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Folhas Caídas - Almeida Garrett
Poemas com linhas de leitura de Manuel Maria

Índice
- Advertência
- Ignoto Deo
- Adeus
- O anjo caído
- Este inferno de amar
- Gozo e dor
- Perfume da Rosa
- Os cinco sentidos
- Cascais
- Estes sítios
- Não te amo
- Anjo és
- Barca bela
Advertência a Folhas Caídas

Antes que venha o inverno e disperse ao vento essas folhas de poesia que por aí caíram, vamos escolher uma ou outra que valha a pena conservar, ainda que não seja senão para memória.

A outros versos chamei eu já as últimas recordações de minha vida poética. Enganei o público, mas de boa fé, porque me enganei primeiro a mim. Protestos de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e morrem abraçados com o louro - às vezes imaginário, porque ninguém os coroa.

Eu pouco mais tinha de vinte anos quando publiquei certo poema, e jurei que eram os últimos versos que fazia. Que juramentos!

Se dos meus se rirem, têm razão; mas saibam que eu também primeiro me ri deles. Poeta na primavera, no estio e no outono da vida, hei-de sê-lo no inverno, se lá chegar, e hei-de sê-lo em tudo. Mas dantes cuidava que não, e nisso ia o erro.

Os cantos que formam esta pequena coleção pertencem todos a uma época de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas outras coleções.

Essas mais ou menos mostram o poeta que canta diante do público. Das Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de estilos e modos de cantar.

Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gosto mais deles do que nenhuns outros que fizesse. Porquê? É impossível dizê-lo, mas é verdade. E, como nada são por ele nem para ele, é provável que o público sinta bem diversamente do autor. Que importa?

Apesar de sempre se dizer e escrever há cem mil anos o contrário, parece-me que o melhor e o mais reto juiz que pode ter um escritor é ele próprio, quando o não cega o amor-próprio. Eu sei que tenho o olhos abertos, ao menos agora.

Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso, a queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno não impede de ver os defeitos das crianças.

Enfim, eu não queimo estes. Consagrei-os Ignoto Deo. E o deus que os inspirou que os aniquile se quiser: não me julgo com direito de o fazer eu.

Ainda assim, no Ignoto Deo não imaginem alguma divindade meia velada com o cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.

Imaginação que porventura não se realiza nunca. E daí quem sabe? A culpa é talvez da palavra, que é abstrata de mais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza, e ainda coisas mais materiais, como o frio e o calor, não são senão estados comparativos, aproximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a ele.

Logo o poeta é louco porque aspira sempre ao impossível. Não sei. Essa é uma disputação mais longa.

Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito , que, tendendo ao seu fim único, a posse do ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chagar a ele - ora ri amargamente porque reconhece o seu engano - ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã.

Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele.

Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria.

E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte.

Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta.

janeiro - 1853

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Linhas de Leitura

A coletânea Folhas Caídas não é fruto de um acaso, antes o produto de uma escolha criteriosa.

  1. Qualquer que seja a reação do público em relação aos poemas, mesmo que de riso, será sempre em segunda mão, porque, primeiro, a sentiu o próprio autor.

  2. O poeta sente a necessidade de justificar a publicação de Folhas Caídas (Garrett tinha, então (1853),  54 anos de idade). Certamente que o que queria justificar era o seu conteúdo, por isso teve o cuidado de advertir que, mesmo no inverno da vida, haveria de ser poeta «em tudo».

  3. As Folhas Caídas dizem respeito a uma época de vida íntima e nada são pelo público nem para o público.

  4. As Folhas Caídas foram inspiradas por um deus a quem o autor as consagrou.

  5. O poeta parece pretender mistificar o Ignoto Deo a quem consagra os seus versos, envolvendo-o num manto de mistério.

  6. Segundo Garrett, o poeta é louco porque aspira sempre ao impossível. Resta saber que impossível será este.

  7. As Folhas Caídas «representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito». Efetivamente, dá-se conta disto mesmo, não só de poema para poema, mas, por vezes, ao longo de um mesmo poema.

  8. O mundo material e o poético são incompatíveis, mas o que prevalece é o espírito (poesia) e não a matéria.

  9. Nos poetas, apenas o corpo é mortal, a poesia, não:

  10. «E aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando», Camões, Os Lusíadas, I, 2 (Proposição).

Para consultar o Glossário de Termos Literários, clique aqui.


Ignoto Deo
(D. D. D.)

Creio em ti, Deus; a fé viva

De minha alma a ti se eleva.

És: - o que és não sei. Deriva

Meu ser do teu: luz... e treva,

 5 Em que - indistintas! - se envolve

Este espírito agitado,

De ti vêm, a ti devolve.

O Nada, a que foi roubado

Pelo sopro criador

10 Tudo o mais, o há-de tragar.

Só vive do eterno ardor

O que está sempre a aspirar

Ao infinito donde veio.

Beleza és tu, luz és tu,

15 Verdade és tu só. Não creio

Senão em ti; o olho nu

Do homem não vê na terra

Mais que a dúvida, a incerteza,

A forma que engana e erra.

20 Essência! a real beleza,

O puro amor - o prazer

Que não fatiga e não gasta...

Só por ti os pode ver

O que, inspirado, se afasta,

25 Ignoto Deo, das ronceiras,

Vulgares turbas: despidos

Das coisas vãs e grosseiras

Sua alma, razão, sentidos,

A ti se dão, em ti vida,

30 E por ti vida têm. Eu, consagrado

A teu altar, me prostro e a combatida

Existência aqui ponho, aqui votado

Fica este livro - confissão sincera

Da alma que a ti voou e em ti só spera.

Linhas de Leitura

  1. No presente poema, como o testemunham o título e o seu parêntesis (D. D. D. (dat, donat, dedicat (dá, sacrifica, consagra))), o sujeito poético concretiza a dedicatória de Folhas Caídas a um deus desconhecido (Ignoto Deo), dedicatória essa, aliás, anunciada já na Advertência («Consagrei-os Ignoto Deo») e confirmada nos vv 30/34;
  2. O poema apresenta vários apontamentos reveladores duma conceção platónica:
  • «És: - o que és não sei», v 3 (o verbo ser é o que melhor traduz, por si só, qualquer essência);
  • «Deriva / Meu ser do teu», vv 3/4;
  • «eterno», v 11;
  • «Beleza és tu, luz és tu, / Verdade és tu só», vv 14/15 (Platão é o filósofo do verdadeiro, do belo e do bom eternos, conceitos de uma realidade eterna e imutável);
  • «o olho nu / Do homem não vê na terra / Mais que (...) / A forma que engana e erra.», vv 16/19;
  • «Essência! a real beleza, / O puro amor», vv20/21;
  • «... alma que a ti voou e em ti só spera», v 34;
  1. Existem, no entanto, visíveis contradições. Inocentes? Inconscientes? Não o creio. Em arte, nada se faz ao acaso, ou por acaso. Vejamos algumas dessas contradições:
  • O pronome ti, referente a Deus, encontra-se grafado com minúscula;
  • Um espírito que deriva de um ser perfeito (vv 3/4) não deveria manifestar-se agitado (v 6), nem envolvido em treva (v 4);
  • «De ti vêm, a ti devolve.» (v 7) - em relação ao primeiro verbo, não existem dúvidas de que o seu sujeito é «luz... e treva, / (...) - indistintas! - (...)», mas, em relação ao segundo («devolve»), apresentam-se várias dúvidas:
  • O que é que devolve ao tu? «Este espírito agitado»? A «treva»? Ou o singular é apenas uma liberdade poética com o propósito de rimar com «envolve»?
  • Seja como for, a «treva» ou um «espírito agitado» são indignos de serem devolvidos a um ser perfeito;
  • «Só vive do eterno ardor / O que está sempre a aspirar / Ao infinito donde veio.» (vv 11/13) - a palavra «ardor» pode sugerir desespero, ansiedade, mas não se adequa a uma conceção platónica; ou será que devemos conotar «ardor» com outra coisa muito mais terrena?
  • O v 28 contém três elementos portadores, aparentemente, de contradição. Vejamos:
  • Mesmo «despidos» das chamadas «coisas vãs e grosseiras», não me parece que alma e sentidos sejam elementos conciliáveis (se o primeiro se identifica com o mundo das ideias preconizado por Platão, o segundo já só tem espaço no mundo sensível do mesmo sistema filosófico (mundo terreno));
  • Sendo assim, não faz sentido que o sujeito poético afirme que os sentidos se dêem ao tu, e tenham vida no tu (o mundo sensível tem vida no mundo das ideias?!) e para o tu (esta contradição é apenas mais uma que deita por terra a pretensa conceção platónica de que pretende ser uma profissão de fé o presente poema);
  • E quanto à razão? A que razão se refere o sujeito poético? À do racionalismo do séc. XVII, expressão de uma suposição metafísica e religiosa, pela qual se faz de Deus a suprema garantia das verdades racionais e, por consequência, o último argumento de um universo concebido como inteligível? À do racionalismo do séc. XVIII (que antecede o Romantismo), que entende a razão como um instrumento com o qual o homem, integrando a experiência e a ação moral e social, poderá libertar-se progressivamente da obscuridade que o rodeia? Ou à razão que, segundo Platão, permitia ascender ao mundo das ideias e residia na alma? Se se tratar desta última, alma e razão não são elementos portadores de contradição;
  1. O sujeito poético atesta que Folhas Caídas são uma confissão sincera da alma (vv 33/34). Pessoalmente, não tenho tanta certeza assim. Apesar do autor ter advertido para o facto das presentes folhas caídas resultarem do «estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito», não nos devemos esquecer de que estamos diante de um homem de teatro. E, antes dos atores representarem em palco, o primeiro a fazê-lo é sempre o dramaturgo no ato da escrita. A seleção criteriosa das folhas que apanhou, antes que as levasse o vento, e a forma como as ordenou em livro são um ato de consciência. Aliás, a leitura de Folhas Caídas evidencia, diria que até à exaustão, uma teatralidade que põe em dúvida a sinceridade da confissão anunciada. E ainda não se sonhava o nascimento de Fernando Pessoa...
  2. Espero que os leitores, com os poemas que se seguem, verifiquem que, afinal, este Igono Deo é um deus bem mais terreno do que pretenderá fazer crer a intenção do poeta, quer no presente poema, quer na Advertência.

Adeus

Adeus! para sempre adeus!

Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora

Sinto a justiça dos céus

Esmagar-me a alma que chora.

  5 Choro porque não te amei,

Choro o amor que me tiveste;

O que eu perco, bem no sei,

Mas tu... tu nada perdeste;

Que este mau coração meu

 10 Nos secretos escaninhos

Tem venenos tão daninhos

Que o seu poder só sei eu.

Oh! vai... para sempre adeus!

Vai, que há justiça nos céus.

 15 Sinto gerar na peçonha

Do ulcerado coração

Essa víbora medonha

Que por seu fatal condão

Há-de rasgá-lo ao nascer:

 20 Há-de sim, serás vingada,

E o meu castigo há-de ser

Ciúme de ver-te amada,

Remorso de te perder.

Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,

 25 Que sou eu capaz agora

De te amar - Ai! se eu te amasse!

Vê se no árido pragal

Deste peito se ateasse

De amor o incêndio fatal!

 30 Mais negro e feio no inferno

Não chameia o fogo eterno.

Que sim? Que antes isso? - Ai, triste! -

Não sabes o que pediste.

Não te bastou suportar

 35 O cepo-rei; impaciente

Tu ousas a deus tentar

Pedindo-lhe o rei-serpente!

E cuidas amar-me ainda?

Enganas-te: é morta, é finda,

 40 Dissipada é a ilusão.

Do meigo azul de teus olhos

Tanta lágrima verteste,

Tanto esse orvalho celeste

Derramado o viste em vão

 45 Nesta seara de abrolhos,

Que a fonte secou. Agora

Amarás... sim, hás-de amar,

Amar deves... Muito embora...

Oh! mas noutro hás-de sonhar

 50 Os sonhos de oiro encantados

Que o mundo chamou amores.

E eu réprobo... eu se o verei?

Se em meus olhos encovados

Der a luz de teus ardores...

 55 Se com ela cegarei?

Se o nada dessas mentiras

Me entrar pelo vão da vida...

Se, ao ver que feliz deliras,

Também eu sonhar... Perdida,

 60 Perdida serás - perdida.

Oh! vai-te, vai, longe embora!

Que te lembre sempre e agora

Que não te amei nunca... ai! não;

E que pude a sangue-frio,

 65 Covarde, infame, vilão,

Gozar-te - mentir sem brio,

Sem alma, sem dó, sem pejo,

Cometendo em cada beijo

Um crime... Ai! triste, não chores,

 70 Não chores, anjo do céu,

Que o desonrado sou eu.

Perdoar-me tu?... Não mereço.

A imundo cerdo voraz

Essas pérolas de preço

 75 Não as deites: é capaz

De as desprezar na torpeza

De sua bruta natureza.

Irada, te há-de admirar,

Despeitosa, respeitar,

 80 Mas indulgente... Oh! o perdão

É perdido no vilão,

Que de ti há-de zombar.

Vai, vai... para sempre adeus!

Para sempre aos olhos meus

 85 Sumido seja o clarão

De tua divina estrela.

Faltam-me olhos e razão

Para a ver, para entendê-la:

Alta está no firmamento

 90 Demais, e demais é bela

Para o baixo pensamento

Com que em má hora a fitei;

Falso e vil o encantamento

Com que a luz lhe fascinei.

 95 Que volte a sua beleza

Do azul do céu à pureza,

E que a mim me deixe aqui

Nas trevas em que nasci,

Trevas negras, densas, feias,

100 Como é negro este aleijão

Donde me vem sangrar às veias,

Este que foi coração,

Este que amar-te não sabe

Porque é só terra - e não cabe

105 Nele uma ideia dos céus...

Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!

Linhas de Leitura

  1. Convém, desde já, alertar os leitores para o seguinte aspeto: em Folhas Caídas, o poeta faz uma dedicatória no primeiro poema da coletânea (Ignoto Deo) e, de imediato, apresenta a despedida no segundo (Adeus!). Seguem-se, então, as restantes "folhas caídas", nas quais, numa espécie de analepse narrativa, nos dá conta de um caminho percorrido por duas personagens (eu e tu) que as conduziu ao momento do adeus;

  2. Este poema inicia-se e termina com uma alusão nítida ao momento presente («Adeus! para sempre adeus!», v 1; «Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!», v 106), recordando o passado que o justificará («...não te amei, / ... o amor que me tiveste;», vv 5/6) e perspetivando o futuro, futuro esse que não passará pelo  sujeito poético («...serás vingada», v 20; «... Agora / Amarás... sim, hás-de amar, / Amar deves... Muito embora... / Oh! mas noutro hás-de sonhar / Os sonhos de oiro encantados / Que o mundo chamou amores.», vv 46/51);

  3. O sujeito poético dirige-se ao tu para que se vá embora por, alegadamente, sentir «a justiça dos céus» esmagar-lhe «a alma que chora» (vv 3/4). E chora por não ter retribuído o amor que o tu lhe devotou. Por isso, o tu nada perde: não se pode perder o que se não tem (vv 5/8);

  4. O mal é atribuído aos venenos secretamente escondidos no seu coração (vv 9/12), mas este, que deveria ser o lugar privilegiado do amor e, pelo contrário, só contém os tais venenos, por «justiça dos céus», será destruído pela própria víbora que nele é gerado (vv 14/19);

  • Transcrevo, a propósito, o último poema (XXV) do Livro Primeiro de Folhas Caídas:
VÍBORA

Como a víbora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que à nascença o espedaçou.

Para ele nascer morri;
E em meu cadáver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.
  1. É esta, nas palavras do sujeito poético, uma justiça com carácter de vingança (v 20), e o castigo será o ciúme e o remorso (vv 22/23). Talvez valha a pena colocar duas questões:

  • Será lícito o sujeito poético falar em castigo (v 21), se já havia declarado não amar o tu (v 5)?
  • Será de crer na autenticidade dum ciúme por alguém que se não ama? Ou tratar-se-á duma frustração que advém da tomada de consciência do vazio que resulta da perda dum objeto de prazer?
  1. A 3ª estrofe inicia-se com um apelo reiterativo (já havia acontecido no início da 2ª estrofe) no sentido de que o tu parta, com a alegação de que o eu será capaz de o amar «agora», sentimento de fraca convicção, conforme a interjeição e frase condicional e exclamativa que se lhe segue (v 26);

  2. Diante de tal possibilidade, o sujeito poético compara esse amor a um «incêndio fatal» que se ateasse a um «árido pragal»: seria mais negro e mais feio que o eterno fogo do inferno (vv 27/31);

  3. Apesar disso, o tu responde que sim (ouvimos as suas palavras nas perguntas de retórica do sujeito poético (v 32)), já que ainda o ama (uma vez mais, são as palavras do tu que ouvimos na pergunta de retórica (v 38));

  4. O sujeito poético não quer crer em tal, profetizando que o amor do tu passará por outro (vv 46/51);

  5. « E eu réprobo... eu se o verei?» (v 52)
    A resposta está contida nos versos imediatos: seus olhos encovados (notar que «encovados» contém a palavra cova, o que sugere um sentimento, por parte do eu, de proximidade em relação à morte) cegarão com a luz de seus ardores (os ardores próprios dos «sonhos de oiro encantados / Que o mundo chamou amores» e que noutro há-de sonhar (vv 49/51)), daí que não resista à imprecação reiterativamente repetida nos vv 59/60: «Perdida, / Perdida serás - perdida.»

  6. «Que te lembre sempre e agora / Que não te amei nunca...» (vv 62/63). Poderiam parecer palavras de vingança, não fossem os termos condenatórios dirigidos contra si próprio («E que pude a sangue frio, / [...] / Gozar-te - mentir [...] / Cometendo em cada beijo / Um crime...» (vv 64/69)), considerando-se, por isso, «Covarde, infame, vilão» (v 65) e, mesmo, perante as lágrimas do tu, criminoso (v 69) e «desonrado» (v 71);

  7. Ouvimos, uma vez mais, na pergunta de retórica (v 71), as palavras de perdão do tu, mas o sujeito poético considera que o perdão seria como deitar pérolas a porcos (vv 73/75) - note-se, a propósito, o registo próximo da expressão popular;

  8. É de notar a passagem dum registo de 1ª pessoa (v 72) para um de 3ª (é, sua, há-de (vv 75/78)), uma forma de anulação do eu, tanto mais de considerar, quanto o faz através da figura do vilão (v 81) e do cerdo (porco (v 73));

  9. O sujeito poético recusa o perdão do tu, preferindo a sua ira e o seu despeito (vv 78/82);

  10. Ao sujeito poético faltam já os olhos («encovados», recordo) e a razão com que possa ver e entender o clarão da «divina estrela»; por isso, «Que volte a sua beleza / Do azul do céu à pureza» e que o deixe nas trevas em que nasceu (vv 95/98);

  11. A dificuldade reside, pois, nas seguintes dicotomias: ver / não ver; luz / trevas; céu / terra (vv 87/105);

  12. Note-se ainda o seguinte:

  • É o eu que se dirige ao tu para que o deixe, não tomando ele próprio a iniciativa de abandonar o tu (vv 2, 13/14, 24, 61, 83, 106);
  • Apesar de tudo, o tu prefere o «incêndio fatal» comparado ao fogo eterno do inferno (vv 27/33);
  • Poder-se-á, pois, assistir, a um conflito insolúvel que, tal como na tragédia, conduz à catástrofe, neste caso, o facto do tu não sair da vida do eu, não lhe devolvendo a paz desejada (lembremo-nos de Este Inferno de Amar), donde o último apelo: «Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!» (v 106) - É razão para perguntar: tê-lo-á deixado?
    • A hybris (desafio) consistiu no facto da «divina estrela» se atrever a descer à terra (vv 86, 95/96, 105) e o elemento das trevas (v 98), «em má hora» ousar fitá-la (v 92).
  1. Algumas figuras de estilo: apóstrofe (vv 1/2, 13/14, 24, 61, 106); metáfora (vv 4, 10/11, 15, 17, 19, 27/29, 35, 37, 43, 45/46, 50, 54/55, 73/74, 86, 98, 104); antítese (vv 5/6, 89/91); anáfora (vv 5/6, 19/20, 66/67, 102/103); reiteração (vv 2, 13/14, 19/20, 24, 61, 69/70, 83, 106); comparação (vv 30/31; 99/100); pergunta de retórica (vv 32, 38, 52, 55, 72); anástrofe (v 29); hipérbato (vv 27/29); hipálage (v 41); anadiplose (vv 47/48); adjetivação (mau, secretos, daninhos, ulcerado, medonha, fatal (vv 18, 29), árido, negro, feio, eterno, impaciente, morta, finda, dissipada, meigo, celeste, encantados, réprobo, encovados, feliz, perdida, covarde, infame, vilão, desonrado, imundo, voraz, bruta, irada, despeitosa, indulgente, perdido, sumido, divina, alta, bela, baixo, má, falso, vil, negras, densas, feias, negro);
  2. Algumas características românticas: tom confessional; uma certa teatralidade; introdução do tema do ciúme; alusão ao amor sensual; presença da mulher-anjo; alusão ao inferno.


O anjo caído

Era um anjo de Deus

Que se perdera dos céus

E terra a terra voava.

A seta que lhe acertava

 5 Partira de arco traidor,

Porque as penas que levava

Não eram penas de amor.

O anjo caiu ferido,

E se viu aos pés rendido

10 Do tirano caçador.

De asa morta e sem splendor

O triste, peregrinando

Por estes vales de dor,

Andou gemendo e chorando.

15 Vi-o eu, o anjo dos céus,

O abandonado de Deus,

Vi-o, nessa tropelia

Que o mundo chama alegria,

Vi-o a taça do prazer

20 Pôr ao lábio que tremia...

E só lágrimas beber.

Ninguém mais na terra o via,

Era eu só que o conhecia...

Eu que já não posso amar!

25 Quem no havia de salvar?

Eu, que numa sepultura

Me fora vivo enterrar?

Loucura! ai, cega loucura!

Mas entre os anjos dos céus

30 Faltava um anjo ao seu Deus;

E remi-lo e resgatá-lo,

Daquela infâmia salvá-lo

Só força de amor podia.

Quem desse amor há-de amá-lo,

35 Se ninguém o conhecia?

Eu só, - e eu morto, eu descrido,

Eu tive o arrojo atrevido

De amar um anjo sem luz.

Cravei-a eu nessa cruz

40 Minha alma que renascia,

Que toda em sua alma pus,

E o meu ser se dividia,

Porque ela outra alma não tinha,

Outra alma senão a minha...

45 Tarde, ai! tarde o conheci,

Porque eu o meu ser perdi,

E ele à vida não volveu...

Mas da morte que eu morri

Também o infeliz morreu.

Linhas de Leitura

Em relação a este poema, queria, sobretudo, chamar a atenção para as suas características narrativas:

  1. Modelo actancial de Greimas

    • Sujeito: o anjo caído;

    • Destinador: a seta traiçoeira (sinédoque/metonímia (alusão a Cupido));

    • Objeto: salvar-se («voltar ao céu, ao seio dos anjos e de Deus»);

    • Adjuvante: força de amor;

    • Oponente(s): o tirano caçador; o facto de não conhecer mais ninguém; a tropelia do mundo; o tempo que é tardio e não volta atrás;

    • Destinatário(s) (da desgraça): o anjo caído e o narrador (tirano caçador).

  2. Modelo de ação categorial de Genette

    • ação: perdera (dos céus); voava (terra a terra); partira (a seta do arco traidor); caiu (ferido); viu-se rendido; peregrinando, andou gemendo e chorando; vi-o (beber lágrimas da taça do prazer); tremia (o lábio); não posso amar; salvar; fora a enterrar; remi-lo; resgatá-lo; salvá-lo (da infâmia); cravar (na cruz); pôr (uma alma noutra alma); perder (o ser); não volver (à vida); morrer.

    • Espaço: terra a terra; vales de dor; tropelia (que o mundo chama alegria (espaço social mundano)); sepultura; céu.

    • Tempo: Passado indeterminado, patenteado pelas formas verbais (era, perdera, acertava,partira, levava, eram, caiu, viu, andou, vi, tremia, conhecia, havia, fora, faltava, podia, tive, cravei, renascia, pus, dividia, tinha, conheci, perdi, volveu, morri, morreu), narrado num tempo presente, explícito no texto («Eu que já não posso amar!»).

    • Personagens: o anjo caído e o tirano caçador, que se identifica com o narrador.

    • Narrador: com uma presença homodiegética, começa por adotar uma focalização externa, testemunhal, terminando com um estatuto omnisciente.

    • Modo de narrar os acontecimentos: sério, de forma distanciada por vezes e, por outras, de forma emotiva, consoante o estatuto apontado anteriormente.

    • Título: O Anjo Caído, título que, como elemento de ancoragem, como que antecipa já o desfecho da ação.

  3. Enquadramento classificativo segundo outros autores

    • Segundo a tipologia de Werlich, estamos perante um texto do tipo narrativo, pois a perceção no tempo é-nos facultada pelos tempos verbais (embora se verifique uma certa abundância do pretérito imperfeito, ainda assim o pretérito perfeito e o mais-que-perfeito dominam).

    • Considerando a tipologia de Lita Lundquist, construída a partir das funções da linguagem, deparamo-nos com uma forma de representação narrativa, na qual a função dominante é a referencial, embora, nos momentos em que o narrador se assume como personagem, seja visível, igualmente, a função emotiva e aquilo a que se poderá chamar uma sequência com representação expressiva.

    • Tendo em conta ainda a proposta de Jakobson, baseada na função da linguagem que exerce o papel de subdominante, (a função dominante, segundo a sua conceção de literariedade, é a poética), concluímos, de igual modo, que estamos perante um texto narrativo, já que função subdominante, como já vimos, é a referencial.
  4. Transformação do texto

MODELO POSSÍVEL 

Era [ uma vez] um anjo de Deus que se perdera dos céus e voava de terra em terra. [ Atingido por uma seta] - seta de arco traidor, porque as penas que levava não eram penas de amor - o anjo caiu ferido e viu-se rendido aos pés do tirano caçador.

[ Assim] , de asa morta e sem esplendor, andou o triste gemendo e chorando, peregrinando por estes vales de dor. Vi-o eu, o anjo dos céus, o abandonado de Deus, nessa tropelia [ a] que o mundo chama alegria, pôr a taça do prazer ao lábio que tremia e só lágrimas beber... [ E] ninguém mais na terra o via, [ pois] só eu o conhecia... Eu que já não posso amar! Quem no havia de salvar? Eu que, numa sepultura, me fora vivo [ a] enterrar? Loucura! ai, cega loucura! (Mas) [ E] entre os anjos dos céus, faltava um ao seu Deus, um que só força de amor podia remir e resgatar, salvar daquela infâmia. [ Mas] quem desse amor o havia de amar, se ninguém o conhecia? Eu só. E eu morto, eu descrido, tive o arrojo atrevido de amar um anjo sem luz.

E porque sua alma outra alma não tinha, outra alma a não ser a minha, cravei a minha nessa cruz, a minha que renascia, pondo-a toda na sua, e o meu ser se dividia... [ Era já] tarde, [ quando] o conheci, porque eu o meu ser perdi, e ele à vida não volveu... Mas da morte que eu morri também o infeliz morreu.

  1. Algumas características românticas: o mito do paraíso perdido (Milton, The Paradise Lost); o mito da mulher-anjo (vítima do tirano caçador); transgressão às regras dos modos literários (hibridismo que resulta da presença de características líricas e narrativas).


Este inferno de amar

Este inferno de amar - como eu amo! -

Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?

Esta chama que alenta e consome,

Que é a vida - e que a vida destrói -

 5 Como é que se veio a atear,

Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que dantes vivi

Era um sonho talvez... - foi um sonho -

10 Em que paz tão serena a dormi!

Oh! que doce era aquele sonhar...

Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso

Eu passei... dava o sol tanta luz!

15 E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei...

Linhas de Leitura

  1. Este poema, cujo tema gira à volta das contradições do amor, apresenta dois momentos com características diferentes:

    • a primeira estrofe, que reflete a expressão de um eu num tempo presente e, por isso, dentro dos cânones próprios do modo lírico;

    • as duas últimas estrofes, com características narrativas (algumas categorias da narrativa: narrador autodiegético (narrador na 1ª pessoa e personagem principal); personagens (eu; ela); espaço (algures); tempo (o passado; a outra vida; um dia formoso) ação (vivi; dormi; vir despertar; passei; dava... luz; meus olhos... giravam; pus; que fez ela?; eu que fiz?)), que lembram o passado; este passado, porém, evoca duas temporalidades diferentes:

      • o passado antes de a (ela) conhecer (2ª estrofe) - um passado de sonho (v 9) "vivido" com serenidade e em paz (v 10);

      • o passado depois de a conhecer (3ª estrofe) - um inferno de amar;

  1. O sujeito poético declara, logo no 1º verso e duma forma aparentemente hiperbólica, viver um «inferno de amar»; na sequência desta confissão, formula duas perguntas de retórica:

    • «Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?» (v 2);

    • «Quando - ai quando se há-de ela (chama) apagar?» (v 6);

  2. Ao recordar a paz serena do passado mais longínquo, estabelece nova pergunta de retórica:

    • «Quem me veio, ai de mim! despertar?» (v 12);

  3. O poeta só não encontra a resposta para a pergunta do 6º verso, já que, apesar das contradições evidenciadas ao longo do poema, acaba por identificar quem lhe pôs o inferno na alma e quem o despertou do doce sonhar;

  4. O sujeito poético manifesta, como referi em 4., algumas contradições ao longo do poema:

    • «Esta chama que alenta e consome,
      Que é vida - e que a vida destrói -»
      (vv 3/4);

    • «Eu não sei, não me lembra...» (v 7) - no entanto, conta como era o passado antes de a conhecer;

    • «era um sonho talvez... - foi um sonho -» - a dúvida cede o lugar à certeza (a mudança do aspeto verbal, que deriva da passagem do pretérito imperfeito do indicativo (reforçado pela presença do advérbio de dúvida, talvez) ao pretérito perfeito, é determinante);

    • «Só me lembra que...» (v 13) - relato do que aconteceu e que lhe mudou, por completo, a vida (afinal, sabe ou não sabe, lembra-se ou não se lembra?);

    • «Que fez ela? eu que fiz? - não no sei» (v 17) - não sabe e afirma ter começado a viver, nesse momento, um «inferno de amar»!;

  5. Pode-se, por isso, especular sobre a sinceridade ou fingimento do sujeito poético;

  6. «Mas nessa hora a viver comecei...
    Este inferno de amar - como eu amo! -
    (...)»

    • Conclui-se que, apesar da serenidade e da paz que sentia antes de a conhecer, o sujeito poético considera esse tempo como uma coisa irreal (sonho (v 9), dormi (v 10), sonhar (v 11), despertar (v 12)), isto é, ausência de vida; pelo contrário, vida, para si, é o «inferno de amar» que começou a viver;

  7. Este amor, gerador de conflitos, é o amor sensual que, aliás, perpassa por toda a obra; por sua vez, a terceira pessoa (no caso presente, ela), de que o sujeito poético se apresenta como vítima, corporiza a mulher fatal;

  8. Algumas figuras de estilo: metáfora (v 1, vv 3/4, v 5, v 6, v 9, v 11, v 12); perguntas de retórica (v 2, v 6, v 12); oximoro (vv 3/4); antítese (vv 5/6, v 9, vv 10/12); paradoxo (v 7/v 13); adjetivação (serena, doce, formoso, vagos, ardentes);

    • outros recursos estilísticos: a pontuação expressiva; elementos descritivos na última estrofe;

  9. Característica românticas: tom confessional; indícios da mulher fatal; alusão ao inferno (ainda que em sentido metafórico); tom teatral; oposição amor espiritual/amor sensual; transgressão às regras dos modos literários (hibridismo que resulta da presença de características líricas e narrativas).


Gozo e dor

Se estou contente, querida,

Com esta imensa ternura

De que me enche o teu amor?

- Não. Ai não; falta-me a vida;

 5 Sucumbe-me a alma à ventura:

O excesso de gozo é dor.

Dói-me a alma, sim; e a tristeza

Vaga, inerte e sem motivo,

No coração me poisou.

10 Absorto em tua beleza,

Não sei se morro ou se vivo,

Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante

Para este gozar sem fim

15 Que me inunda o coração.

Tremo dele, e delirante

Sinto que se exaure em mim

Ou a vida - ou a razão.

Linhas de Leitura

  1. O presente poema apresenta características de uma encenação dramática que, aliás, é também visível noutros poemas como, por exemplo, Adeus!: quem não vê a presença e não ouve a fala do tu? Não são os três primeiros versos, que incluem uma apóstrofe (querida), a repetição das suas palavras?

  2. Contendo já a 1ª estrofe a resposta à pergunta do tu (vv 4/6), o poema desenvolve-se nas restantes estrofes numa espécie de justificação dessa mesma resposta;

  3. Apesar da «imensa ternura» e da plenitude de amor proporcionada pelo tu, o sujeito poético confessa que não está contente, alegando que a alma não resiste a tal plenitude (vv 5/6);

  4. Ao contrário do que acontece em Este inferno de amar - como eu amo! - (ver), o sujeito poético confessa faltar-lhe a vida (v 4);

  5. Assim, à plenitude facultada pelo tu, opõe-se o vazio sentido pelo eu;

  6. Este vazio resulta do excesso paradoxal anunciado no 6º verso e que justifica o próprio título (Gozo e Dor);

  1. À ventura anunciada no 5º Verso, opõe-se «a tristeza / vaga, inerte e sem motivo» que lhe pousou no coração (vv 7/9);

  2. Uma vez mais, o sujeito poético manifesta uma certa instabilidade e indefinição (vv 10/12), para o que devemos estar preparados desde o momento em que lemos a Advertência;

  3. O que invade o coração do eu é um «gozar sem fim», expressão de um amor sensual que não lhe alimenta a vida, apesar da beleza do tu (vv10/12) e da «imensa ternura» e do «amor» mencionados nos vv 2/3;

  4. Aparentemente, o sujeito poético parece vítima do fascínio do tu, de que resultará a perda da vida ou da razão (vv 17/18);

  5. No entanto, e apesar de tremer e delirar por força desse «gozar sem fim» (v 16), o fascínio do tu não é assim tão dominador de forma a impedir totalmente o sujeito poético de reflectir («Não sei se ... ou se» (v 11); «Porque...» (v 12); «Ou... ou...» (v 18));

  6. Algumas figuras de estilo: apóstrofe (v 1); adjetivação (contente, imensa, vaga, inerte, delirante); paradoxo (v 6); antítese (vv 5/7, v 11); metáfora (v 9); hipérbole (toda a 3ª estrofe);

  7. Características românticas: tom confessional e intimista; indícios da mulher fatal; oposição amor espiritual/amor sensual; características de poesia de alcova, como lhe chamou António José Saraiva; uma certa teatralidade.


Perfume da rosa

Quem bebe, rosa, o perfume

Que de teu seio respira?

Um anjo, um silfo? ou que nume

Com esse aroma delira?

 5 Qual é o deus que, namorado,

De seu trono te ajoelha,

E esse néctar encantado

Bebe oculto, humilde abelha?

- Ninguém? - Mentiste: essa frente

10 Em languidez inclinada,

Quem ta pôs assim pendente?

Dize, rosa namorada.

E a cor de púrpura viva

Como assim te desmaiou?

15 e essa palidez lasciva

Nas folhas quem ta pintou?

Os espinhos que tão duros

Tinhas na rama lustrosa,

Com que magos esconjuros

20 Tos desarmam, ó rosa?

E porquê, na hástea sentida

Tremes tanto ao pôr do sol?

Porque escutas tão rendida

O canto do rouxinol?

25 Que eu não ouvi um suspiro

Sussurrar-te na folhagem?

Nas águas desse retiro

Não espreitei a tua imagem?

Não a vi aflita, ansiada...

30 - Era de prazer ou dor? -

Mentiste, rosa, és amada,

E também tu amas, flor.

Mas ai! se não for um nume

O que em teu seio delira,

35 Há-de matá-lo o perfume

Que nesse aroma respira.



Os cinco sentidos

São belas - bem o sei, essas estrelas,

Mil cores - divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo outra beleza

Senão a ti - a ti!

Divina - ai! sim, será a voz que afina

Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.

será; mas eu do rouxinol que trina

Não oiço a melodia,

Nem sinto outra harmonia

Senão a ti - a ti!

Respira - n'aura que entre as flores gira,

Celeste - incenso de perfume agreste,

Sei... não sinto: minha alma não aspira,

Não percebe, não toma

Senão o doce aroma

Que vem de ti - de ti!

Formosos - são os pomos saborosos,

É um mimo - de néctar o racimo:

E eu tenho fome e sede... sequiosos,

Famintos meus desejos

Estão... mas é de beijos,

É só de ti - de ti!

Macia - deve a relva luzidia

Do leito - ser por certo em que me deito.

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias,

Tocar noutras delícias

Senão em ti! - em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.

Em ti a minha sorte,

A minha vida em ti;

E quando venha a morte,

Será morrer por ti.


Linhas de Leitura

  1. O presente poema, como o próprio título deixa antever, transborda de erotismo, sendo este apresentado numa gradação crescente de sensualidade;

  2. O processo gradativo utilizado por Garrett é idêntico ao que utilizou Camões para a apresentação descritiva da Ínsula Divina (Ilha dos Amores) n' Os Lusíadas: vista (sentido menos sensual, porque pode ser utilizado à distância), ouvido (embora percetível à distância, implica maior proximidade), olfato (requer quase o contacto físico), gosto e tato (ambos só possíveis através do contacto físico);

  3. Em cada uma das estrofes, o sujeito poético enquadra o tu no seio de elementos da natureza, em relação aos quais percecionamos uma comparação, com a qual o mesmo tu é sublimado num processo de exclusividade:

- estr. I: estrelas, flores;

- estr. II: rouxinol;

- estr. III: incenso de perfume agreste;

- estr. IV: pomos saborosos, racimo de néctar;

- estr. V: relva luzidia;

  1. Na estr. I, o tu surge no seio de estrelas e  de flores (essas é um deítico demonstrativo que indica o espaço em que se encontra o recetor (tu)), mas, apesar da beleza de umas e das mil cores das outras, o sujeito poético apenas tem olhos para uma única estrela e uma única flor, o tu;

Nota: sabe-se, pelos estudos dos seus biógrafos, que Almeida Garrett, à época, mantinha relações de afinidade com Rosa Montufar, baronesa da Luz. Acontece que a estr. I contém um elemento que irradia luz (estrelas) e um hiperónimo de rosa (flores) que sugerem a pessoa a quem é dedicado o poema;

  1. Na estr. II, apesar do trinar melodioso e divino do rouxinol, o sujeito poético não sente harmonia senão na voz do tu;

  2. Na estr. III, a brisa que sopra entre as flores (uma vez mais este elemento) exala um «incenso de perfume agreste», mas também este não é sentido, uma vez que o olfato do sujeito poético apenas perceciona «o doce aroma» que se liberta do tu;

  3. Na estr. IV, são introduzidos elementos que requerem o sentido do gosto: os formosos pomos saborosos e o racimo de néctar (que é um mimo). Deve-se prestar atenção aos seguintes aspetos:
    • Os pomos (maçãs) saborosos são formosos (tentadores), pelo que evocam o pecado original;

    • O sujeito poético declara ter fome e sede, de tal modo que os seus desejos estão famintos e sequiosos, embora de beijos;
    • Se a fome pode ser saciada, metaforicamente, com os pomos, a sede sê-lo-á com o racimo (cacho de uvas) de néctar;
    • Sendo assim, se os pomos podem ser conotados com os seios, perguntar-se-á qual o papel reservado ao racimo;
    • Racimo rima com mimo e, curiosamente, a estrofe contém outros recursos de nível fónico que não devem ser ignorados (a aliteração do [m]: formosos, pomos, mimo, racimo, fome, famintos, meus, mas; a assonância do [i]: mimo, racimo, famintos, ti, ti);
    • A aliteração do [m] sugere o ruído do bebé a mamar;
    • O leite, durante os primeiros tempos de vida, embora líquido, é o único alimento do bebé, saciando, simultaneamente, a fome e a sede;
    • O bebé toma o leite do seio da mãe, beijando, num processo de sucção, o mamilo;
    • Se considerarmos a hipótese de Garrett ter utilizado a liberdade poética que permite a sinédoque (a parte pelo todo ou o todo pela parte), podemos ver no racimo não a totalidade do cacho, mas apenas a sua parte, o bago, cuja forma arredondada colocada sobre o pomo (maçã) daria o desenho perfeito do seio da mulher;
    • Considerando tal hipótese, pode o racimo ser conotado com o mamilo, o que não causará espanto, se considerarmos que os seios da mulher, sendo uma zona profundamente erógena, frequentemente entram nos jogos eróticos dos pares;
  4. Na estr. V, a macia relva luzidia (metáfora do corpo) em que o sujeito poético se deita evoca o sentido do tato, traduzido nas carícias e noutras delícias;

  5. Não poderia o poeta ter terminado este poema erótico de melhor maneira. Depois da gradação crescente com que apresenta cada um dos sentidos, junta-os, numa sinestesia total, na última estrofe. Atente-se no seguinte:

    • A assonância do [i], que prolifera em todo o poema, com particular realce na última estrofe, sugere sons que se assemelham a gemidos;

    • Cada uma das cinco primeiras estrofes é constituída por três versos decassilábicos (heroicos: acentuação rítmica na 6ª e 10ª sílabas ) e por três hexassílabos (também chamados quebrados do heroico) que conferem, na segunda metade da estrofe, um ritmo mais acelerado;

    • Na última estrofe, a tal em que, de uma forma sinestésica, todos os sentidos se confundem num só, apenas o primeiro verso é decassilábico: todos os restantes são hexassílabos (6 sílabas métricas), proporcionando um ritmo bastante acelerado que sugere o clímax dum orgasmo («Em ti, por ti, deliram»).

  6. Algumas figuras de estilo: apóstrofe (v 3); adjetivação (belas, divinais, divina, saudosa, densa, umbrosa, celeste, agreste, doce, formosos, saborosos, sequiosos, famintos, macia, luzidia); metáfora (vv 19, 20, 21, 22, 25/26); aliteração (referida em 7.); assonância (referida em 7. e em 9.); sinestesia (referida em 9.);

  7. Características românticas: tom confessional e intimista; amor sensual; características de poesia de alcova, como lhe chamou António José Saraiva; uma certa teatralidade; a morte por amor, ainda que no plano metafórico, tão ao gosto dos românticos.


Cascais

Acabava ali a terra

Nos derradeiros rochedos,

A deserta, árida serra

Por entre os negros penedos

 5 Só deixa viver mesquinho

Triste pinheiro maninho.

E os ventos despregados

Sopravam rijos na rama,

E os céus turvos, anuviados,

10 O mar que incessante brama...

Tudo ali era braveza

de selvagem natureza.

Aí, na quebra do monte,

Entre uns juncos malmedrados,

15 Seco o rio, seca a fonte,

Ervas e matos queimados,

Aí nessa bruta serra,

Aí foi um céu na terra.

Ali sós no mundo, sós,

20 Santo Deus! como vivemos!

Como éramos tudo nós

E de nada mais soubemos!

Como nos folgava a vida

De tudo o mais esquecida!

25 Que longos beijos sem fim,

Que falar dos olhos mudo!

Como ela vivia em mim,

Como eu tinha nela tudo,

Minha alma em sua razão,

30 Meu sangue em seu coração!

Os anjos aqueles dias

Contaram na eternidade:

Que essas horas fugidias,

Séculos na intensidade,

35 Por milénios marca Deus

Quando as dá aos que são seus.

Ai! sim, foi a tragos largos,

Longos, fundos, que a bebi

Do prazer a taça: - amargos

40 Depois... depois os senti

Os travos que ela deixou...

Mas como eu ninguém gozou.

Ninguém: que é preciso amar

Como eu amei - ser amado

45 Como eu fui; dar, e tomar

Do outro ser a quem se há dado,

Toda a razão, toda a vida

Que em nós se anula perdida.

Ai, ai! que pesados anos

50 Tardios depois vieram!

Oh! que fatais desenganos,

Ramo a ramo, a desfizeram

A minha choça na serra,

Lá onde se acaba a terra!

55 Se o visse... não quero vê-lo

Aquele sítio encantado;

Certo estou não conhecê-lo,

Tão outro estará mudado,

Mudado como eu, como ela,

60 Que a vejo sem conhecê-la!

Inda ali acaba a terra,

Mas já o céu não começa;

Que aquela visão da serra

Sumiu-se na treva espessa,

65 E deixou nua a bruteza

Dessa agreste natureza.



Estes sítios

Olha bem estes sítios queridos,

Vê-os bem neste olhar derradeiro...

Ai! o negro dos montes erguidos,

Ai! o verde do triste pinheiro!

 5 Que saudade que deles teremos...

Que saudade! ai, amor, que saudade!

Pois não sentes, neste ar que bebemos,

No acre cheiro da agreste ramagem,

Estar-se alma a tragar liberdade

10 E a crescer de inocência e vigor!

Oh! aqui, aqui só se engrinalda

Da pureza da rosa selvagem,

E contente aqui só vive Amor.

O ar queimado das salas lhe escalda

15 De suas asas o níveo candor,

E na frente arrugada lhe cresta

A inocência infantil do pudor.

E oh! deixar tais delícias como esta!

E trocar este céu de ventura

20 Pelo inferno da escrava cidade!

Vender alma e razão à impostura,

Ir saudar a mentira em sua corte,

Ajoelhar em seu trono à vaidade,

Ter de rir nas angústias da morte,

25 Chamar vida ao terror da verdade...

Ai! não, não... nossa vida acabou,

Nossa vida aqui toda ficou

Diz-lhe adeus neste olhar derradeiro,

Dize à sombra dos montes erguidos,

30 Dize-o ao verde do triste pinheiro,

Dize-o a todos os sítios queridos

Desta rude, feroz soledade,

Paraíso onde livres vivemos,

Oh! saudades que dele teremos,

35 Que saudade! ai, amor, que saudade!


Linhas de Leitura

  • «[...] a poesia romântica está cheia de vida partilhada, vivida a dois: a recordação do sítio onde se viveu [...]», António José Saraiva, "A Expressão Lírica nas Folhas Caídas", in Para a História da Cultura em Portugal

  1. O presente texto fala da despedida e da saudade duma vida paradisíaca a dois que se acabou (vv 2, 5/6, 26);

  2. O sujeito poético convida o tu a olhar «bem», pela última vez, «os sítios queridos» em que viveram (cf. v 33), manifestando a saudade que deles terão. Deve-se notar, desde já, o seguinte:

    • Tratando-se de uma paisagem paradisíaca, ela é transfigurada pelo estado de espírito do sujeito poético, de tal modo que o «negro dos montes» sugere já um estado de luto e o verde do pinheiro, que poderia simbolizar a esperança, desvanece-se completamente através da personificação que o torna «triste» (v 4);

  3. O ponto de exclamação presente no v 10 traduz uma pergunta de retórica iniciada no v 7;

    • Nesta pergunta de retórica, destacam-se três elementos que funcionam como símbolos daquele espaço: liberdade, inocência e vigor;

  4. Entre os versos 11 e 17, é estabelecida uma comparação entre aquele espaço paradisíaco (símbolo de pureza (v 12), e de felicidade (v 13)) e o espaço social (símbolo da perda da candura (vv 14/15), e da inocência e do pudor (vv 16/17));

    • Notar que Amor (Cupido, filho de Vénus) funciona como metonímia do sentimento do amor;


  5. Na sequência desta comparação, o sujeito poético deixa transparecer a angústia que resulta do abandono de tal paraíso a caminho do «inferno da escrava cidade» (vv 18/20), sede da impostura (v 21), da mentira (v 22), da vaidade (v 23) e da hipocrisia (vv 24/25);

    • Esta oposição campo/cidade evidencia o mito de Rousseau tão querido dos românticos, como, aliás, também se verifica em Viagens na Minha Terra;

  6. Por isso, o que, antes, era um paraíso transforma-se, agora, numa paisagem sombria e triste (vv 29/30);

  7. Conclui-se, assim, que a natureza (caracterizada de forma positiva) é o espaço privilegiado do amor, enquanto a cidade (caracterizada de forma negativa, sobretudo o seu espaço social (mundano)) é exatamente o contrário, isto é, propicia a ausência do mesmo amor;

  8. Algumas figuras de estilo: apóstrofe (vv 1/2, 6/7, 28/31, 35); adjetivação (queridos, derradeiro, erguidos, triste, acre, agreste, selvagem, contente, queimado, níveo, arrugada, infantil, escrava, rude, feroz, livres); personificação (vv 4, 30); antítese (vv 4, 16/17, 19/20, 24); reiteração (vv 5/6, 11, 34/35); metáfora (vv 7, 9, 10, 11, 14, 16, 19, 20, 21, 22, 23); metonímia (v 13); pleonasmo (v 15); paradoxo (v 25); anáfora (vv 29/31);

    • Outros recursos estilísticos: o tipo de pontuação, o uso de  interjeições e de frases suspensas;

  9. Algumas características românticas: o mito de Rousseau; a transfiguração da natureza de acordo com o estado de espírito do sujeito poético (um locus amoenus que se transforma em locus horrendus); um certo tom declamatório;

    • Note-se, no entanto, a presença de um elemento mitológico (Amor, filho de Vénus(v 13)), talvez uma reminiscência da formação neoclássica de Garrett.



Não te amo

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.

E eu n’alma - tenho a calma,

A calma - do jazigo.

Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.

E a vida - nem sentida

A trago eu já comigo.

Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero

De um querer bruto e fero

Que o sangue me devora,

Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.

Quem ama a aziaga estrela

Que lhe luz na má hora

Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,

De mau, feitiço azado

Este indigno furor.

Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto

Que de mim tenho espanto,

De ti medo e terror...

Mas amar!... não te amo, não.


Linhas de Leitura

«Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, a mulher que se ama.», Viagens na Minha Terra, Carlos.

  1. Comecemos por verificar alguns aspetos de uma certa irregularidade métrica:

    • Cada uma das estrofes é constituída por um primeiro verso mais longo (10 sílabas) e três mais curtos (6 sílabas);

    • Aos versos de 6 sílabas, costumamos chamar quebrados do heroico pelo facto dos versos heroicos (decassilábicos) terem o acento rítmico marcado na 6ª e 10ª sílabas;

    • Acontece que, no caso das duas primeiras estrofes, bem como na última, os primeiros versos não são heroicos, mas sáficos (acento rítmico na 4ª, 8ª e 10ª sílabas);

    • Tal facto, no caso das duas primeiras estrofes, coloca as palavras marcadas, quero-te e amor, numa situação de confronto: a primeira conotada com o amor sensual e a segunda com o espiritual ou platónico;

    • No caso da última estrofe, mantém-se o valor conotativo de quero (8ª sílaba), que estabelece uma relação com a palavra marcada na 4ª sílaba, sou, cujo predicativo do sujeito é infame;

    • O v 13, o primeiro da 4ª estrofe, é um caso particularmente curioso:
      • Se operarmos com as devidas sinalefas, obtemos um verso decassilábico sáfico (acento rítmico na 4ª (bela), 8ª (amo) e 10ª (bela) sílabas);

      • Se, por força da pontuação, evitarmos as sinalefas, obtemos um verso com 13 sílabas, isto é, a soma de dois quebrados do heroico (6 (bela) + 1 (átona) + 6 (bela));

      • Em qualquer dos casos, o ritmo  contribui, de uma forma decisiva, para o paradoxo da bela não ser amada;

  2. Nas duas primeiras estrofes, o último verso funciona como uma espécie de refrão, que é interrompido nas estrofes 3 e 4, mas que é retomado, embora parcialmente, nas duas últimas;

  3. Nas estrofes 3 e 4, as palavras que asseguram a rima com o «refrão» são coração e perdição, pelo que o órgão que, por metonímia, simboliza o amor (coração) fica completamente enquadrado por duas palavras de conotação negativa (não e perdição), o que explica que não seja alimentado pelo sangue (também ele vermelho!) que devora o ser do sujeito poético;

  4. De facto, a rima, no presente poema, é particularmente importante: «o amor vem d'alma», mas alma rima com calma, a calma do jazigo; «o amor é vida», mas vida rima com (nem) sentida, que, por sua vez, rima (embora seja uma rima apenas toante) com comigo e jazigo; quero (v 9) rima com fero (querer); devora, com () hora; bela, com (aziaga) estrela; forçado, com (feitiço) azado; (indigno) furor, com terror;

  5. O sujeito poético considera o amor sensual bruto e fero (v 10), mas também considera que o tu é uma aziaga estrela e a sua perdição (vv 14 e 16);

  6. O amor sensual conduz o sujeito poético a uma espécie de remorso (v 21);

  7. Algumas figuras de estilo: antítese (vv 1, 5, 9, 17, 22/23); reiteração (vv 4, 8, 20, 24); dupla adjetivação (v 10); apóstrofe (v 13); paradoxo (v 13); pergunta de retórica (vv 14/16); hipérbole (vv 21/23); gradação crescente (v 23);

    • Outros recursos estilísticos: os aspetos da rima acima referidos; o uso de interjeições e de uma pontuação que traduz a função emotiva ou expressiva;

  8. Algumas características românticas: tom confessional e intimista; alusão a elementos mórbidos, tétricos (jazigo, aziaga estrela, má hora, perdição, feitiço azado, medo, terror); características de poesia de alcova, como lhe chamou António José Saraiva; liberdade métrica; uma certa teatralidade.


Anjo és

Anjo és tu, que esse poder

Jamais o teve mulher,

Jamais o há-de ter em mim.

Anjo és, que me domina

 5 Teu ser o meu ser sem fim;

Minha razão insolente

Ao teu capricho se inclina,

E minha alma forte, ardente,

Que nenhum jugo respeita,

10 Covardemente sujeita

Anda humilde a teu poder.

Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?

Em tua fronte anuviada

15 Não vejo a c'roa nevada

Das alvas rosas do céu.

Em teu seio ardente e nu

Não vejo ondear o véu

Com que o sôfrego pudor

20 Vela os mistérios d'amor.

Teus olhos têm negra a cor,

Cor de noite sem estrela;

A chama é vivaz e é bela,

Mas luz não têm. - Que anjo és tu?

25 Em nome de quem vieste?

Paz ou guerra me trouxeste

De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços

Com frenéticos abraços

30 Me tens apertado, estreito!...

Isto que me cai no peito

Que foi?... - Lágrima? - Escaldou-me...

Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,

Dou-me a ti, anjo maldito,

35 Que este ardor que me devora

É já fogo de precito,

Fogo eterno, que em má hora

Trouxeste de lá... De donde?

Em que mistérios se esconde

40 Teu fatal, estranho ser!

Anjo és tu ou és mulher?


Linhas de Leitura

  1. O poema começa com a afirmação do sujeito poético de que o tu é um anjo, já que uma mulher jamais teve «esse poder» sobre ele;

  2. Ao longo da 1ª estrofe, o sujeito poético esclarece em que consiste esse poder:

    • no facto do ser do tu dominar o seu ser indefinidamente;

    • no facto da sua razão «insolente» se inclinar ao capricho do tu;

    • no facto da sua alma, «forte, ardente», que não respeita nenhum jugo, andar humilde e cobardemente sujeita ao poder do tu;

  3. Perante a constatação da irracionalidade de tais factos, o sujeito poético conclui que o tu só pode ser um anjo;

  4. Mas que espécie de anjo será, pergunta no início da 2ª estrofe, tudo levando a crer que não se trata de um anjo divino:

    • possui uma «fronte anuviada»;

    • não possui a «coroa nevada das alvas rosas do céu»;

    • em seu seio, não vê «ondear o véu com que o sôfrego pudor vela os mistérios d'amor»;

    • os seus olhos têm a cor negra, a cor da «noite sem estrela»;

    • sua chama, embora vivaz e bela, não tem luz;

  5. Em face disso, pergunta se é um anjo de Deus ou do Diabo;

  6. Apesar de assistirmos, uma vez mais, à presença do tu, como, aliás, já nos habituou Garrett, esta presença manifesta-se numa mudez absoluta que tortura o sujeito poético: «Não respondes - e em teus braços / Com frenéticos abraços / Me tens apertado, estreito!...»;

  7. O sujeito poético insiste no seu interrogatório condenatório: «Isto que me cai no peito / Que foi?... Lágrima?»

    • Não pode ser lágrima, porque o que ele sentiu escaldou-o: «Queima, abrasa, ulcera»;

  8. Afirmando que o ardor que o devora é já o fogo eterno dos condenados que o tu trouxe de lá (alusão ao inferno), o sujeito poético interroga-se sobre os mistérios em que se esconde o fatal e estranho ser deste anjo maldito, demoníaco;

  9. Termina, questionando, uma vez mais, se o tu é anjo ou é mulher;

  10. A resposta está contida em apenas duas palavras dos dois últimos versos: fatal e mulher, isto é, a mulher fatal;

  11. Note-se que, ao contrário do que acontece em O Anjo Caído, em que o tu é nitidamente a vítima do eu (tirano caçador), em Anjo És, é o eu que é vítima do tu (esta oposição não se verifica pela primeira vez: em Este inferno de amar - como eu amo!, o eu apresenta-se como vítima, mas em Gozo e Dor e em Não te amo - quero-te, a vítima é o tu);

  12. Algumas figuras de estilo: anáfora (vv 1/4); adjetivação (insolente, forte, ardente, humilde, anuviada, nevada, alvas, ardente, nu, sôfrego, negra, vivaz, bela, frenéticos, apertado, estreito, maldito, eterno, fatal, estranho); personificação (hipálage) (vv 6/7; 8/11); metáfora (vv 7, 23, 26, 35, 36); pergunta de retórica (vv 13, 24/27, 32, 38, 41); anadiplose (vv 21/22); eufemismo (v 27); gradação crescente (v 33);

  13. Algumas características românticas: o tom confessional do poema; uma certa teatralidade; o tema da mulher fatal; a superlativação dos poderes da mulher; a alusão ao inferno e ao diabo.


Barca bela

Pescador da barca bela,

Onde vais pescar com ela,

Que é tão bela,

Ó pescador?

Não vês que a última estrela

No céu nublado se vela?

Colhe a vela,

Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,

Que a sereia canta bela...

Mas cautela,

Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,

Que perdido é remo e vela

Só de vê-la,

Ó pescador!

Pescador da barca bela,

Inda é tempo, foge dela,

Foge dela,

Ó pescador!


Linhas de Leitura

  1. O presente poema, com toda a sua singeleza, exerce um poder de fascínio que, por si só, define a matriz de um artista;

  2. O poema sintetiza um conflito dramático representado por três personagens: o pescador, a sereia e alguém que é o dono da voz que se dirige ao pescador (que bem pode ser um coro à boa maneira clássica da tragédia grega (não prenuncia o coro, por regra, a catástrofe? e que acontecerá ao pescador se não resistir à tentação (leia-se sedução), apesar dos avisos?));

  3. Quem não vê, na pergunta da 1ª estrofe, um aviso, um conselho: «Pescador da barca bela, não vás pescar com ela, que é tão bela, ó pescador!» Que é como quem diz: «Se vais, ficas sem ela e, perdendo-se a barca, perdes-te tu!»

  4. Todo o poema contém os pré-requisitos de um texto argumentativo cuja tese pode muito bem ser: «Barco que vá para o mar arrisca-se a lá ficar.» (principalmente se as condições forem adversas: vv 5/6; v 10; vv 13/14);

  5. Assim, a lógica da argumentação assenta na enumeração das adversidades que aumentam, gradativamente, o perigo que representa o próprio mar:

  • se o mar (deve ser entendido como uma metáfora), em si mesmo, já representa perigo para a barca bela, esta ficará envolvida em maior perigo se perder a sua orientação («Não vês que a última estrela / No céu nublado se vela?» (vv 5/6) - a ausência de luz retira a clarividência ao pescador, facilitando a perigosidade);

  • por isso: «Colhe a vela, / Ó pescador!»
    mas, se o não fizeres, se não tiveres a força, a coragem para o fazer, para resistir, «Deita o lanço com cautela...»

  • se o perigo é mesmo iminente para uma barca à deriva (sem orientação), é-o ainda mais se se deixar seduzir pelo canto da sereia como aconteceu no episódio de Ulisses;

  • enredando-se a rede nela, ficará perdidamente enredado o próprio pescador (será o momento oportuno de lembrar um ditado popular: «Ir à lã e vir tosquiado.»
    ou, se se preferir a adaptação: «Ir à pesca e ser pescado.»)
    nota de curiosidade: o termo pescar, conotativamente, é muito utilizado no jogo da sedução!;

  • por isso: enquanto é tempo, «Foge dela, / Foge dela, / Ó pescador!», isto é, se não queres ficar sem a barca bela, não vás pescar com ela;

  1. Conclui-se, assim, que o perigo último, o maior, é ela;

  2. É altura, pois, de lembrar que toda a rima, à exceção de pescador, que faz parte dessa espécie de refrão, contém o elemento feminino ela (bela (v 1), ela (v 2), bela (v 3), estrela (v 5), vela (verbo velar) (v 6), vela (nome) (v 7), cautela (v 9), bela (v 10), cautela (v 11), nela (v 13), vela (v 14), vê-la (v 15), bela (v 17), dela (v 18), dela (v 19);

  3. Todas as estrofes são constituídas por dois versos mais longos (7 sílabas (redondilha maior)) e dois mais curtos (o 3º, de três sílabas; o 4º, de quatro); se juntarmos os dois últimos versos de cada estrofe, utilizando o processo da sinalefa, obtemos mais um verso de 7 sílabas, construindo, deste modo, estrofes com versos isométricos;

  4. Tal atitude, no entanto, implicaria, por um lado, a constituição de uma rima interna cujo efeito seria profundamente atenuado em relação ao que é obtido no seu estado original e, por outro, faria desaparecer uma espécie de refrão que, na minha opinião, contém um profundo valor reiterativo: o poeta sabia o que estava a fazer;

  5. Algumas figuras de estilo: apóstrofe (vv 1, 4. 8. 12, 16, 20); adjetivação (bela, última); pergunta de retórica (vv 1/4; vv 5/6; exclamação retórica (vv 7/8; 11/12; 15/16; 19/20); diáfora (vv 6/7 (repetição de uma mesma palavra, mas com sentido diferente: vela (verbo) / vela (nome)); elipse (v 11); reiteração (vv 18/19); assonância (contida na rima); aliteração do L;
    Nota: todo o poema é uma alegoria, pelo que quase todos os seus elementos devem ser lidos no plano metafórico: o que está em causa é o irresistível poder de sedução da mulher fatal;

  6. Algumas características românticas: a construção do poema ligada à tradição popular; a alusão à mulher fatal (sereia); uma certa teatralidade.



© 2001- - Manuel Maria, associado da SPA.
Textos em conformidade com as normas do novo acordo ortográfico.