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Ao entardecer,
debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio
que há campos em frente,
Leio até me arderem
os olhos
O livro de Cesário
Verde.
Que pena que
tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em
liberdade pela cidade.
Mas o modo como
olhava para as casas,
E o modo como
reparava nas ruas,
E a maneira como
dava pelas cousas,
É o de quem olha
para árvores,
E de quem desce os
olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas
flores que há pelos campos...
Por isso ele
tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse
bem que tinha,
Mas andava na cidade
como quem anda no campo
E triste como
esmagar flores em livros
E pôr plantas em
jarros...
Alberto Caeiro, O Guardador
de Rebanhos, Poema III, in Obras de
Fernando Pessoa, vol. I, Lello &
Irmão - Editores, Porto, 1986
Topo
Uma das personalidades
mais originais, mais renovadoras, da poesia
portuguesa do séc. XIX. Nasceu em Lisboa em
1855, oriundo duma família burguesa abastada,
e morreu no Lumiar (Lisboa), tuberculoso, em
1886. O pai era lavrador e comerciante
(possuía uma quinta em Linda-a-Pastora e uma
loja de ferragens na capital), e por estas
duas formas de actividade prática se repartiu
Cesário Verde, embora, marginalmente,
satisfizesse o gosto da leitura e da criação
poética. Chegou a frequentar por algum tempo o
Curso Superior de Letras. É nesta época (1873)
que, pela primeira vez, se publicam
composições suas (no Diário de Notícias).
Depois de 1875 a poesia de Cesário Verde
começa a revelar notável maturidade; «Num
Bairro Moderno» é de 1877, «Em Petiz» de 1878,
segundo as datas indicadas pelo autor (foram
publicados respectivamente em 78 e 79); «O
Sentimento dum Ocidental» veio a lume em 1880.
A crítica, porém, não o estimula, e Cesário
Verde, durante quatro anos, deixa de publicar,
entregando-se por inteiro à vida prática. Com
efeito, só em 1884 publica o poema «Nós»,
todavia escrito em 1881-2; nele evoca a morte
duma irmã (1872) e do irmão Joaquim Tomás
(1882). Quando morreu, não reunira ainda em
volume as suas poesias. Foi um amigo, Silva
Pinto, quem editou em 1887 o Livro de
Cesário Verde. E, embora Silva
Pinto tenha declarado «Devo a Jorge Verde - o
querido irmão do poeta - a oferta de todos os
manuscritos. Entre estes está o plano
do Livro; será fielmente executado, nas
variantes e nas supressões, em tudo», parece
mais provável que Silva Pinto tenha coligido
dispersos e autógrafos e organizado o Livro
à sua maneira, de acordo com a sua perspectiva
crítica. E assim terá dividido o Livro
em duas secções, «Crise romanesca» e
«naturais», sem respeitar a ordem cronológica
de elaboração ou de publicação.
Na primeira fase, Cesário Verde
denuncia a influência de João Penha: forma-se
na escola da gazetilha, do epigrama cínico, do
humorismo, do tratamento parodístico do amor,
em versos de musas lúbricas ou gélidas, enfim
na escola do rigor sintáctico, da precisão
parnasiana. Cedo, porém, se afirma como
personalidade inconfundível, original menos
pelo desejo de renovação que pela força da
autenticidade; traz à poesia uma lufada de ar
puro, o menos possível contaminado de
«literatura»: o seu amor do real, o que
observa em torno, o que lhe transmitem os
sentidos. Precisa da circunstância para se
«inspirar»: «A mim o que me rodeia é o que me
preocupa» - escreve ele a Silva Pinto. A sua
poesia é a dum artista plástico, enamorado do
concreto, que deambula pela cidade ou pelo
campo e descreve de modo vivo, exacto, as suas
experiências. Esta «objectividade» antilírica
da sua obra poética não impede todavia a
expressão, embora discreta, de ideias e
sentimentos que definem o homem situado:
o amor da actividade útil, saudável; o
respeito pela ciência positiva do seu tempo; a
confiança no progresso; a solidariedade com os
humildes, vítimas das injustiças sociais. Nos
versos do Conde de Monsarás, seu amigo,
aplaude «o protesto franco e salutar em favor
do povo». E, quando exalta o trabalhador,
símbolo da energia indomável do povo, os seus
versos ganham, excepcionalmente, um movimento
oratório: «Povo! No pano cru rasgado das
camisas / Uma bandeira penso que transluz! /
Com ela sofres, bebes, agonizas: / Listrões de
vinho lançam-lhe divisas, / E os suspensórios
traçam-lhe uma cruz!» (in «Cristalizações»). O
contraste entre o egoísmo dos ricos e a
miséria dos pobres é o tema que fica em
suspenso no último poema de Cesário Verde,
deixado incompleto («Provincianas»).
Muitas vezes, aliás, o poeta refere a
si próprio, espectador, imagens e sensações, e
a «objectividade» plástica alterna, em vários
passos, com a fuga imaginativa. Se é «realista»
o vocabulário do poeta, cheio de termos
concretos, alguns deles técnicos ou da
linguagem («biscate», «salmejo», «valador»,
«amoniacal», «batatal», etc.); se é analítica
a sua frase, feita de notações justapostas,
com séries de adjectivos que procuram cingir
os contornos e o oder sugestivo das coisas
(«Sobre os teus pés decentes, verdadeiros, /
As saias curtas, frescas, engomadas»); se,
mais ainda, num esforço renovador, paralelo ao
que Eça
de Queirós leva a bom termo na prosa,
Cesário tira partido de processos vincadamente
impressionistas, fazendo avultar a
sensação inicial, só depois referida ao
objecto («Amareladamente, os cães parecem
lobos») ou combinando sensações e misturando o
físico e o moral («Ombros em pé, medrosa e
fina, de luneta!»); noutros casos assistimos,
na poesia de Cesário Verde, ao jogo do «real»
e do «irreal»: os estímulos da circunstância
fazem evocar o ausente (os calafates lembram
ao poeta «crónicas navais», «soberbas naus»
que ele nunca verá; as varinas «embalam nas
canastras / os filhos que depois naufragam nas
tormentas») ou vem a imaginação transfigurar
as coisas vistas, transformar, de noite, as
lojas iluminadas em «filas de capelas» duma
enorme catedral, etc. Por breves momentos, é
certo, porque logo o poeta tem de regressar à
esfera sensorial, à «realidade» comum. E
Cesário, artista muito lúcido, com invulgar
consciência crítica (nisto reside, em parte, a
modernidade que o torna um admirável
precursor), não deixa de comandar, de
organizar estas alternativas. Apesar do
fragmentarismo itinerante, ou por detrás dele,
há em muitos poemas um plano calculado. O
princípio de organização é por vezes a
antítese reiterada, como nas últimas estâncias
de «Cristalizações», ou o simples paralelismo
de dois casos, como em «Contrariedades», onde
a compaixão «romântica» suscitada pela
costureirinha tísica é compensada, refreada
pelo contraponto do egoísmo azedo do escritor
a quem os jornais não abrem as portas.
Os ensaístas que, com mais
penetração, se têm ocupado de Cesário (David
Mourão-Ferreira, Joel Serrão) interessam-se,
de preferência, pelo binómio campo-cidade na
obra do negociante-poeta. Sob o signo de
Baudelaire, Cesário Verde deixa-se algum tempo
conquistar pelas seduções da urbe; traça
«quadros revoltados», medita «um livro que
exacerbe», queixa-se de tédio, diz amar
«insensatamente os ácidos, os gumes / E os
ângulos agudos». Tem a nostalgia dos grandes
centros: «Madrid, Paris, Berlim, S.
Petersburgo, o mundo!» Torna-se o poeta por
excelência de Lisboa, cuja figura
multifacetada descobrimos, inteira, em poemas
como «Num Bairro Moderno» e «O Sentimento dum
Ocidental» - desde a paisagem física (a Baixa
pombalina, as ruelas junto ao rio, os bairros
novos, de ruas amplas, macadamizadas) à
paisagem humana (padres, militares, altos
funcionários, burguesas e «imorais», padeiros,
vendedeiras de hortaliça, varinas, operários,
calceteiros, arlequins e mendigos), sem
esquecer as metamorfoses do ciclo das horas (a
Lisboa nocturna, com a sociedade elegante,
misérias e grotescos à luz débil do gás, e a
cidade soalhenta, garrida, laboriosa) e a
situação geográfica (os cais, os emigrantes, a
ânsia do mar desconhecido, as tradições dos
Descobrimentos). Mas já quando percorre a
cidade o poeta deixa entrever o desejo de
espaços mais amplos, dum ar mais puro, duma
vida mais sã. Em 1879 confidenciava a um amigo
residente em Paris: «Eu não faço nada, falto
de estímulos, aborrecido entre esta gente da
cidade a quem tenho raiva como a um marreco.
Ao menos, pelo campo ainda há coisas
primitivas, sinceras, e uma boa paz
regular...» A composição «Nós» documenta a
perfeita integração na vida campesina, sem
bucolismos, mas activa, saudável, natural.
Cesário prefere agora à poderosa civilização
industrial dos grandes países a lavoura e a
exportação de frutas a que se entrega de alma
e coração: antes quer «o ritmo do vivo e do
real» que «essa perfeição do fabricado».
Companheiro de Ramalho, é o poeta da Natureza
antiliterária, das coisas boas, gostosas,
cheirosas, úteis, do labor equilibrado,
produtivo. Só a morte, que lhe rouba os entes
queridos e parece ameaçá-lo também, ensombra
estes versos suculentos, viris. Dois
heterónimos de Fernando
Pessoa prolongam as duas faces da poesia
de Cesário Verde: Álvaro de
Campos o poeta citadino,
Alberto Caeiro «o camponês / Que andava
preso em liberdade pela cidade». E ambos
invocam o precursor.
Coelho, Jacinto do Prado, Dicionário de
Literatura, 3.ª edição, 4.º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979
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