conferências, e de que hoje nos restam apenas os relatos dos jornais contemporâneos. Era o desenvolvimento do programa contido no manifesto. Insistia-se na ignorância, indiferença e consequente repulsa dos portugueses pelas ideias novas, na missão que aos grandes espíritos incumbia de preparar as inteligências e as consciências para o progresso das sociedades e os resultados da ciência. Aduzia-se de novo o exemplo da restante Europa, e de novo se estigmatizava a vergonhosa exceção que Portugal constituía. O fulcro da discussão nas futuras conferências, anunciava o orador, seria a Revolução no que este conceito continha de mais nobre e elevado. E Antero terminava com um apelo a todas as almas de boa vontade, para que meditassem nos problemas que iam ser propostos, e nas possíveis soluções, embora contrárias aos princípios defendidos pelos conferencistas.

A segunda preleção, realizada dias depois, foi ainda de Antero: Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, publicada meses depois em opúsculo. As causas mencionadas eram três: o catolicismo posterior ao Concílio de Trento – que desvirtuara a essência do Cristianismo e atrofiara a consciência individual; a monarquia absoluta – que coartara as liberdades nacionais e embotara na cega submissão o caráter da raça ibérica; as conquistas ultramarinas – que tinham exaurido as energias do país e criado hábitos funestos de ociosidade e grandeza. Para estes males, cujas consequências ainda então continuavam a fazer-se sentir, as soluções propostas eram: opor ao catolicismo a consciência livre, a ciência, a filosofia, a crença na renovação da Humanidade; à monarquia centralizada a federação republicana, com larga democratização da vida municipal; à inércia industrial, a iniciativa do trabalho livre, sem interferência do Estado, e «organizado de forma a estabelecer a transição para o novo mundo industrial do socialismo, a que pertence o futuro». Antero terminava expondo o seu conceito de Revolução – ação pacífica –, e fechava com a síntese escandalosa: «0 Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno».

Augusto Soromenho falou em seguida sobre Literatura Portuguesa. Fez a negação sistemática dos valores e literários nacionais – com exceção de Gil Vicente, Camões e poucos mais; fundado num etnicismo romântico, negava até a existência duma literatura portuguesa, uma vez que a nossa atividade nesse ramo nunca fora expressão autêntica da vida nacional; os contemporâneos eram os mais vigorosamente atacados – poetas, romancistas, dramaturgos, homens da Imprensa. Mas, para modelo e guia duma renovação salvadora, Soromenho limitava-se a propor Chateaubriand; falava do Belo absoluto como ideal da Literatura e negava que esta fosse o retrato das sociedades; era-o sim da Humanidade em geral. A voz de Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, homem de formação clássica, soou um pouco discordante, apesar do furor de crítica que o animava.

A quarta conferência – a de Eça de Queirós, sobre A Literatura Nova – o Realismo como nova expressão de Arte – contradizia em vários pontos a sua exposição e era na verdade um grito de revolta contra as tradições literárias. Bem integrada no espírito revolucionário, a sua preleção, que diretamente se inspirava em Proudhon, chamava logo de início a atenção para a necessidade de operar na literatura a mesma revolução que se estava dando na política, na ciência, na vida social. Expunha depois a doutrina da arte como produto das sociedades, intimamente ligada ao progresso e decadência destas, e subordinada não já a puros fatores individuais, mas a causas extrínsecas – causas permanentes (o solo, a raça, o clima) e causas acidentais (as circunstâncias históricas). Entre as causas acidentais, a mais importante era sem dúvida a que Eça chamou «ideia-mãe» - o ideal duma sociedade; eis o que não faltava ao século XIX, mas que só havia pouco principiara a ser aproveitado em Literatura, pois muitos tinham-no ignorado ou atraiçoado. Era a Revolução, que inspirara tantos escritores (Eça insistia nos exemplos franceses), de Rabelais a Beaumarchais, até ser renegada e esquecida pela arte contrarrevolucionária; seguia-se depois a crítica cerrada ao Romantismo, a Chateaubriand, ao dessoramento aristocrático e à apoplexia plebeia dos românticos; verberava-se o terrível divórcio entre o artista e a sociedade; depois, Eça anunciava o princípio da reação salutar que se estava dando contra a impostura oficializada: era o Realismo. Seguia-se a definição apologética da nova escola, que estava longe de ser um mero processo formal, como alguns supunham: era a negação da arte pela arte, da retórica balofa, do passadismo; era a análise com vista à verdade absoluta, era a anatomia do caráter; e, dando um retrato do homem e da sociedade, o Realismo tocava os limites da moral; visava à justiça e à verdade, servia o ideal do seu tempo. Bela, justa, verdadeira, a obra de arte realista não podia nunca ser considerada imoral, como tantos criam. E Eça documentava-se com a Bovary, com os quadros de Courbet (como Proudhon já fizera), e acabava com um apelo para que a arte se salvasse pelo Realismo, condenação do vício, revalorização do trabalho e da virtude.

A quinta e última conferência fê-la Adolfo Coelho a 19 de junho; chamou-Ihe A Questão do Ensino, quando, passado tempo, a publicou em opúsculo. Menos avançada que as de Antero e Eça, estava apenas, como a de Soromenho, numa pura posição de ataque às coisas portuguesas, e as soluções que apontava circunscreviam-se ainda a uma zona restrita da vida nacional. Depois de traçar o quadro desolador do ensino em Portugal através da História, Adolfo Coelho apontava como solução a separação completa de Igreja e Estado, e a mais ampla liberdade de consciência. E como, segundo o conferencista, a Igreja não fazia mais que deprimir o povo, e do Estado também nada havia a esperar, o único remédio era apelar para a iniciativa privada, esperando que ao menos esta se esforçasse por difundir o verdadeiro espirito cientifico – único verdadeiramente profícuo no ensino.

Anunciou-se ainda uma sexta conferência, Os historiadores críticos de Jesus, de Salomão Sáraga. Mas, no dia marcado para a sua realização, apareceu colado na porta do Casino Lisbonense o aviso de proibição das conferências, «preleções em que se expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado». À volta desta proibição levantou-se violenta celeuma; lavrou-se imediatamente um protesto, e logo choveram as cartas aos jornais e os opúsculos de polémica entre os quais a terrível carta de Antero «ao Marquês de Ávila e de Bolama». Os protestos foram vãos; a proibição manteve-se, e nunca chegaram a realizar-se as outras conferências previstas: O Socialismo, por Batalha Reis; A República, por Antero; A Instrução Primária, por Adolfo Coelho; e A Dedução Positiva da Ideia Democrática, por Augusto Fuschini.

Encaradas no seu conjunto, as «Conferências do Casino» representam entre nós a afirmação dum movimento de ideias que contagiara os intelectuais portugueses, através dos livros vindos de fora. Era o historicismo, o interesse pelas ciências políticas e sociais, a critica positivista à maneira de Taine, o evolucionismo de Darwin, um alvorecer de interesse pelas teorias de Marx e Engels, os ecos da Internacional, o realismo em Arte como expressão dum novo ideal de vida, a crença no progresso das sociedades, conseguido através do avanço das ciências – das positivas, cujo prestígio crescia a cada instante. E, embora as preleções de Soromenho e A. Coelho se tenham mantido alheias a este espírito revolucionário, e apenas tenham marcado uma posição de ácido negativismo quanto às coisas portuguesas – a verdade é que o espírito das Conferências do Casino foi este. Como Eça afirmava nas Farpas, «era a primeira vez que a Revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a sua tribuna».

Lemos, Ester de, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 1º volume, Porto, Figueirinhas, 1979






A abertura das Conferências do Casino


maio 1871

O Sr. Antero de Quental abriu no dia 19 as conferências democráticas no Casino.

É a primeira vez que a revolução, sob a sua forma científica, tem em Portugal a palavra.

O mundo revolucionário, ou antes, na sua feição partidária e política, o mundo republicano, tinha-se até hoje manifestado indistintamente - por alguma voz isolada que sem eco se extinguia no silêncio da opinião, ou pelas agitações, mais suspeitadas que verificadas, de especuladores e de intrigantes. Às vezes meia folha de papel era distribuída grátis, com alguns insultos aos ministros, ao Rei, e a um ou outro regedor. Outras vezes aparecia um jornal, que, em tom lírico, cantava a fraternidade e os seus encantos, dirigia apóstrofes ao rochedo de Guernesey, citava o Gólgota em questões de fazenda, e voltando-se para o Rei, dizia-lhe: - Tu! Por vezes ainda um jornal de capa vermelha, e de calúnia de outras cores, a propósito de liberdade insultava senhoras, e, sob o pretexto de ser um jornal, de combate, era um jornal de difamação. Havia outros republicanos: todos os jornais na oposição se dão vagamente esse ar, falam então no suor do povo... (Imaginarão que a aristocracia não sua? Como se iludem!) O Jornal do Comércio, representante da burguesia liberal, foi algum tempo republicano, e dizia aos tiranos coisas desagradáveis que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores. O partido do Sr. Marquês de Angeja parece que também tendia para republicano; pelo menos assim o pensavam os criados do Martinho. Alguns reformistas têm dito que o sr. bispo de Viseu, bem no seu fundo - é republicano. Corre que outros chefes de partido o são também. E isto vai numa tal contaminação democrática, que o único conservador constante que nos fica - é Danton!

Tal era o partido republicano, que causava hilaridade! Por isso o espanto é grande, vendo aparecer homens que apresentam a revolução serenamente - como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia.

As conferências hão-de encontrar resistências. Em primeiro lugar o nosso público inteligente e literário, ama sobretudo o bel-esprit, a oratória, a frase. Moda peninsular. Ora as conferências pela sua natureza científica e experimental - exigem justamente o contrário dos aparatos retóricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência. As declamações têm tirado à democracia o seu caráter privativo de realidade e de ciência. Temos ouvido cantar a democracia, berrá-la, soluçá-la: é tempo de a vermos demonstrar. Deixemos no bengaleiro a nossa perpétua inclinação nacional de escutar odes - e entremos só com a tendência humana de resolver problemas.

A revolução aparece ao mundo conservador, como o cristianismo ao mundo sofista. Os sofistas tinham tomado o partido de rir daqueles nazarenos. É o que faz agora o periódico a Nação, quando se trata de revolução. Não és original, ó Nação!

Tenhamos bom senso! Escutemos a revolução; e reservemo-nos a liberdade de a esmagar - depois de a ouvir.

Uma coisa que a compromete é ela falar em nome do proletário. O proletário pretende explicar-se; quer por um lado contar a sua miséria, por outro provar o seu direito. O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário. Silêncio ao pobre! gritava Lamennais em 48. Esta palavra horrorosa, que é um dobre a finados pela dignidade humana, inspira ainda as instituições. - Santo Deus! Parece que lhes dói a consciência, às instituições! Deixemos falar o proletário. Que receiam? Não temos os nossos exércitos, os nossos parlamentos, a nossa polícia? Deixemo-lo falar.

Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refutemo-lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências - se bem atentamos neste ato - reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer conferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. E, quando aqueles que falam no poder os representam mal, os operários ingleses pedem-lhes contas nos seus comícios, cobrem-nos de impropérios, e atiram-lhes com cebolas à cara. Se a vítima tenta fugir ou fazer resistência à cebola ou ao insulto, um policeman segura-o gravemente pela gola da casaca, e convida em nome da moralidade, o procurador do povo, a esperar pelos restos da injúria e da hortaliça.

Temos ainda que, atualmente, o grande caráter das conferências é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue?

Não o nega decerto o parlamento onde todos os dias ministros, maiorias e oposições, dizem que o País está desorganizado.

Não o nega decerto a imprensa, que todos os dias declara que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comércio, Gazeta, etc., passim).

Não o nega a opinião, que todos os dias exclama, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos: - Ora! isto está podre!

Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema, e deseja, por uma propaganda nova, uma reforma social.

Sejamos lógicos. As Farpas não são o legitimismo, nem a república, nem o constitucionalismo, nem o sebastianismo. Desejam simplesmente ser a lógica e o bom senso.

Vejamos: não tem a imprensa confessado todos os dias a podridão do País e a desorganização das suas forças vivas? (Jornais políticos, passim).

Ou são sinceros, ou não. Se não são, então faltam duplamente à dignidade, porque desconsideram os outros enganando-os, e desconsideram-se a si mentindo. São perturbadores de profissão: querem lançar, de caso pensado, o ceticismo no espírito público, para o interesse da sua intriga. Pertencem portanto ao ministério público. - Se são sinceros então devem estar radiantes de alegria, porque têm essa propaganda nova que implicitamente pediam.

Não vemos nós os ministérios dissolvendo câmaras, depois de lhes experimentarem um momento de inteligência - Outra, que esta não presta!?

Não vemos os partidos, em quem deve residir a consciência do Estado, derrubarem todos os dias ministérios, como um homem que num chapeleiro experimenta chapéus - Outro, que este não serve?

E vós, jornais políticos, não confessais vós todos os dias a impotência dos vossos políticos? Não vos tendes dito uns aos outros os extremos insultos? Não vos tendes destruído uns pelos outros? Apelamos para ti, leitor de bom senso. Não é verdade que o Diário Popular tem dito, dentro do sistema, que o Sr. Fontes é incapaz de organizar o País? É. - Não é verdade que a Revolução tem provado à saciedade, dentro do sistema, que o sr. bispo de Viseu é incapaz de organizar o País? É. - Não é verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles são incapazes? E não é verdade que a Revolução e o Diário Popular têm afirmado uniformemente que o incapaz é o Sr. Braamcamp? É. Por consequência parece que estais inutilizados uns pelos outros. Se um fala verdade, todos a falam. Se um a falseia, todos a falseiam. Portanto ou tendes de aceitar a vossa condenação, ou tendes de confessar a vossa falsidade.

Qual é a conclusão? A necessidade de uma propaganda nova. É o que a imprensa está pedindo há longo tempo; é o que o Casino enfim lhe fornece! Muito feliz ainda que lhe não apareça com chuços, tocando a rebate pelas ruas, e que lhe apareça apenas com ideias, e tocando a rebate através das consciências. Todos os partidos estão pois interessados nesta propaganda. Quem fala depois do Sr. Antero de Quental? Deve ser o sr. bispo de Viseu!

Queiroz, Eça de, Uma Campanha Alegre (de «As Farpas»), volume I, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1979






A supressão das Conferências do Casino


maio 1871

O sr. ministro do Reino fez entregar por um empregado de polícia ao Sr. Zagalo, diretor do Casino, um papel - reacionário pela intenção, mas demagógico pela gramática - em que se notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferências democráticas.

Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa...

E achas certamente na tua consciência que este ato do sr. marquês de Ávila, não tendo de certo modo equidade, não tem de modo algum legalidade; que é sobretudo profundamente inábil; e que o sr. marquês, dando um golpe de Estado contra alguns escritores que no Casino faziam crítica de história e de literatura, foi criar uma atitude política onde só havia um intuito científico.

Homens que numa sala, com senhoras na galeria, movem questões científicas e literárias, numa alta generalização de ideias, são tão inofensivos na política do seu país como um livro de matemática. São motores de pensamento e de estudo, que vão tocar a rebate no sino das Mercês. - Mas homens que o Governo obriga a fazer um protesto num café, na agitação de trezentas pessoas; a percorrerem as redações dos jornais, seguidos de uma multidão indignada; a colocarem-se como defensores da consciência ofendida - esses parecem-se terrivelmente com homens de uma ação política! As conferências desceram assim da sua serenidade filosófica; estão na luta, estão na discussão da Carta, estão na prosa da gazeta do Povo!

Vejamos a legalidade do facto. Num país constitucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a Carta Constitucional - ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento.

Diz a Carta no seu artigo 145.º:

A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses... é garantida pela Constituição do Reino, pela maneira seguinte:

§ 3.º Todos podem comunicar o seu pensamento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito.

Temos, pois, adquiridos à certeza dois pontos:

1.º Que todo o cidadão pode publicar o seu pensamento falando ou escrevendo;
2.º Que o cidadão fica responsável pelo abuso do seu direito.

Por consequência, logo na primeira conferência:

1.º O Sr. Antero de Quental podia falar sobre a religião em toda a liberdade da sua opinião;
2.º Se abusasse, o Sr. Antero de Quental respondia pelo abuso.

É lógico. Ora quem torna efetiva a responsabilidade desse abuso?

Em primeiro lugar: O comissário que deve assistir a todas as reuniões públicas, na ideia do decreto com força de lei de 15 de junho de 1870. «As reuniões públicas (diz este decreto) podem ser dissolvidas pela autoridade... quando por qualquer forma perturbarem a ordem pública. A dissolução da reunião só pode ser intimada à assembleia - depois da autoridade advertir em voz alta os diretores da reunião (neste caso, o preletor)». O comissário assistente das conferências, o Sr. Rangel, não intimou, e não advertiu o Sr. Antero de Quental, nem em voz alta, nem com gestos. Talvez o tivesse feito por suspiros - mas esse caso não está na lei. Portanto o sr. comissário não achou, na sua consciência, que o Sr. Antero de Quental abusasse da liberdade de expor o seu pensamento.

Em segundo lugar: O ministério público querelou do Sr. Antero de Quental? Não.

Por consequência nem o comissário presente à conferência, nem o ministério público, encontraram na conferência do Sr. Antero de Quental abuso punível.

As conferências que se seguiram foram, uma sobre crítica literária contemporânea, outra sobre o realismo, como nova expressão da arte, a terceira sobre o ensino e as suas reformas. Em que atacavam estas a religião ou as instituições políticas? Fazer a crítica da literatura contemporânea é ofender (segundo a linguagem rococó da portaria) o código fundamental da monarquia? Nesse caso pedimos a cabeça do Sr. Pinheiro Chagas, o crânio do Sr. Júlio Machado, e uma grande porção do Sr. Luciano Cordeiro! Quem o diria!? Quando se escrever que o Sr. Vidal é um poeta lírico ligeiramente inferior a Lamartine, o trono de Sua Majestade ficará bambaleando um quarto de hora!

Mas vejamos! A última conferência foi feita no dia 19 de junho; a portaria foi dada no dia 26 do mesmo mês, antes da conferência que ia ser feita. Por consequência o ser. marquês de Ávila fechou, não as conferências que se tinham feito, o que seria um pouco inútil - mas as conferências que se iam fazer.

Ora, segundo o citado artigo da Carta, só se pode coibir a liberdade de pensamento quando houver abuso: e como esse abuso não existia, pelo simples motivo que a conferência ainda não fora feita, e por consequência o pensamento não fora manifestado - segue-se que o sr. ministro do Reino violou a Carta, se esta palavra violar ainda se pode empregar a respeito da Carta, sem atrair sorrisos maliciosos sobre tão insensata metáfora.

Ao ministro cabia unicamente o direito de fazer processar o Sr. Antero de Quental. Isso era a lógica, o bom senso, a legalidade.

Do que o ministro não tem o mínimo direito é da rude supressão da palavra a preletores de literatura, de arte e de pedagogia. Fazendo, como fez, tal supressão está fora da lei, fora do espírito do tempo, quase fora da humanidade.

Com direito igual pode amanhã o sr. ministro mandar suprimir As Farpas, os romances do Sr. Camilo Castelo Branco, os volumes de história do Sr. Alexandre Herculano, os jornais, a conversação, esta simples pergunta - «Como está? passou bem?» Pode suprimir ainda um sorriso ou um olhar expressivo. Pode fulminar o espirro!

Ora o artigo 103.º da Carta diz:

«Os ministros são responsáveis... § 5.º Pelo que obrarem contra a liberdade dos cidadãos.»

E o § 28 do artigo 145.º acrescenta:

«todo o cidadão poderá fazer apresentar reclamações, queixas... e ATÉ expor qualquer infração da constituição, requerendo... a efetiva responsabilidade do infrator.»

Seria portanto possível responder à portaria do sr. marquês de Ávila com o instrumento seguinte:

- «Requeiro à Câmara dos Deputados que torne efetiva a responsabilidade do sr. ministro do Reino, procedendo contra ele como infrator do § 3.º do art.º 145 da Carta Constitucional - segundo me é permitido pelo § 28 do citado artigo.»

Tanto em relação ao preletor que abusou da liberdade, segundo a Carta, como para o ministro que infringiu a lei, segundo a mesma Carta, temos até aqui argumentado com a legalidade.

Agora a equidade:

Que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixa então circular no País os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot? Foi a crítica religiosa? Para que se consente então que atravessem a fronteira ou a alfândega os livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet?

Sejamos lógicos; fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas expulsemos os livros onde se lêem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a inteligência, para a memória, e para a ação: é a mesma entrada para a consciência por duas portas paralelas. Façamos calar o Sr. Antero de Quental, mas proibamos na alfândega a entrada dos livros de Vítor Hugo, Proudhon, Langlois, Feuerbach, Quinet, Littré, toda a crítica francesa, todo o pensamento alemão, toda a ideia, toda a história. Dobremos a cabeça sobre a nossa ignorância e sobre a nossa inércia, e deixemo-nos apodrecer, mudos, vis, inertes, na torpeza moral e no tédio.

Nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, se lance através das ambições e das cóleras o grito de revolta! Queremos a revolução preparada na região das ideias e da ciência; espalhada pela influência pacífica de uma opinião esclarecida; realizada pelas concessões sucessivas dos poderes conservadores; - enfim uma revolução pelo Governo, tal como ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. É assim que queremos a revolução. Detestamos o facho tradicional, o sentimento rebate de sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário - um tanto de mais!

Seríamos pois nós os primeiros a pedir o encerramento das conferências do Casino, se a ciência dos conferentes se resumisse a dizer:

- A barricada, meus senhores, é amanhã na Rua da Bitesga! Quanto ao petróleo, está lá em baixo no bilheteiro!

Mas que se faça calar, pondo-lhe a mão na boca, a ciência, a crítica literária, a história, contra isso, do fundo deste livro, pequeno mas honrado, em nome do respeito que nós devemos a nós mesmos, e do exemplo que devemos a nossos filhos, protestamos e apelamos, não para a Europa, o que seria sofrivelmente inútil, mas para o próprio sr. marquês de Ávila, para uma coisa que ele deve ter debaixo da sua farda, uma coisa que não se cala, ainda quando em redor a intriga e o interesse fazem um ruído horrível - a consciência!

Pois quê! Podem ler-se nas Bibliotecas e no Grémio, jornais republicanos, jornais da Comuna, toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas - e não há-de ser permitido falar do que há de mais abstrato na política, de mais estranho e superior às agitações humanas e às violências partidárias, a História?

Pois é permitido à Nação publicar, em prosa impressa e permanente, ataques rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucional - e não pode ser permitido ao Sr. Antero condenar as monarquias absolutas, e ao Sr. Soromenho condenar os romances eróticos?

Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a sua política, e não é permitido a um conferente do Casino fazer a crítica da política dos jesuítas?

Argumentemos! Eu posso comprar um livro de Proudhon que combate o catolicismo, as monarquias, o capital: estou na legalidade. Posso lê-lo em voz alta aos meus amigos, ou aos meus criados: estou nos limites da Carta. Posso decorá-lo: haverá alguma lei que me proíba este exercício de memória? Posso recitá-lo. à luz do Sol ou à luz do gás, com gestos moderados ou com gestos descompostos: tudo isto é legal. Que eu trate no Casino de algum dos pontos de que se ocupa esse livro, proíbem-mo! Concordo em que mo proíbam, mas proíbam também aos livreiros a venda de Proudhon!

Quando se proibiu em França que Renan falasse, obstou-se ao mesmo tempo que Renan fosse lido.

Antes de haver conferências no Casino havia ali cançonetas. Mulheres decotadas até ao estômago, com os braços nus, a pantorrilla ao léu, a boca avinhada, cantavam, entre toda a sorte de gestos desbragados, um repertório de cantigas impuras, obscenas, imundas! Num verso bestial, a um compasso acanalhado, ridicularizava-se aí o pudor, a família, o trabalho, a virgindade, a dignidade, a honra, Deus! Eram também conferências. Eram as conferências do deboche. E havia muitos alunos!

Pois isso que era a obscenidade, a infâmia, a crápula, parecia ao sr. marquês de Ávila compatível com a moral do Estado!

As conferências, que eram o estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, essas pareceram ao sr. marquês incompatíveis com toda a moral!

Homens refestelados, bebendo conhaque, gritando, apupando desgraçadas criaturas que se deslocam em trejeitos vis para fazer rir - isso é permitido por todas as leis!

Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização - isso é proibido com tanta violência que se salta por cima da Carta para o proibir! a isso manda-se um polícia dar duas voltas à chave! Miserere! Miserere!

Queiroz, Eça de, Uma Campanha Alegre (de «As Farpas»), volume I, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1979







A 4ª Conferência do Casino


«o Realismo como nova expressão da arte»

 

Numa conferência proferida no «Casino» [12 de junho], disse Eça de Queirós a respeito do Realismo (reconstituição de Antônio Salgado Júnior, História das Conferências do Casino, Lisboa, 1930J páginas 55-56): 

«É a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada arte de promover a emoção, usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o realismo é uma reação contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do caráter, é a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.

E, sobre os preceitos a seguir na nova escola, acrescentou o mesmo romancista:

«A norma agora são as narrativas a frio, deslizando como as imagens na superfície de um espelho, sem intromissão do narrador. O romance tem de nos transmitir a natureza em quadros exatíssimos, flagrantes, reais.»

Estas frases do autor d'Os Maias são elucidativas. Aí se encontram as principais características do Realismo, que podemos resumir nas alíneas que seguem.
 

a) Conteúdo ideológico profundo. 

A carga ideológica transportada nas obras românticas não era grande, nem mesmo bem definida. A este vazio se quiseram opor, logo de início, os realistas. O problema aparece bem enunciado na «Questão Coimbrã» por Antero, que pergunta na carta Bom Senso e Bom Gosto : «Será possível viver sem ideias ? Esta é que é a grande questão». E tal problema foi trabalhado, ou pelo menos começou a sê-lo, nas «Conferências do Casino», que, no entender dos seus promotores, deviam expor ao público português «as grandes questões contemporâneas, religiosas, literárias, políticas, sociais e científicas». Proibidas as «Conferências», o aprofundamento ideológico da obra de arte foi ainda a finalidade de muitos artigos d'As Farpas, da poesia de Antero, das obras de Oliveira Martins, etc.

A literatura – era convencimento geral dos realistas – devia inspirar-se nas correntes filosóficas e sociológicas modernas (hegelianismo, positivismo, socialismo) para exprimir a real problemática do homem da época. Só a expressão dessa problemática lhe ofereceria conteúdo ideológico válido.
 

b) Impassibilidade na análise do real.

Reage a escola realista contra o idealismo e as atitudes emocionais enfáticas e hiperbólicas dos românticos e advoga a análise, síntese e exposição da realidade com verdade e com neutralidade do coração. O «eu» pensante ficará indiferente diante da Natureza, que deve ser recriada com exatidão, com pormenor, em retratos fidelíssimos.

Perante o bem e o mal, o vício e a virtude, o belo e o feio, o coração do escritor realista não deixará transparecer quaisquer emoções. Também não dará nomes belos ao que é imoral e baixo, nem encobrirá as reais consequências do crime, por mais perfeita e apaixonante que tenha sido a sua execução.


c) Crítica social e de costumes.

 Cedo se comprometeram  os realistas portugueses com a reforma da sociedade. O passado olhavam-no como estéril; o presente sem nada que se lhe aproveitasse. Daí os ataques que começaram a ser lançados d’As Farpas, das Odes Modernas de Antero, dos romances de Eça de Queirós, das obras e Oliveira Martins contra a alta e média burguesia e o clero, contra a política e a literatura do tempo, contra a educação e a economia, etc.

Paralelamente, os realistas descobrem e atacam a imoralidade, os maus costumes. Analisam corajosamente os aspetos baixos da vida, sobretudo os vícios e as taras, não ocultando essas mazelas por mais asquerosas e degradantes que sejam. E, para que a obra literária se revista de cariz científico, esforçam-se por relacionar as causas (biológias e/ou sociais) do comportamento das personagens do romance com o tipo desse mesmo comportamento.

Às vezes, os processos desta crítica moral acabam eles próprios paradoxalmente por fomentar também a imoralidade. Nem sempre são tão inofensivos e construtivos como pretendiam os seus autores. Mas o que desejavam com essa crítica era, sem dúvida, corrigir as pessoas que por ela se viam atingidas como se se olhassem num espelho. Não se lê em Stendhal que «o romance é um espelho que se passeia ao longo de uma estrada»?

 

d) Técnica narrativa e descritiva perfeita.

 Em oposição à retórica e ao hiperbolismo dos românticos, os realistas procuram ver as coisas e os factos dentro dos seus limites naturais e depois recriá-los, narrando ou descrevendo, de maneira que a obra literária não seja mais que um puro reflexo da realidade.

Por isso, usam os escritores a expressão simples, o tom desafetado. São então mestres no desenho, no colorido, na inserção oportuna e significativa do tempo da narração. Deste modo, os lugares, os acontecimentos, as ideias transparecem das suas criações literárias sem esforço, sem convencionalismos, com naturalidade. Simultaneamente cuidam com esmero o aspeto formal da escrita.

Lembramos que o romance romântico é, por vezes, absolutamente verosímil e pode mesmo propugnar uma tese. Mas, na sua base, é todo fruto da imaginação e do sentimentalismo do autor, que, por isso, lança mão de lugares comuns arredados da objetividade: o quimérico e o prodigioso, o ideal e o sentimento, o monstro e o super-homem. Nisto se afasta do romance realista.

Barreiros, António José, HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992

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