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Fernando Pessoa

Heterónimos
Alberto Caeiro
Álvaro de Campos
Ricardo Reis

[Biografia] * [Génese dos heterónimos] * [Sentir / Pensar nos vários heterónimos]

[O Sensacionismo nos vários heterónimos, segundo Pessoa]

[Mensagem] * [Textos Teóricos sobre a Mensagem] * [Poesia Ortónima]


Biografia

Pessoa, Fernando António Nogueira (Lisboa, 1888-1935). Extraordinário poeta e uma das personalidades mais complexas e representativas da literatura europeia do séc. XX. Filho dum modesto funcionário, inteligente e culto, jornalista, crítico musical, que morreu tuberculoso em 1893. Ascendência de cristãos-novos; avó paterna louca. A mãe, oriunda de boa família açoriana, senhora de esmerada educação, contraiu segundas núpcias em fins de 1895; o casal instalou-se em Durban (África do Sul), onde o futuro poeta fez os seus estudos, prosseguidos na Univ. do Cabo (1903-04). Quando volta definitivamente para Lisboa, F. P. domina a língua inglesa (e a respectiva literatura) tão bem, ou melhor, que a materna. Chega a matricular-se no Curso Superior de Letras, cujas aulas depressa abandona; dedica-se ao estudo de filósofos gregos e alemães (Schopenhauer, Nietzsche deixarão sulco na sua obra); lê os simbolistas franceses e a moderna poesia portuguesa (Antero, Cesário Verde, etc.)

Retraído, com vocação para viver isolado, sem compromissos, sempre disponível para as aventuras de espírito, trabalha, desde 1908 até à sua morte, como correspondente comercial de várias firmas. Subtil conversador de café, parece inepto para a vida sentimental; apenas se lhe conhece o namoro burguês de poucos meses com uma dactilógrafa. Frui a existência obscura que escolheu, por quadrar ao seu feitio. Uma vez (em 1931) define-se como «hístero-neurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra)». Com efeito, extremamente lúcido (é o poeta português que mais se aproxima de Valéry), mentaliza as emoções e, por inteiro, votado à literatura, a ela reduz os seus pretensos ataques de histeria.

Desde os treze anos escreve poesias em inglês; mas é como ensaísta que primeiro se revela, ao publicar, em 1912, na revista A Águia, uma série de artigos sobre «a nova poesia portuguesa» (v. Saudosismo), animados de optimismo messiânico (publ. em opúsculo em Lisboa, 1944). Entretanto, continua a compor poesia, já em inglês (são de 1913 os 35 Sonnets e o Epithalamium), já em português (segundo o A., em 1908, «num impulso súbito», resultante da leitura das Flores sem Fruto e das Folhas Caídas, de Garrett, começou a escrever versos nesta língua). Afastando-se do grupo saudosista, ávido de novos rumos estéticos e de fazer pulsar a literatura portuguesa ao ritmo europeu, vai ser um dos introdutores do Modernismo em Portugal, com sá-Carneiro, Almada, Raul Leal e outros. Em Fev. de 1914 publica, na revista A Renascença, a poesia «Pauis» (que deu origem a uma corrente efémera, o paulismo, de requintado e subtil pós-simbolismo) e «Ó sino da minha aldeia» (em que, pela depuração do paulismo, já se anuncia o lirismo claro, simples, leve mas penetrante música da alma, que é timbre do Pessoa ortónimo). Se 1914 fica, na biografia interior do poeta, como um ano decisivo, pelo aparecimento dos principais heterónimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, em 1915 vem a lume o Orpheu, de que F. P. é um dos directores. Até 1917, reparte-se entre a procura dramática da autenticidade, «gravemente atento à importância misteriosa do existir», e o virtuosismo literário de experiências mais ou menos sinceras, mais ou menos para épater, «nos arredores da sua sinceridade» - do simbolismo decadentista e desconexo de «Hora Absurda» ao interseccionismo impressionista de «Chuva Oblíqua», sem esquecer o sensacionismo whitmaniano das Odes de Álvaro de Campos, cantor da fúria e das vertigens da civilização mecânica (Odes insertas no Orpheu). Passada a hora da exploração do ineditismo em poesia, delineada uma evolução dentro de cada heterónimo (pelo menos em Álvaro de Campos, da euforia das grandes Odes ao tédio sonolento, e em Caeiro), F. P. continua, no recato da sua intimidade, a congeminar, a viver pela imaginação, a traduzir na música dos versos as suas emoções; a bem dizer, não evoluciona mais: desdobra-se, aprofunda-se, tece a sua teia como que alheio às circunstâncias temporais. Em 1917, o Portugal Futurista inclui poesias de F. P. e o «Ultimatum», manifesto futurista de A. de Campos. Em 1918, F. P. dá a lume dois folhetos, Antinous, poema em inglês, dum esteticismo pagão e elegíaco, e 35 Sonnets, repassados da angústia de saber indecifrável o mistério do mundo. Estes sonetos, onde se espelha uma essencial inquietação metafísica, distinguem-se formalmente por um sábio conceptismo, por «Tudor tricks of repetition, involution and antithesis», como diz o crítico do Glasgow Herald. Em 1921, F. P. publica English Poems I e II (2.ª ed. de Antinous e catorze Inscriptions, legendas tumulares ao gosto helénico, onde assoma a ideia de que a vida é sonho; são poemas datados de 1920) e English Poems-III (Epithalamium, poema de escabrosa exaltação do prazer). Das Inscrições há uma tradução de Jorge de sena, in Comércio do Porto de 9-IX-1958; dos 35 Sonnets, catorze foram traduzidos por casais Monteiro e Jorge de Sena, S. Paulo, 1954. Depois, F. P. colabora nas revistas Contemporânea, Athena (1924-1925), de que foi director, Presença, Descobrimento. Pertence-lhe a autoria dum manifesto político, O Interregno (1928). Em fins de 1934, publica a Mensagem, colectênea de poesias que celebram os heróis e profetizam, em aitude de expectativa ansiosa, a renovada grandeza da Pátria.  E nenhum volume mais sai em vida do A.; F. P. morre em grande parte inédito, só admirado num círculo restrito, nomeadamente pelo grupo da Presença. Em breve, porém, a sua obra será conhecida e amplamente valorizada. J. Gaspar Simões e Luís de Montalvor organizam 5 vols. das Obras Completas: I. Poesias de Fernando Pessoa (Lisboa, 1942), II. Poesias de Álvaro de Campos (1944), III. Poemas de Alberto Caeiro (1946), IV. Odes de Ricardo Reis (1946), V. Mensagem (3.ª ed., 1945). A Freitas da Costa foi confiado o vol. VI, Poemas Dramáticos (1952), onde figuram «O Marinheiro», «drama estático» escrito em 1913, e fragmentos dum «Fausto» em verso, datados de várias épocas; a Jorge Nemésio os vols. VII e VIII, Poesias Inéditas (1955 e 1956); a Georg R, Lind e Jacinto do Prado Coelho, o vol. IX, Quadras ao Gosto Popular (1965). Além disso, o poema, eivado como a Mensagem, de misticismo sebastianista, e publicado em 1920 no jornal Acção) À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais foi editado em folheto em Lisboa, 1940;artigos e ensaios de F. P. foram reunidos em volume por Jorge de Sena, sob o título Páginas de Doutrina Estética (Lisboa, 1946); numerosos fragmentos inéditos, alguns de excepcional interesse, vieram a público em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (Lisboa, 1966) e Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias (Lisboa, 1967) - volumes organizados por Georg R. Lind e J. do Prado Coelho -, bem como nos Textos Filosóficos estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho (2 vols., Lisboa, 1968). Hohe F. P. é o poeta de mais larga projecção na poesia em língua portuguesa, dos dois lados do Atlântico. Mas o seu espólio literário permanece, em parte, inédito, o que não permite fazer um juízo bem fundamentado sobre todas as facetas da sua personalidade. Está a caminho a publicação integral do Livro do Desassossego de Bernardo Soares - tarefa confiada a Jorge de Sena; igualmente se prevê a publicação da maior parte, ainda inédita, da poesia inglesa. Entretanto, o prestígio internacional do escritor não tem cessado de aumentar. Traduzido em francês por Armand Guibert, em espanhol por Octavio Paz, em alemão por Georg R. Lind, em italiano por Luigi Panarese, tem sido, nos últimos anos,  objecto de estudos de especialistas alemães, franceses, italianos, brasileiros, etc.

Como ficou dito, a obra de F. P.  é escrita (sê-lo-ia até ao fim da sua vida, embora muito cedo o poeta deixasse de ocultar a «simulação») ora em seu nome, ora em nome de autores fictícios; e não se trata de pseudónimos, trata-se antes (insiste F. P.) de heterónimos, quer dizer, de individualidades que devem ser consideradas «distintas da do autor delas» («Tábua bibliográfica in Presença, n.º 17, Dez. de 1928). É o caso de A. Caeiro, de A. Campos e de R. Reis. O prosador Bernardo Soares não passa dum semi-heterónimo porque (explica F. P.), «não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade» (Páginas de Doutrina Estética, p. 268). F. P. chegou a inventar biografias, retratos físicos e horóscopos para os três primeiros heterónimos, a fim de melhor os definir. Ele próprio e os heterónimos (incluindo o doutrinário António Mora) formariam uma escola neopagã, embora com atitudes individuais diversas em relação ao cristianismo.

A. Caeiro, pretenso «mestre» de R. Reis e A. Campos, surge como um homem de visão ingénua, instintiva, gostosamente entregue à infinita variedade das sensações: «Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras; / Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. / Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais». Todavia, os seus poemas são abstractos, incolores, porque defendem uma teoria: para Caeiro, o real é a própria exterioridade, e não devemos acrescentar-lhe as impressões subjectivas; a sua posição é antimetafísica, mais, é contra a interpretação do real pela inteligência, pois essa interpretação reduz as coisas a simples conceitos vazios: « Com filosofia não há árvores, há ideias apenas». Ricardo Reis (latinista e semi-helenista, «pagão por carácter») segue Caeiro no amor da vida rústica, junto da Natureza; mas, enquanto o mestre, menos culto e complicado, é um homem franco, alegre, Reis é um ressentido, que severamente se molda a si mesmo; sofre por se saber efémero, dói-lhe o desprezo dos deuses, aflige-o a imagem antecipada da Morte, conhece a dureza do Fatum; por isso busca o refúgio dum epicurismo temperado de estoicismo, tal como Horácio, seu modelo literário: «Abdica / E sê rei de ti próprio». Lúcido e cauteloso, sabiamente constrói para si uma felicidade relativa, feita de resignação altiva e de temperado gozo dos prazeres que não comprometem a liberdade interior. A diferença de «personalidades» reflecte-se no estilo: A. Caeiro, versilibrista, expande-se em linguagem fluente e desenvolta, quase prosa pela sã naturalidade; o estilo de Reis, pelo contrário, latinizante no vocabulário e na sintaxe, é densamente trabalhado. O outro discípulo, Campos, é o menos intelectual, o mais nervoso e emotivo, até à histeria; engenheiro naval, «franzino e civilizado», é o heterónimo que apresenta mais acentuada evolução: começa pelo decadentismo de blasé («Opiário»), mostra-se depois (recebida já a influência de Caeiro, que o aproxima de Whitman) um moderno de pujante vitalidade, cantor dos instintos ferozes e da trepidação das grandes urbes fabris (à Marinetti) («Ode Triunfal», «Ode Marítima»), e descai por fim no tédio duma vida que se arrasta, dolente, sem sentido. Aliás, durante a breve fase heróica, em que o verso livre (outra herança da lição de Caeiro) ganha admirável força, desdobrando-se em apostos e reiterações, já se anuncia, aqui ou ali, o Campos desistente da última fase. Este heterónimo também escreveu prosa de ideias: o fustigante «Ultimatum», onde afirma que o grande poeta actual será o mais rico de «contradições e dissemelhanças», propondo o desdobramento dos poetas em várias personalidades, «cada uma das quais seja uma Média entre correntes sociais do momento» (possível justificação dos heterónimos); os «Apontamentos para uma estética não-aristotélica (in Athena, n.º 4), onde advoga uma estética, não já baseada na ideia de beleza, mas na ideia de força: «De resto, até hoje, data em que aparece pela primeira vez uma autêntica doutrina não-aristotélica da arte, só houve três verdadeiras manifestações de arte não-aristotélica. A primeira está nos assombrosos poemas de Walt Whitman; a segunda está nos poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; a terceira está nas duas odes - a 'Ode Triunfal' e a 'Ode Marítima? - que publiquei no Orpheu». - Em relação aos heterónimos, o Pessoa ortónimo distingue-se por traços peculiares: avesso ao sentimentalismo, as suas finas emoções são pensadas, ou são já vibrações da inteligência, vivências de estados imaginários: «Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração». Com musical suavidade, em breves poesias de metro geralmente curto, e através de símbolos consagrados (a noite, o rio, o mar, a brisa, a fonte, as rosas, o azul), mais raro de cunho moderno (o andaime, o cais), fiel à tradição poética «lusitana» e não longe, por vezes, da quadra popular, Pessoa exprime ou insinua a solidão interior, a inquietação perante o enigma indecifrável do mundo, o tédio, a falta de impulsos afectivos de quem, minado pelo demónio da análise, já nada espera da vida - ou então os vagos acenos do inefável, o breve acordar da infância, a magia da voz que se cala, mal o poeta se põe a escutar. Pessoa ortónimo convizinha com Álvaro de Campos (o da última fase), a quem chama seu «companheiro de psiquismo»; Campos, porém, reflecte de modo imediato as sensações do dia-a-dia, com expressão enervada, negligente, a roçar pelo prosaísmo, enquanto Pessoa, mais distante da vida empírica, mais fechado no intemporal do sonho e da reflexão, elabora com subtileza a matéria poética, até conseguir uma pura, cristalina e musical sobriedade. O primeiro é um romântico, na sua convulsa ou extenuada modernidade; o segundo um clássico, moderno também, sim, pela discreta novidade do seu canto e pelo papel desempenhado pela inteligência na sua poesia. Neste sentido convizinha com Ricardo Reis. Como autor da Mensagem, parece fugir à melancolia pela crença em desígnios sobrenaturais que fadam homens e nações para altos destinos; mas o espírito de corrosiva análise interfere quando o mito se chama mito, quer dizer, verdade apenas subjectiva, quimera; e o desalento denuncia-se, como reverso da embriaguez messiânica; o mito do Encoberto não passa duma resposta à desolação da alma: «Só te sentir e te pensar / Meus dias vácuos enche e doura». Épico sui generis, sem tuba altissonante, confina ao espaço subjectivo a sua profética (loucamente profética) Mensagem; nunca o abandona a lucidez implacável: «Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?» Aliás, o ideal português oculto na Mensagem parece residir num pacífico «ser tudo de todas as maneiras»; e do poema infere-se a lição de que a plenitude humana está não no conseguir, mas na aspiração insatisfeita, indefinida.

Para alguns, o problema dos heterónimos em F. P. demasiado prendeu já a atenção da crítica. O certo, porém, é que só o estudo do que ele chamou «um drama em gente» permite, não só avaliar com justiça a riqueza espiritual do poeta e o seu poder criador, como ainda penetrar no sentido subjacente de toda a sua obra - uma conquanto diversa. Só em parte, na parte que menos importa, os heterónimos resultam do gosto de simular ou mistificar, do prazer da blague, característico do Modernismo. Ou melhor: a própria simulação tem um grave sentido, pois radica num caso psicológico («tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação» - explica F. P.) e numa consequente atitude perante a vida. Solicitado por forças divergentes, muito sugestionável, «ondulante e vário» (fala a Cortes-Rodrigues do seu «perigoso feitio demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e sem nexo dentro de si»), F. P. põe com severa agudeza o problema da sinceridade, para concluir que a sinceridade imediata é impossível, dado o hiato intransponível entre o que somos e o que pensamos. É o que diz, por exemplo, o primeiro dos 35 Sonnets: «Unto our very selves we are abridged / When we would utter to our thought our being». e a conclusão idêntica chega A. de Campos: «Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente». Daí, por um lado, a permanente disponibilidade irónica da inteligência de F. P., capaz de argumentar com o mesmo virtuosismo por uma doutrina ou pela doutrina oposta (é lembrar o diálogo Pessoa-Campos); daí, por outro lado, que tenha preferido a expressão indirecta, e não mutiladora, de si mesmo, a sinceridade do fingimento («Fingir é conhecer-se»), pela cisão nos heterónimos - vozes que se completam e ganham pleno sentido umas em função das outras - universo interior. Aqui o artifício não é um jogo gratuito (caso contrário F. P. seria obviamente um exímio malabarista, não o grande poeta que nele respeitamos), é uma forma de sinceridade literária. «Isso é sentido na pessoa de outro (esclarece empenhadamente o A. em carta a Cortes-Rodrigues); é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele». Pessoa está nas suas personagens, incluindo entre elas a que escreve em seu nome; sentindo existencialmente a fluidez do eu e o absurdo deste «inconcebível universo», afirmando ser, «como toda a gente, uma ficção do intermezzo», F. P. descrê de qualquer possibilidade humana de conhecer, o que transparece duma irónica sentença da «Tábua bibliográfica»: «Se estas três individualidades [dos heterónimos] são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa - é problema metafísico que este, ausente do segredo dos deuses, e ignorando, portanto, o que seja realidade, nunca poderá resolver». Alheios, talvez como ele próprio, ao que foi a verdade humana de F. P., é na diversidade da sua obra, na riqueza dialéctica das suas tensões e antinomias que descobrimos a grandeza do poeta, dividido entre o pressentimento dum além (que ele buscou por via racional: o ocultismo), o desalento duma inteligência inerme, incapaz de copular a vida, e o torvelinho das forças irracionais. Fausto malogrado, a própria dispersão da sua obra, feita de linguagens em liberdade, é vivo testemunho duma época de crise, sem coesão construtiva.

Coelho, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3.ª edição, 3.º volume, Porto, Figueirinhas, 1979


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Génese dos Heterónimos

Carta a Adolfo Casais Monteiro

Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer cousa que escrevesse, discordando a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe - Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza da «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso,  e até em contradição com isso, muitas outras cousas. E essas cousas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande - um livro de umas 350 páginas -, englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta - em certo modo secundária - da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso de Mar Português, parte deste mesmo livro) - precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha - e fará bem em supor, porque é verdade - que estou simplesmente falando consigo.)

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem», que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois - e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia - tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo - penso-o com tristeza - pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondo à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro - os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente - um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida - ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maior idade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura - cara, estatura, traje e gesto - imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar - e escrever à máquina é para mim falar -, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos - um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mal, e que dá o Álvaro em botão...

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido - estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido -, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis - ainda inédita - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.1

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer«Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto à «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente - o que é facto - que me foi permitido folhear Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888.2 Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.3

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja saber, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima  admira.

Fernando Pessoa

P. S. (!!!)

14-1-1935

Além da cópia que normalmente tiro para mim, quando escrevo à máquina, de qualquer carta que envolve explicações da ordem das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe precisa para qualquer outro fim. Essa cópia está sempre às suas ordens.

Outra cousa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com uma reserva, e peço-lhe licença para lha acentuar. O parágrafo sobre o ocultismo, na página 7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra impressa. Desejando responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria.

Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo. Nada obsta a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa outra pessoa obedeça também ao critério de não reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai escrito. Creio que posso contar consigo para tal fim negativo.

Continuo em dívida para consigo da carta ultradevida sobre os seus últimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondência em ordem, pois estou em dívida, nessa matéria, não só para consigo, mas também com várias outras pessoas.

Ocorre-me perguntar de novo uma cousa que já lhe perguntei e a que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês, que há tempos lhe enviei?

«Para meu governo», como se diz em linguagem comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta carta. Obrigado.

Fernando Pessoa

1 - Esta carta, tal como foi inserida por Adolfo Casais Monteiro na revista Presença, n.º 9, Junho de 1937, e mais tarde por Jorge de Sena nas Páginas de Doutrina Estética, obr. cit., terminava aqui, em obediência ao Post Scriptum de Fernando Pessoa, que pedia a não publicação do trecho subsequente devido aos motivos que apontava e que adiante se reproduzem. Contudo, com autorização de Casais Monteiro, João Gaspar Simões incuiu o referido trecho ocultista na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa, obr. cit., pp. 546 e 547 (2.ª ed.). Uma vez que o referido trecho já é conhecido, podemos pois transcrever aqui a carta na íntegra, bem como o P. S., que só figurava em Apêndice da antologia de Sena.

2 - A epígrafe de Eros e Psique é como se sabe a seguinte: «...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade».

3 - Termina aqui o texto em questão, só conhecido depois do livro de J. Gaspar Simões.

Pessoa, Fernando, «Textos de Carácter Pessoal / Cartas Escolhidas» in Obras de Fernando Pessoa, vol. II, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986


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Sentir / Pensar nos vários Heterónimos

«Sim, todos os meus desejos

São de estar sentir pensando.»

F. P.

A dualidade do sentir e do pensar, nas suas ambíguas acepções de emoção e razão, conhecimento e sensibilidade, manifesta-se com insistência na poesia heteronímica, tanto ao nível do poemodrama como do poetodrama. Pode dizer-se que ela se situa numa das linhas de fractura mais profundas da experiência poética de Pessoa em relação à poesia que lhe é anterior e anterior a Orpheu.

Não é, no entanto, na simples presença dessa dualidade que reside a sua ruptura mais radical. O que há de novo em Pessoa é a superação da irredutibilidade do sentir ao pensar, e reciprocamente. Uma vez mais a oposição reverte numa identidade dos dois termos, através da sua metamorfose poético-dramática.

Assim, ao verso-chave de Pessoa «ele mesmo», tantas vezes citado,

O que em mim sente, 'stá  pensando 1,

responde, simetricamente, este outro do poeta «ortónimo»:

Só meu pensamento sente. 2

E nos demais heterónimos os ecos destes versos repercutem-se variamente:

Quanto sinto, penso 3,

sintetiza Ricardo Reis, na sua concisão lapidar, enquanto pateticamente Álvaro de Campos vivi a indeterminação entre

O que eu penso ou sinto, que nem sei qual é, ó vida 4.

Mas é em Alberto Caeiro que a identificação entre o pensamento e as sensações mais naturalmente se realiza, no próprio acto da percepção sensorial:

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.5

Este ajustamento mútuo do pensar ao sentir e do sentir ao pensar não se traduz, no entanto, senão numa harmonia momentânea e sempre precária de ambos os termos. Há entre eles, ao mesmo tempo, uma tensão (uma dramaticidade) permanente, que toma as mais diversas formas de coincidência e incoincidência, desde a diluição um no outro até à sua irredutível exterioridade.

Se, para Pessoa «ele mesmo»,

Basta pensar em sentir

Para sentir em pensar 6,

numa reversibilidade perfeita, também a momentos ele exclama:

Que importa, se sentir

É não se conhecer?7

Ou então, um instante exausto desse esforço de ajustar o pensamento às sensações, acaba por desalentadamente desabafar:

Cansa sentir quando se pensa.8

Senão ainda, numa confissão de incomodidade lúcida de si mesma:

No mal-estar em que vivo,

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo,

A mim mesmo minto.9

Mas de novo a promessa duma harmonia possível, e como que pré-estabelecida, se lhe apresenta:

Sereno, acima de ti mesmo, fita

A possibilidade erma e infinita

De onde o real emerge inutilmente

E cala, e só para pensares sente.10

É nesta alternância entre um desacordo e um acordo absoluto que as relações complexas do sentir e do pensar dramaticamente se entretecem. Assim se forma, pouco a pouco, uma rede cerrada de correspondências, em que os vários fios da linguagem poética vão e vêm de heterónimo para heterónimo.

Só na linguagem poética, com efeito, pode manifestar-se, simultaneamente, essa adequação e inadequação da razão e da sensibilidade. Daí esta exasperada reflexão de Fausto acerca da importância da linguagem comum precisamente para a comunicação do sentir e do pensar:

Desespero ao ouvir-me assim dizer

Isso que n'alma tenho. Sinto-o, sinto-o,

E só falando não me compreendo.11

Alberto Caeiro põe em termos diferentes, mas afinal idênticos, o mesmo problema da linguagem como ponte entre as sensações e o pensamento:

Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.12

Os dois primeiros versos desta estrofe revelam-nos o desejo do poeta de colmatar a brecha, a distância que vai da sensação às palavras, sem passar pelo istmo do pensamento. Mas embora o seu sentido aparente seja o da excrescência do pensar perante a pura expressão do sentir, os versos seguintes logo explicitam a verdadeira significação que lhes está pressuposta: o poeta não busca senão «encostar as palavras à ideia», sem necessidade de um «corredor do pensamento para as palavras». Não é pois de uma ablação do pensamento que se trata, mas da sua identificação íntima, na linguagem poética, com a sensibilidade: a «ideia» é finalmente, no poema, sinónimo de sensação, o que está aliás perfeitamente em correspondência com a concepção do conhecimento subjacente à poética de Caeiro.

Esta obsessão do preenchimento desse hiato entre as sensações, o pensamento e as palavras, que aflora a cada passo nos poemas dos heterónimos, é ressentida por uma das Veladoras de O Marinheiro como a experiência do limite e ao mesmo tempo da necessidade de toda a linguagem: «Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para falar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis... A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso dizer frases confusas, um pouco longas, que custam a dizer... Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?»13

A metáfora da aranha tecendo a sua teia é aqui a do poeta criando a sua linguagem, em que apenas pode captar como frágeis sinais as sensações e os pensamentos, que os múltiplos filamentos vão retransmitindo. É esse trabalho de Penélope que cada heterónimo a seu modo poeticamente prossegue.

Como vimos, Alberto Caeiro começa por buscar a identificação do sentir e do pensar num aparente exorcismo deste último:

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.14

Ou mais subtilmente ainda:

Vou onde o vento me leva e não me

Sinto pensar.15

Não se sentir pensar não será, no entanto, equivalente no fundo a pensar sentindo, numa consubstanciação plena em que o desdobramento da consciência e das sensações inteiramente se anula? É o que noutro poema Caeiro, num dos seus breves devaneios de «pastor amoroso», mais claramente sugere:

E eu quase me esqueço de sentir só de pensar nela.16

Na verdade, o pensamento, mesmo renegado, acaba por reaparecer, inevitavelmente, assimilado à consciência sensível: não pensa Caeiro, no fim de contas, com os próprios órgãos dos sentidos? Veremos mais adiante como, em certos poemas, o «mestre» viola explicitamente a sua poética das «sensações das coisas tais como são», deixando-se contaminar pela «doença» do pensamento. Ao encontrar para isso uma explicação de ordem patológica, Caeiro não faz senão reconhecer que se trata da paisagem nocturna da sua alma, a qual continua a ser pura e simplesmente, nas suas precisas palavras, «a mesma ao contrário».17 Sentir e pensar são assim, uma vez mais, o verso e o reverso dessa identidade dos opostos que caracteriza a linguagem poética de Pessoa.

Para Álvaro de Campos, as sensações, levadas ao seu excesso, desembocam também no pensamento, como se este não fosse mais do que um limite para o qual elas tendem:

Como à força de sentir, fico só a pensar.18

O que um outro verso seu negativamente confirma:

Senti de mais para poder continuar a sentir.19

Veremos, ao estudar a poesia deste heterónimo, como uma das características essenciais da sua linguagem poética é justamente a expressão cumulativa e desbordante do sentir, ou, como Campos escreve na «Ode Triunfal»,

um excesso de expressão de todas as sensações.20

Tal é o fundamento do «Sensacionismo», de que ele é o principal porta-voz teórico.

Mas se a exacerbação da sensibilidade a leva ao seu prolongamento no pensar, este não pode deixar de a reconduzir, por sua vez, ao sentir:

Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.

O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir

É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.21

E a circularidade do processo recomeça sempre e sem fim: a contiguidade das sensações e do pensamento é inerente à essência do que Campos chama a sua «metafísica»:

Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas.

Nos destinos que não desvendo.

Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto.22

Importa a este propósito salientar que Campos, num dos seus textos filosóficos, observa que mesmo «o abstracto e o absoluto podem ser sentidos e não só pensados, pela simples razão de que tudo pode ser, e é, sentido» 23.

O heterónimo em que o equilíbrio entre o sentir e o pensar poderia parecer mais perfeitamente estabelecer-se seria Ricardo Reis, já que, como vimos, ele diz pensar quanto sente. Mas importa atentar numa subtil e importante distinção de Reis entre a sensação e o seu objecto, que são para ele independentes:

O que sentimos, não o que é sentido.

É o que temos.24

O pensamento aparece-lhe, pois, homologamente, como alheio a esse mesmo objecto da sensação:

Tudo, desde ermos astros afastados,

A nós nos dá o mundo.

E a tudo, alheios, nos acrescentamos.

Pensando e interpretando.25

Se há, finalmente, como que um acordo mútuo (e diríamos tácito) entre sentir e pensar, ele é feito de uma simples coexistência, em exterioridade a um comum objecto. Só a presença superior de um destino, sobrepondo-se-lhes, vem harmonizá-los na sua fatal inanidade, como nestes definitivos versos de uma ode de Reis:

Assim no mundo acima do que sinto

Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma

E nada tem sentido - nem a alma

Com que penso sozinho.26

Percorrida assim a trama das relações temáticas do germe sentir/pensar nos vários heterónimos, resta ainda ver como ela encontra uma expressão diversificada na linguagem poética de cada um deles. Com efeito, certas coincidências de superfície ao nível dos significados são por vezes enganadoras quanto ao sentido profundo dos pontos de contacto entre um e outro heterónimo 27. Para tomar um exemplo frisante, entre dois sintagmas poéticos como «o que em mim sente 'stá pensando» (de Fernando Pessoa «ele mesmo») e «quanto sinto, penso» (de Ricardo Reis) há, para além de uma aparente identidade semântica, uma heterogeneidade da estrutura linguística do significante, que nem por ser mais evidente ao nível da expressão deixa de traduzir-se numa diferença quanto às relações dos significados sentir/pensar. Com efeito, enquanto em Fernando Pessoa «ele mesmo» estamos perante a sugestão de uma simultaneidade, ou melhor, de uma fusão íntima dos dois planos - sensorial e racional - da consciência, que se corporiza no ritmo ondulatório do verso, já em Ricardo Reis assistimos a uma simples articulação abstracta de conceitos, que corresponde à relação de exterioridade entre os dois termos por nós constatada na sua poesia. Sentir pensando não é o mesmo que pensar-se o que se sente: no primeiro caso, a consubstanciação é plena e imediata, como a própria intransitividade de ambos os verbos o revela; no segundo, a sua transitividade implica que um deles seja o complemento do outro, tornando-se assim o seu objecto. Por outro lado, à fluidez da expressão poética de pessoa «ele mesmo» contrapõe-se a condensação verbal de Reis, características que, como a seguir mostraremos, ao analisar a sua inserção no poetodrama, definem a originalidade das suas linguagens.

Nelas veremos, sintagmaticamente, proliferar a germinação das oposições paradigmáticas que temos vindo a estudar, prolongadas em todas as outras - não analisadas aqui em detalhe - que delas decorrem. Tal será a forma de existência poética própria a cada heterónimo.

Seabra, José Augusto, Fernando Pessoa ou o Poetodrama, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1988


1 - Pessoa, p. 75. (Obras Completas de Fernando Pessoa, colecção «Poesia», Ed. Ática, Lisboa: I - Poesias de Fernando Pessoa)

2 - Idem, p. 81.

3 - Reis, p. 238 (mesma colecção, IV - Odes de Ricardo Reis).

4 - Campos, p. 301 (mesma colecção, II - Poesias de Álvaro de campos).

5 - Caeiro, p. 148 (mesma colecção, III - Poemas de Alberto Caeiro).

6 - Pessoa, p. 543.

7 - Idem, p. 100.

8 - Idem, p. 96.

9 - Idem, p. 109.

10 - Idem, p 486.

11 - «Primeiro Fausto», «Segundo Tema», in O. P., p. 440.

12 - Caeiro, p. 164.

13 - «O Marinheiro», in O. P., p. 419.

14 - Caeiro, p. 160.

15 - Idem, p. 184.

16 - Idem, p. 169.

17 - Idem, p. 150.

18 - Campos, p. 356.

19 - Idem, p. 285.

20 - Idem, p. 260.

21 - Idem, p. 316.

22 - Idem, p. 323.

23 - «O que é a Metafísica?», Athena, n.º 2, citado in Textos Filosóficos, I, p. 15.

24 - Reis, p. 233.

25 - Idem, p. 236.

26 - Idem, p. 231.

27 - Nesta medida nos parece demasiado esquemática uma formalização das relações entre os heterónimos baseada na simples aproximação das unidades temáticas, como a que propõe Mário Sacramento ao pretender demonstrar a respectiva concordância através de um quadro exemplificativo dos seus principais pontos de contacto, Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda, Lisboa, 1959. Nota F, p. 153.

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O Sensacionismo nos vários Heterónimos

Álvaro de Campos - o que é bastante curioso - encontra-se no extremo oposto, inteiramente oposto a Ricardo Reis. No entanto, não é menos discípulo de Caeiro ou menos sensacionista propriamente dito. Aceitou de Caeiro, não o essencial e o objectivo, mas o aspecto deduzível e subjectivo da sua atitude. A sensação é tudo, afirma Caeiro, e o pensamento é uma doença. Por sensação entende Caeiro a sensação das coisas tais como são, sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma. Para Campos, a sensação é tudo, sim, mas não necessariamente a sensação das coisas como são, antes das coisas conforme sentidas. De modo que vê a sensação subjectivamente e envida todos os seus esforços, uma vez que assim pensa não para desenvolver em si a sensação das coisas como são, mas toda a casta de sensações de coisas, e até da mesma coisa. Sentir é tudo: é lógico concluir que o melhor é sentir toda a casta de coisas de todas as maneiras, ou, como diz o próprio Álvaro de Campos, “sentir tudo de todas as maneiras”. Assim, aplica-se a sentir a cidade na mesma medida em que sente o campo, o normal como sente o anormal, o mal como sente o bem, o mórbido como sente o saudável. Nunca interroga, sente. É o filho indisciplinado da sensação. Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regras clássicas. Em Álvaro de Campos, as coisas devem ser simplesmente sentidas.

Mas a origem comum destes três aspectos tão diferentes da mesma teoria é patente e manifesta.

Fernando Pessoa



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