Esta paisagem toda, renque de
árvores, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais
antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e
o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra
por mim dentro,
E passa para o outro lado da
minha alma...
II
Ilumina-se a igreja por
dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é
mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva
porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja
vistas de fora são o som da chuva ouvido
por dentro...
O esplendor do altar-mor é o
eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro
tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e
vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no
facto de haver coro...
A missa é um automóvel que
passa
Através dos fiéis que se
ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em
esplendor maior
A festa da catedral e o ruído
da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do
padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de
automóvel...
E apagam-se as luzes da
igreja
Na chuva que cessa.
III
A Grande Esfinge do Egipto
sonha pôr este papel dentro...
Escrevo - e ela aparece-me
através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se
as pirâmides...
Escrevo - perturbo-me de ver
o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um
abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as
pirâmides a escrever versos à luz clara
deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de
alto através dos traços que faço com a
pena...
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr
no papel...
Atravessa o eu não poder
vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do
tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo,
entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops,
olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que
se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos
embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...
Funerais do rei Quéops em
ouro velho e Mim!...
IV
Que pandeiretas o silêncio
deste quarto!...
As paredes estão na
Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho
fixo da luz...
De repente todo o espaço
pára...,
Pára, escorrega,
desembrulha-se...,
E num canto do tecto, muito
mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas
secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de
Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos
fechados...
V
Lá fora vai um redemoinho de
sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes,
bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira
iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira
fazem ruídos dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha
à cabeça
Que passam lá fora, cheias de
estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos
peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as
luzes das barracas, com a noite e com o
luar,
E os dois grupos encontram-se
e penetram-se
Até formarem só um que é os
dois...
A feira e as luzes da feira e
a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e
a levanta no ar,
Andam por cima das copas das
árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo
dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das
bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de
Primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e
luzes é o chão deste dia de sol...
De repente alguém sacode esta
hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas
realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias
de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e
não pensam em voltar...
Pó de oiro branco e negro
sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos
daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia
de hoje...
VI
O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música
rompe...
Lembra-me a minha infância,
aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum
muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que
tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e
do outro lado
Um cavalo azul a correr um jockey
amarelo...
Prossegue a música, e eis na
minha infância
De repente entre mim e o
maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão
verde,
Ora um cavalo azul com um jockey
amarelo...
Todo o teatro é o meu
quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a
bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que
passeia no meu quintal
Vestida de cão verde
tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre
mim e os músicos...)
Atiro-a de encontro à minha
infância e ela
Atravessa o teatro todo que
está aos meus pés
A brincar com um jockey
amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece
por cima do muro
Do meu quintal... E a música
atira com bolas
À minha infância... E o muro
do quintal é feito de gestos
De batuta e
rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys
amarelos...
Todo o teatro é um muro
branco de música
Por onde um cão verde corre
atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo
azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da
direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os
ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar
música,
Para onde há filas de bolas
na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre
as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro
que desaba,
A bola rola pelo
despenhadeiro dos meus sonhos
interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o
maestro, jockey amarelo
tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta
em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma
bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe
desaparece pelas costas abaixo...