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Advertência
a Folhas
Caídas
Antes que
venha o inverno e disperse ao vento essas folhas
de poesia que por aí caíram, vamos escolher uma
ou outra que valha a pena conservar, ainda que
não seja senão para memória.
A outros
versos chamei eu já as últimas recordações de
minha vida poética. Enganei o público, mas de
boa fé, porque me enganei primeiro a mim.
Protestos de poetas que sempre estão a dizer
adeus ao mundo, e morrem abraçados com o louro -
às vezes imaginário, porque ninguém os coroa.
Eu pouco
mais tinha de vinte anos quando publiquei certo
poema, e jurei que eram os últimos versos que
fazia. Que juramentos!
Se dos meus
se rirem, têm razão; mas saibam que eu também
primeiro me ri deles. Poeta na primavera, no
estio e no outono da vida, hei-de sê-lo no
inverno, se lá chegar, e hei-de sê-lo em tudo.
Mas dantes cuidava que não, e nisso ia o erro.
Os cantos
que formam esta pequena coleção pertencem todos
a uma época de vida íntima e recolhida que nada
tem com as minhas outras coleções.
Essas mais
ou menos mostram o poeta que canta diante do
público. Das Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou
bem pouco entende de estilos e modos de cantar.
Não sei se
são bons ou maus estes versos; sei que gosto
mais deles do que nenhuns outros que fizesse.
Porquê? É impossível dizê-lo, mas é verdade. E,
como nada são por ele nem para ele, é provável
que o público sinta bem diversamente do autor.
Que importa?
Apesar de
sempre se dizer e escrever há cem mil anos o
contrário, parece-me que o melhor e o mais reto
juiz que pode ter um escritor é ele próprio,
quando o não cega o amor-próprio. Eu sei que
tenho o olhos abertos, ao menos agora.
Custa-lhe a
uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem
ser Tasso, a queimar os seus versos, que são
seus filhos; mas o sentimento paterno não impede
de ver os defeitos das crianças.
Enfim, eu
não queimo estes. Consagrei-os Ignoto Deo. E o
deus que os inspirou que os aniquile se quiser:
não me julgo com direito de o fazer eu.
Ainda
assim, no Ignoto Deo não imaginem alguma
divindade meia velada com o cendal transparente,
que o devoto está morrendo que lhe caia para que
todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido
é realmente aquele misterioso, oculto e não
definido sentimento de alma que a leva às
aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de
oiro do poeta.
Imaginação
que porventura não se realiza nunca. E daí quem
sabe? A culpa é talvez da palavra, que é
abstrata de mais. Saúde, riqueza, miséria,
pobreza, e ainda coisas mais materiais, como o
frio e o calor, não são senão estados
comparativos, aproximativos. Ao infinito não se
chega, porque deixava de o ser em se chegando a
ele.
Logo o
poeta é louco porque aspira sempre ao
impossível. Não sei. Essa é uma disputação mais
longa.
Mas sei que
as presentes Folhas Caídas representam o estado
de alma do poeta nas variadas, incertas e
vacilantes oscilações do espírito , que,
tendendo ao seu fim único, a posse do ideal, ora
pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de
chagar a ele - ora ri amargamente porque
reconhece o seu engano - ora se desespera de
raiva impotente por sua credulidade vã.
Deixai-o
passar, gente do mundo, devotos do poder, da
riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende
bem disso, e vós não entendeis nada dele.
Deixai-o
passar, porque ele vai onde vós não ides; vai,
ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o
assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois
matéria.
E vós
morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em
que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta,
que é a mesma de Adão, também será punida com a
morte.
Mas não
triunfeis, porque a morte não passa do corpo,
que é tudo em vós, e nada ou quase nada no
poeta.
janeiro -
1853
topo
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Linhas de
Leitura
A
coletânea Folhas
Caídas
não é fruto de um acaso, antes o
produto de uma escolha criteriosa.
-
Qualquer
que seja a reação do público em
relação aos poemas, mesmo que de
riso, será sempre em segunda
mão, porque, primeiro, a sentiu
o próprio autor.
-
O poeta sente
a necessidade de justificar a
publicação de Folhas
Caídas (Garrett
tinha, então (1853), 54
anos de idade). Certamente que o
que queria justificar era o seu
conteúdo, por isso teve o
cuidado de advertir que, mesmo
no inverno da vida, haveria de
ser poeta «em tudo».
-
As Folhas
Caídas dizem
respeito a uma época de vida
íntima e nada são pelo público
nem para o público.
-
As Folhas
Caídas foram
inspiradas por um deus a quem o
autor as consagrou.
-
O poeta
parece pretender mistificar o Ignoto
Deo a quem consagra os
seus versos, envolvendo-o num
manto de mistério.
-
Segundo
Garrett, o poeta é louco porque
aspira sempre ao impossível.
Resta saber que impossível será
este.
-
As Folhas
Caídas «representam
o estado de alma do poeta nas
variadas, incertas e vacilantes
oscilações do espírito».
Efetivamente, dá-se conta disto
mesmo, não só de poema para
poema, mas, por vezes, ao longo
de um mesmo poema.
-
O mundo
material e o poético são
incompatíveis, mas o que
prevalece é o espírito (poesia)
e não a matéria.
-
Nos poetas,
apenas o corpo é mortal, a
poesia, não:
-
«E aqueles
que por obras valerosas / Se vão
da lei da Morte libertando»,
Camões, Os
Lusíadas, I, 2
(Proposição).
Para consultar o
Glossário de Termos Literários, clique aqui.
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Ignoto
Deo
(D. D. D.)
Creio em ti, Deus; a
fé viva
De minha alma a ti se
eleva.
És: - o que és não
sei. Deriva
Meu ser do teu: luz...
e treva,
5 Em que -
indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vêm, a ti
devolve.
O Nada, a que foi
roubado
Pelo sopro criador
10 Tudo o mais, o
há-de tragar.
Só vive do eterno
ardor
O que está sempre a
aspirar
Ao infinito donde
veio.
Beleza és tu, luz és
tu,
15 Verdade és tu só.
Não creio
Senão em ti; o olho nu
Do homem não vê na
terra
Mais que a dúvida, a
incerteza,
A forma que engana e
erra.
20 Essência! a real
beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não
gasta...
Só por ti os pode ver
O que, inspirado, se
afasta,
25 Ignoto Deo, das
ronceiras,
Vulgares turbas:
despidos
Das coisas vãs e
grosseiras
Sua alma, razão,
sentidos,
A ti se dão, em ti
vida,
30 E por ti vida têm.
Eu, consagrado
A teu altar, me
prostro e a combatida
Existência aqui ponho,
aqui votado
Fica este livro -
confissão sincera
Da alma que a ti voou
e em ti só spera.
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Linhas de
Leitura
- No presente poema, como o
testemunham o título e o seu parêntesis (D.
D. D. (dat, donat, dedicat (dá,
sacrifica, consagra))),
o sujeito poético concretiza a dedicatória
de Folhas Caídas a um deus
desconhecido (Ignoto Deo), dedicatória essa,
aliás, anunciada já na Advertência («Consagrei-os
Ignoto Deo») e confirmada nos vv
30/34;
- O poema apresenta vários
apontamentos reveladores duma conceção
platónica:
- «És: - o que és não sei», v 3 (o
verbo ser é o que melhor traduz, por
si só, qualquer essência);
- «Deriva / Meu ser do teu», vv 3/4;
- «eterno», v 11;
- «Beleza és tu, luz és tu, / Verdade
és tu só», vv 14/15 (Platão é o filósofo do
verdadeiro, do belo e do
bom eternos, conceitos de
uma realidade eterna e imutável);
- «o olho nu / Do homem não vê na
terra / Mais que (...) / A forma que engana
e erra.», vv 16/19;
- «Essência! a real beleza, / O puro
amor», vv20/21;
- «... alma que a ti voou e em ti só
spera», v 34;
- Existem, no entanto, visíveis
contradições. Inocentes? Inconscientes? Não
o creio. Em arte, nada se faz ao acaso, ou
por acaso. Vejamos algumas dessas
contradições:
- O pronome ti,
referente a Deus, encontra-se grafado com
minúscula;
- Um espírito que deriva de um
ser perfeito (vv 3/4) não deveria
manifestar-se agitado (v 6), nem envolvido
em treva (v 4);
- «De ti vêm, a ti devolve.» (v
7) - em relação ao primeiro verbo, não
existem dúvidas de que o seu sujeito é
«luz... e treva, / (...) - indistintas! -
(...)», mas, em relação ao segundo
(«devolve»), apresentam-se várias dúvidas:
- O que é que devolve ao tu?
«Este espírito agitado»? A «treva»? Ou o
singular é apenas uma liberdade poética com
o propósito de rimar com «envolve»?
- Seja como for, a «treva» ou
um «espírito agitado» são indignos de serem
devolvidos a um ser perfeito;
- «Só vive do eterno ardor / O que
está sempre a aspirar / Ao infinito donde
veio.» (vv 11/13) - a palavra «ardor» pode
sugerir desespero, ansiedade, mas não se
adequa a uma conceção platónica; ou será que
devemos conotar «ardor» com outra coisa
muito mais terrena?
- O v 28 contém três elementos
portadores, aparentemente, de contradição.
Vejamos:
- Mesmo «despidos» das
chamadas «coisas vãs e grosseiras»,
não me parece que alma e sentidos
sejam elementos conciliáveis (se o primeiro
se identifica com o mundo das ideias
preconizado por Platão, o segundo já só tem
espaço no mundo sensível do mesmo sistema
filosófico (mundo terreno));
- Sendo assim, não faz sentido
que o sujeito poético afirme que os sentidos
se dêem ao tu, e tenham
vida no tu (o mundo
sensível tem vida no mundo das ideias?!) e
para o tu (esta
contradição é apenas mais uma que deita por
terra a pretensa conceção platónica de que
pretende ser uma profissão de fé o presente
poema);
- E quanto à razão? A
que razão se refere o sujeito poético? À do
racionalismo do séc. XVII, expressão de uma
suposição metafísica e religiosa, pela qual
se faz de Deus a suprema garantia das
verdades racionais e, por consequência, o
último argumento de um universo concebido
como inteligível? À do racionalismo do séc.
XVIII (que antecede o Romantismo), que
entende a razão como um instrumento com o
qual o homem, integrando a experiência e a
ação moral e social, poderá libertar-se
progressivamente da obscuridade que o
rodeia? Ou à razão que, segundo Platão,
permitia ascender ao mundo das ideias e
residia na alma? Se se tratar desta última,
alma e razão não são
elementos portadores de contradição;
- O sujeito poético atesta que Folhas
Caídas são uma confissão sincera da
alma (vv 33/34). Pessoalmente, não tenho
tanta certeza assim. Apesar do autor ter
advertido para o facto das presentes folhas
caídas resultarem do
«estado de alma do poeta nas
variadas, incertas e vacilantes
oscilações do espírito», não nos
devemos esquecer de que estamos diante
de um homem de teatro. E, antes dos
atores representarem em palco, o
primeiro a fazê-lo é sempre o dramaturgo
no ato da escrita. A seleção criteriosa
das folhas que apanhou, antes
que as levasse o vento, e a forma como
as ordenou em livro são um ato de
consciência. Aliás, a leitura de Folhas
Caídas evidencia, diria que até à
exaustão, uma teatralidade que põe em
dúvida a sinceridade da confissão
anunciada. E ainda não se sonhava o
nascimento de Fernando Pessoa...
- Espero
que os leitores, com os poemas que se
seguem, verifiquem que, afinal, este Igono
Deo é um deus bem mais terreno do
que pretenderá fazer crer a intenção do
poeta, quer no presente poema, quer na Advertência.
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Adeus
Adeus! para sempre adeus!
Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora
Sinto a justiça dos céus
Esmagar-me a alma que chora.
5 Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu... tu nada perdeste;
Que este mau coração meu
10 Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.
Oh! vai... para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos céus.
15 Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
20 Há-de sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.
Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
25 Que sou eu capaz agora
De te amar - Ai! se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal!
30 Mais negro e feio no inferno
Não chameia o fogo eterno.
Que sim? Que antes isso? - Ai, triste!
-
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
35 O cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!
E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
40 Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
45 Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás... sim, hás-de amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh! mas noutro hás-de sonhar
50 Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.
E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
55 Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar... Perdida,
60 Perdida serás - perdida.
Oh! vai-te, vai, longe embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai! não;
E que pude a sangue-frio,
65 Covarde, infame, vilão,
Gozar-te - mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime... Ai! triste, não chores,
70 Não chores, anjo do céu,
Que o desonrado sou eu.
Perdoar-me tu?... Não mereço.
A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
75 Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
80 Mas indulgente... Oh! o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.
Vai, vai... para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
85 Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
90 Demais, e demais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
95 Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
100 Como é negro este aleijão
Donde me vem sangrar às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
105 Nele uma ideia dos céus...
Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!
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Linhas de
Leitura
-
Convém, desde
já, alertar os leitores para o seguinte
aspeto: em Folhas Caídas, o
poeta faz uma dedicatória no primeiro
poema da coletânea (Ignoto Deo)
e, de imediato, apresenta a despedida no
segundo (Adeus!).
Seguem-se, então, as restantes "folhas
caídas", nas quais, numa espécie de
analepse narrativa, nos dá conta de um
caminho percorrido por duas personagens (eu
e tu) que as conduziu ao
momento do adeus;
-
Este poema
inicia-se e termina com uma alusão nítida
ao momento presente («Adeus!
para sempre adeus!», v 1; «Oh!
vai, vai; deixa-me, adeus!», v
106), recordando o passado que o
justificará («...não te amei, / ... o
amor que me tiveste;», vv 5/6) e
perspetivando o futuro, futuro esse que
não passará pelo sujeito poético («...serás
vingada», v 20; «... Agora /
Amarás... sim, hás-de amar, / Amar
deves... Muito embora... / Oh! mas
noutro hás-de sonhar / Os sonhos de oiro
encantados / Que o mundo chamou amores.»,
vv 46/51);
-
O sujeito
poético dirige-se ao tu
para que se vá embora por, alegadamente,
sentir «a justiça dos céus»
esmagar-lhe «a alma que chora»
(vv 3/4). E chora por não ter retribuído o
amor que o tu lhe
devotou. Por isso, o tu
nada perde: não se pode perder o que se
não tem (vv 5/8);
-
O mal é
atribuído aos venenos secretamente
escondidos no seu coração (vv 9/12), mas
este, que deveria ser o lugar privilegiado
do amor e, pelo contrário, só contém os
tais venenos, por «justiça dos céus»,
será destruído pela própria víbora que
nele é gerado (vv 14/19);
- Transcrevo,
a
propósito, o último poema (XXV) do Livro
Primeiro de Folhas Caídas:
VÍBORA
Como a víbora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que à nascença o espedaçou.
Para ele nascer morri;
E em meu cadáver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.
-
É esta, nas
palavras do sujeito poético, uma justiça
com carácter de vingança (v 20), e o
castigo será o ciúme e o remorso (vv
22/23). Talvez valha a pena colocar duas
questões:
- Será lícito o sujeito poético
falar em castigo (v 21), se já havia
declarado não amar o tu (v
5)?
- Será de crer na autenticidade
dum ciúme por alguém que se não ama? Ou
tratar-se-á duma frustração que advém da
tomada de consciência do vazio que resulta
da perda dum objeto de prazer?
-
A 3ª estrofe
inicia-se com um apelo reiterativo (já
havia acontecido no início da 2ª estrofe)
no sentido de que o tu
parta, com a alegação de que o eu
será capaz de o amar «agora»,
sentimento de fraca convicção, conforme a
interjeição e frase condicional e
exclamativa que se lhe segue (v 26);
-
Diante de tal
possibilidade, o sujeito poético compara
esse amor a um «incêndio fatal»
que se ateasse a um «árido pragal»:
seria mais negro e mais feio que o eterno
fogo do inferno (vv 27/31);
-
Apesar disso, o
tu responde que sim
(ouvimos as suas palavras nas perguntas de
retórica do sujeito poético (v 32)), já
que ainda o ama (uma vez mais, são as
palavras do tu que
ouvimos na pergunta de retórica (v 38));
-
O sujeito
poético não quer crer em tal, profetizando
que o amor do tu passará
por outro (vv 46/51);
-
« E eu
réprobo... eu se o verei?» (v 52)
A resposta está contida nos versos
imediatos: seus olhos encovados (notar que
«encovados» contém a
palavra cova, o que
sugere um sentimento, por parte do eu,
de proximidade em relação à morte) cegarão
com a luz de seus ardores (os ardores
próprios dos «sonhos de oiro
encantados / Que o mundo chamou amores»
e que noutro há-de sonhar (vv 49/51)), daí
que não resista à imprecação
reiterativamente repetida nos vv 59/60: «Perdida,
/ Perdida serás - perdida.»
-
«Que te
lembre sempre e agora / Que não te amei
nunca...» (vv
62/63). Poderiam parecer
palavras de vingança, não fossem os termos
condenatórios dirigidos contra si próprio
(«E que pude a sangue frio, / [...] /
Gozar-te - mentir [...] / Cometendo em
cada beijo / Um crime...» (vv
64/69)), considerando-se, por isso, «Covarde,
infame, vilão» (v 65) e, mesmo,
perante as lágrimas do tu,
criminoso (v 69) e «desonrado» (v
71);
-
Ouvimos, uma
vez mais, na pergunta de retórica (v 71),
as palavras de perdão do tu,
mas o sujeito poético considera que o
perdão seria como deitar pérolas a porcos
(vv 73/75) - note-se, a propósito, o
registo próximo da expressão popular;
-
É de notar a
passagem dum registo de 1ª pessoa (v 72)
para um de 3ª (é, sua, há-de (vv
75/78)), uma forma de anulação do eu,
tanto mais de considerar, quanto o faz
através da figura do vilão (v
81) e do cerdo (porco (v 73));
-
O sujeito
poético recusa o perdão do tu,
preferindo a sua ira e o seu despeito (vv
78/82);
-
Ao sujeito
poético faltam já os olhos («encovados»,
recordo) e a razão com que possa ver e
entender o clarão da «divina estrela»;
por isso, «Que
volte a sua beleza / Do azul do céu à
pureza» e que o deixe nas trevas em
que nasceu (vv 95/98);
-
A dificuldade
reside, pois, nas seguintes dicotomias:
ver / não ver; luz / trevas; céu / terra
(vv 87/105);
-
Note-se
ainda o seguinte:
- É o eu que
se dirige ao tu para que o
deixe, não tomando ele próprio a iniciativa
de abandonar o tu (vv 2,
13/14, 24, 61, 83, 106);
- Apesar de tudo, o tu
prefere o «incêndio fatal»
comparado ao fogo eterno do inferno (vv
27/33);
- Poder-se-á, pois, assistir, a
um conflito insolúvel que, tal como na
tragédia, conduz à catástrofe, neste caso, o
facto do tu não sair da
vida do eu, não lhe devolvendo a paz
desejada (lembremo-nos de Este Inferno
de Amar), donde o último apelo: «Oh!
vai, vai; deixa-me,
adeus!» (v 106) - É razão para
perguntar: tê-lo-á deixado?
- A hybris
(desafio) consistiu no facto da «divina
estrela» se atrever a descer à
terra (vv 86, 95/96, 105) e o elemento das
trevas (v 98), «em
má hora» ousar fitá-la (v 92).
- Algumas figuras de estilo: apóstrofe
(vv 1/2, 13/14, 24, 61, 106); metáfora
(vv 4, 10/11, 15, 17, 19, 27/29, 35, 37, 43,
45/46, 50, 54/55, 73/74, 86, 98, 104); antítese
(vv 5/6, 89/91); anáfora
(vv 5/6, 19/20, 66/67, 102/103); reiteração
(vv 2, 13/14, 19/20, 24, 61, 69/70, 83,
106); comparação (vv
30/31; 99/100); pergunta
de retórica (vv 32, 38, 52, 55,
72); anástrofe (v 29); hipérbato
(vv 27/29); hipálage (v
41); anadiplose (vv
47/48); adjetivação (mau,
secretos, daninhos, ulcerado, medonha, fatal
(vv 18, 29), árido, negro, feio, eterno,
impaciente, morta, finda, dissipada, meigo,
celeste, encantados, réprobo, encovados,
feliz, perdida, covarde, infame, vilão,
desonrado, imundo, voraz, bruta, irada,
despeitosa, indulgente, perdido, sumido,
divina, alta, bela, baixo, má, falso, vil,
negras, densas, feias, negro);
-
Algumas características
românticas:
tom confessional; uma certa teatralidade;
introdução do tema do ciúme; alusão ao
amor sensual; presença da mulher-anjo;
alusão ao inferno.
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O
anjo caído
Era um anjo de Deus
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
5 Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.
O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
10 Do tirano caçador.
De asa morta e sem splendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.
15 Vi-o eu, o anjo dos céus,
O abandonado de Deus,
Vi-o, nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
20 Pôr ao lábio que tremia...
E só lágrimas beber.
Ninguém mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que já não posso amar!
25 Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Loucura! ai, cega loucura!
Mas entre os anjos dos céus
30 Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo,
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
35 Se ninguém o conhecia?
Eu só, - e eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Cravei-a eu nessa cruz
40 Minha alma que renascia,
Que toda em sua alma pus,
E o meu ser se dividia,
Porque ela outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
45 Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi,
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.
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Linhas
de Leitura
Em relação a este
poema, queria, sobretudo, chamar a atenção
para as suas características narrativas:
-
Modelo actancial de Greimas
-
Modelo de ação categorial de
Genette
-
ação:
perdera (dos céus); voava (terra a
terra); partira (a seta do arco
traidor); caiu (ferido); viu-se
rendido; peregrinando, andou gemendo
e chorando; vi-o (beber lágrimas da
taça do prazer); tremia (o lábio);
não posso amar; salvar; fora a
enterrar; remi-lo; resgatá-lo;
salvá-lo (da infâmia); cravar (na
cruz); pôr (uma alma noutra alma);
perder (o ser); não volver (à vida);
morrer.
-
Espaço:
terra a terra; vales de dor;
tropelia (que o mundo chama alegria
(espaço social mundano)); sepultura;
céu.
-
Tempo:
Passado indeterminado, patenteado
pelas formas verbais (era, perdera,
acertava,partira, levava, eram,
caiu, viu, andou, vi, tremia,
conhecia, havia, fora, faltava,
podia, tive, cravei, renascia, pus,
dividia, tinha, conheci, perdi,
volveu, morri, morreu), narrado num
tempo presente, explícito no texto
(«Eu que já não posso amar!»).
-
Personagens:
o anjo caído e o tirano caçador, que
se identifica com o narrador.
-
Narrador:
com uma presença homodiegética,
começa por adotar uma focalização
externa, testemunhal, terminando com
um estatuto omnisciente.
-
Modo
de narrar os acontecimentos:
sério, de forma distanciada por
vezes e, por outras, de forma
emotiva, consoante o estatuto
apontado anteriormente.
-
Título:
O Anjo Caído, título
que, como elemento de ancoragem,
como que antecipa já o desfecho da
ação.
-
Enquadramento
classificativo
segundo outros autores
-
Segundo a
tipologia de Werlich,
estamos perante um texto do tipo
narrativo, pois a perceção
no tempo é-nos facultada pelos
tempos verbais (embora se verifique
uma certa abundância do pretérito
imperfeito, ainda assim o pretérito
perfeito e o mais-que-perfeito
dominam).
-
Considerando
a
tipologia de Lita Lundquist,
construída a partir das funções da
linguagem, deparamo-nos com uma forma
de representação narrativa, na
qual a função dominante é a referencial,
embora, nos momentos em que o
narrador se assume como personagem,
seja visível, igualmente, a função emotiva
e aquilo a que se poderá chamar uma
sequência com representação
expressiva.
- Tendo em conta ainda a
proposta de Jakobson, baseada
na função da linguagem que exerce o
papel de subdominante, (a
função dominante, segundo a
sua conceção de literariedade, é a poética),
concluímos, de igual modo, que estamos
perante um texto narrativo, já que
função subdominante, como já
vimos, é a referencial.
-
Transformação do
texto
MODELO
POSSÍVEL
Era
[ uma vez] um anjo de Deus que se perdera
dos céus e voava de terra em terra. [
Atingido por uma seta] - seta de arco
traidor, porque as penas que levava não
eram penas de amor - o anjo caiu ferido e
viu-se rendido aos pés do tirano caçador.
[
Assim] , de asa morta e sem esplendor,
andou o triste gemendo e chorando,
peregrinando por estes vales de dor. Vi-o
eu, o anjo dos céus, o abandonado de Deus,
nessa tropelia [ a] que o mundo chama
alegria, pôr a taça do prazer ao lábio que
tremia e só lágrimas beber... [ E] ninguém
mais na terra o via, [ pois] só eu o
conhecia... Eu que já não posso amar! Quem
no havia de salvar? Eu que, numa
sepultura, me fora vivo [ a] enterrar?
Loucura! ai, cega loucura! (Mas) [
E] entre os anjos dos céus, faltava um ao
seu Deus, um que só força de amor podia
remir e resgatar, salvar daquela infâmia.
[ Mas] quem desse amor o havia de
amar, se ninguém o conhecia? Eu só. E eu
morto, eu descrido, tive o arrojo atrevido
de amar um anjo sem luz.
E porque sua
alma outra alma não tinha, outra alma a
não ser a minha, cravei a minha nessa
cruz, a minha que renascia, pondo-a toda
na sua, e o meu ser se dividia... [ Era
já] tarde, [ quando] o conheci, porque eu
o meu ser perdi, e ele à vida não
volveu... Mas da morte que eu morri também
o infeliz morreu.
-
Algumas
características
românticas: o mito do paraíso
perdido (Milton, The Paradise Lost);
o mito da mulher-anjo (vítima do tirano
caçador); transgressão
às regras dos modos literários (hibridismo
que resulta da presença de características
líricas e narrativas).
|
|
Este
inferno de amar
Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
5 Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?
Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
10 Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
15 E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...
|
Linhas
de Leitura
-
Este
poema, cujo tema gira à volta
das contradições do amor,
apresenta dois momentos com
características diferentes:
-
a
primeira estrofe, que
reflete a expressão de um eu num
tempo presente e, por
isso, dentro dos cânones
próprios do modo lírico;
-
as
duas
últimas estrofes, com
características narrativas
(algumas categorias da
narrativa: narrador
autodiegético (narrador na
1ª pessoa e personagem
principal); personagens (eu;
ela); espaço (algures);
tempo (o passado; a outra
vida; um dia formoso) ação
(vivi; dormi; vir despertar;
passei; dava... luz; meus
olhos... giravam; pus; que
fez ela?; eu que fiz?)), que
lembram o passado; este
passado, porém, evoca duas
temporalidades diferentes:
-
O sujeito
poético declara, logo no 1º verso e duma
forma aparentemente hiperbólica, viver um
«inferno de amar»; na sequência
desta confissão, formula duas perguntas de
retórica:
-
Ao recordar a
paz serena do passado mais longínquo,
estabelece nova pergunta de retórica:
-
O poeta só não
encontra a resposta para a pergunta do 6º
verso, já que, apesar das contradições
evidenciadas ao longo do poema, acaba por
identificar quem lhe pôs o inferno na alma
e quem o despertou do doce sonhar;
-
O sujeito
poético manifesta, como referi em 4.,
algumas contradições ao longo do poema:
-
«Esta
chama que alenta e consome,
Que é vida - e que a vida destrói -»
(vv 3/4);
-
«Eu não
sei, não me lembra...» (v 7) - no entanto, conta
como era o passado antes de a
conhecer;
-
«era um
sonho talvez... - foi um sonho -»
- a dúvida cede o lugar
à certeza (a mudança do aspeto verbal,
que deriva da passagem do pretérito
imperfeito do indicativo (reforçado
pela presença do advérbio de dúvida, talvez)
ao pretérito perfeito, é
determinante);
-
«Só me
lembra que...»
(v 13) - relato do que aconteceu e que
lhe mudou, por completo, a vida
(afinal, sabe ou não sabe, lembra-se
ou não se lembra?);
-
«Que
fez ela? eu que fiz? - não no sei»
(v 17) - não sabe e
afirma ter começado a viver, nesse
momento, um «inferno
de amar»!;
-
Pode-se, por
isso, especular sobre a sinceridade ou
fingimento do sujeito poético;
-
«Mas nessa
hora a viver comecei...
Este inferno de amar - como eu amo! -
(...)»
-
Conclui-se
que, apesar da serenidade e da paz que
sentia antes de a conhecer, o sujeito
poético considera esse tempo como uma
coisa irreal (sonho (v 9), dormi
(v 10), sonhar (v 11), despertar
(v 12)), isto é, ausência de vida;
pelo contrário, vida, para si, é o «inferno
de amar» que começou a viver;
-
Este amor,
gerador de conflitos, é o amor sensual
que, aliás, perpassa por toda a obra; por
sua vez, a terceira pessoa (no caso
presente, ela),
de que o sujeito poético se apresenta como
vítima, corporiza a mulher fatal;
-
Algumas figuras
de estilo: metáfora (v
1, vv 3/4, v 5, v 6, v 9, v 11, v 12); perguntas
de retórica (v 2, v 6, v 12); oximoro
(vv 3/4); antítese (vv
5/6, v 9, vv 10/12); paradoxo
(v 7/v 13); adjetivação
(serena, doce, formoso, vagos, ardentes);
-
Característica
românticas:
tom confessional; indícios da mulher
fatal; alusão ao inferno (ainda que em
sentido metafórico); tom teatral; oposição
amor espiritual/amor sensual; transgressão
às regras dos modos literários (hibridismo
que resulta da presença de características
líricas e narrativas).
|
|
Gozo
e dor
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
- Não. Ai não; falta-me a vida;
5 Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.
Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
10 Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
15 Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida - ou a razão.
|
Linhas
de Leitura
-
O presente
poema apresenta características de uma
encenação dramática que, aliás, é também
visível noutros poemas como, por exemplo,
Adeus!: quem não vê a presença e
não ouve a fala do tu?
Não são os três primeiros versos, que
incluem uma apóstrofe (querida),
a repetição das suas palavras?
-
Contendo já a
1ª estrofe a resposta à pergunta do tu
(vv 4/6), o poema desenvolve-se nas
restantes estrofes numa espécie de
justificação dessa mesma resposta;
-
Apesar da «imensa
ternura» e da plenitude de amor
proporcionada pelo tu, o
sujeito poético confessa que não está
contente, alegando que a alma não resiste
a tal plenitude (vv 5/6);
-
Ao contrário do
que acontece em Este inferno de amar
- como eu amo! - (ver), o sujeito
poético confessa faltar-lhe a vida (v 4);
-
Assim, à
plenitude facultada pelo tu,
opõe-se o vazio sentido pelo eu;
-
Este vazio
resulta do excesso paradoxal anunciado no
6º verso e que justifica o próprio título
(Gozo e Dor);
-
À ventura
anunciada no 5º Verso, opõe-se «a
tristeza / vaga, inerte e sem motivo»
que lhe pousou no coração (vv 7/9);
-
Uma vez mais, o
sujeito poético manifesta uma certa
instabilidade e indefinição (vv 10/12),
para o que devemos estar preparados desde
o momento em que lemos a Advertência;
-
O que invade o
coração do eu é um «gozar
sem fim», expressão de um amor
sensual que não lhe alimenta a vida,
apesar da beleza do tu
(vv10/12) e da «imensa ternura»
e do «amor» mencionados nos vv
2/3;
-
Aparentemente,
o sujeito poético parece vítima do
fascínio do tu, de que
resultará a perda da vida ou da razão (vv
17/18);
-
No entanto, e
apesar de tremer e delirar por força desse
«gozar sem fim» (v 16), o
fascínio do tu não é
assim tão dominador de forma a impedir
totalmente o sujeito poético de reflectir
(«Não sei se ... ou se» (v 11); «Porque...»
(v 12); «Ou... ou...» (v 18));
-
Algumas figuras
de estilo: apóstrofe (v
1); adjetivação
(contente, imensa, vaga, inerte,
delirante); paradoxo (v
6); antítese (vv 5/7, v
11); metáfora (v 9); hipérbole
(toda a 3ª estrofe);
-
Características
românticas:
tom confessional e intimista; indícios da
mulher fatal; oposição amor
espiritual/amor sensual; características
de poesia de alcova, como lhe chamou
António José Saraiva; uma certa
teatralidade.
|
|
Perfume
da rosa
Quem
bebe, rosa, o perfume
Que de
teu seio respira?
Um
anjo, um silfo? ou que nume
Com
esse aroma delira?
5 Qual é o deus que, namorado,
De seu
trono te ajoelha,
E esse
néctar encantado
Bebe
oculto, humilde abelha?
-
Ninguém? - Mentiste: essa frente
10 Em languidez inclinada,
Quem
ta pôs assim pendente?
Dize,
rosa namorada.
E a
cor de púrpura viva
Como
assim te desmaiou?
15 e essa palidez lasciva
Nas
folhas quem ta pintou?
Os
espinhos que tão duros
Tinhas
na rama lustrosa,
Com
que magos esconjuros
20 Tos desarmam, ó rosa?
E
porquê, na hástea sentida
Tremes
tanto ao pôr do sol?
Porque
escutas tão rendida
O
canto do rouxinol?
25 Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te
na folhagem?
Nas
águas desse retiro
Não
espreitei a tua imagem?
Não a
vi aflita, ansiada...
30 - Era de prazer ou dor? -
Mentiste,
rosa, és amada,
E
também tu amas, flor.
Mas
ai! se não for um nume
O que
em teu seio delira,
35 Há-de matá-lo o perfume
Que
nesse aroma respira.
|
|
|
Os
cinco sentidos
São belas - bem o sei, essas estrelas,
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para
elas:
Em
toda a natureza
Não
vejo outra beleza
Senão
a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
Não
oiço a melodia,
Nem
sinto outra harmonia
Senão
a ti - a ti!
Respira - n'aura que entre as flores
gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não
aspira,
Não
percebe, não toma
Senão
o doce aroma
Que
vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos
meus desejos
Estão...
mas é de beijos,
É só
de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me
deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir
outras carícias,
Tocar
noutras delícias
Senão
em ti! - em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos
num confundidos,
Sentem,
ouvem, respiram;
Em ti,
por ti deliram.
Em ti
a minha sorte,
A
minha vida em ti;
E
quando venha a morte,
Será
morrer por ti.
|
Linhas
de Leitura
-
O presente
poema, como o próprio título deixa
antever, transborda de erotismo, sendo
este apresentado numa gradação crescente
de sensualidade;
-
O processo
gradativo utilizado por Garrett é idêntico
ao que utilizou Camões para a apresentação
descritiva da Ínsula Divina (Ilha
dos Amores) n' Os Lusíadas: vista
(sentido menos sensual, porque pode ser
utilizado à distância), ouvido
(embora percetível à distância, implica
maior proximidade), olfato (requer
quase o contacto físico), gosto e
tato (ambos só possíveis através do
contacto físico);
-
Em cada uma das estrofes, o
sujeito poético enquadra o tu no
seio de elementos da natureza, em relação
aos quais percecionamos uma comparação,
com a qual o mesmo tu é sublimado
num processo de exclusividade:
-
estr. I: estrelas, flores;
-
estr. II: rouxinol;
-
estr. III: incenso de perfume agreste;
-
estr. IV: pomos saborosos, racimo de néctar;
-
estr. V: relva luzidia;
-
Na estr. I, o tu
surge no seio de estrelas e de
flores (essas é um deítico
demonstrativo que indica o espaço em que
se encontra o recetor (tu)),
mas, apesar da beleza de umas e das mil
cores das outras, o sujeito poético apenas
tem olhos para uma única estrela e uma
única flor, o tu;
Nota:
sabe-se, pelos estudos dos seus biógrafos,
que Almeida Garrett, à época, mantinha
relações de afinidade com Rosa Montufar,
baronesa da Luz. Acontece que a estr. I
contém um elemento que irradia luz
(estrelas) e um hiperónimo de rosa
(flores) que sugerem a pessoa a quem é
dedicado o poema;
-
Na estr. II,
apesar do trinar melodioso e divino do
rouxinol, o sujeito poético não sente
harmonia senão na voz do tu;
-
Na estr. III, a
brisa que sopra entre as flores (uma vez
mais este elemento) exala um «incenso
de perfume agreste», mas também este
não é sentido, uma vez que o olfato do
sujeito poético apenas perceciona «o
doce aroma» que se liberta do tu;
- Na estr. IV, são introduzidos
elementos que requerem o sentido do gosto:
os formosos pomos saborosos e o racimo
de néctar (que é um mimo).
Deve-se prestar atenção aos seguintes
aspetos:
-
Na
estr. V, a macia relva luzidia (metáfora
do corpo) em que o sujeito poético se
deita evoca o sentido do tato, traduzido
nas carícias e noutras
delícias;
-
Não
poderia o poeta ter terminado este poema
erótico de melhor maneira. Depois da
gradação crescente com que apresenta cada
um dos sentidos, junta-os, numa sinestesia
total, na última estrofe. Atente-se no
seguinte:
-
A
assonância do [i], que
prolifera em todo o poema, com
particular realce na última estrofe,
sugere sons que se assemelham a gemidos;
-
Cada
uma das cinco primeiras estrofes é
constituída por três versos
decassilábicos (heroicos: acentuação
rítmica na 6ª e 10ª sílabas ) e por
três hexassílabos (também chamados
quebrados do heroico) que conferem, na
segunda metade da estrofe, um ritmo
mais acelerado;
-
Na
última estrofe, a tal em que, de uma
forma sinestésica, todos os sentidos
se confundem num só, apenas o primeiro
verso é decassilábico: todos os
restantes são hexassílabos (6 sílabas
métricas), proporcionando um ritmo
bastante acelerado que sugere o clímax
dum orgasmo («Em ti, por ti,
deliram»).
-
Algumas figuras de estilo: apóstrofe
(v 3); adjetivação
(belas, divinais, divina, saudosa, densa,
umbrosa, celeste, agreste, doce, formosos,
saborosos, sequiosos, famintos, macia,
luzidia); metáfora (vv
19, 20, 21, 22, 25/26); aliteração
(referida em 7.); assonância
(referida em 7. e em 9.); sinestesia
(referida em 9.);
-
Características
românticas:
tom confessional e intimista; amor
sensual; características
de poesia de alcova, como lhe chamou
António José Saraiva; uma certa
teatralidade; a morte por amor, ainda
que no plano metafórico, tão ao gosto
dos românticos.
|
|
Cascais
Acabava
ali a terra
Nos
derradeiros rochedos,
A
deserta, árida serra
Por
entre os negros penedos
5 Só deixa viver mesquinho
Triste
pinheiro maninho.
E os
ventos despregados
Sopravam
rijos na rama,
E os
céus turvos, anuviados,
10 O mar que incessante brama...
Tudo
ali era braveza
de
selvagem natureza.
Aí, na
quebra do monte,
Entre
uns juncos malmedrados,
15 Seco o rio, seca a fonte,
Ervas
e matos queimados,
Aí
nessa bruta serra,
Aí foi
um céu na terra.
Ali
sós no mundo, sós,
20 Santo Deus! como vivemos!
Como
éramos tudo nós
E de
nada mais soubemos!
Como
nos folgava a vida
De
tudo o mais esquecida!
25 Que longos beijos sem fim,
Que
falar dos olhos mudo!
Como
ela vivia em mim,
Como
eu tinha nela tudo,
Minha
alma em sua razão,
30 Meu sangue em seu coração!
Os
anjos aqueles dias
Contaram
na eternidade:
Que
essas horas fugidias,
Séculos
na intensidade,
35 Por milénios marca Deus
Quando
as dá aos que são seus.
Ai!
sim, foi a tragos largos,
Longos,
fundos, que a bebi
Do
prazer a taça: - amargos
40 Depois... depois os senti
Os
travos que ela deixou...
Mas
como eu ninguém gozou.
Ninguém:
que é preciso amar
Como
eu amei - ser amado
45 Como eu fui; dar, e tomar
Do
outro ser a quem se há dado,
Toda a
razão, toda a vida
Que em
nós se anula perdida.
Ai,
ai! que pesados anos
50 Tardios depois vieram!
Oh!
que fatais desenganos,
Ramo a
ramo, a desfizeram
A
minha choça na serra,
Lá
onde se acaba a terra!
55 Se o visse... não quero vê-lo
Aquele
sítio encantado;
Certo
estou não conhecê-lo,
Tão
outro estará mudado,
Mudado
como eu, como ela,
60 Que a vejo sem conhecê-la!
Inda
ali acaba a terra,
Mas já
o céu não começa;
Que
aquela visão da serra
Sumiu-se
na treva espessa,
65 E deixou nua a bruteza
Dessa
agreste natureza.
|
|
|
Estes
sítios
Olha
bem estes sítios queridos,
Vê-os
bem neste olhar derradeiro...
Ai! o
negro dos montes erguidos,
Ai! o
verde do triste pinheiro!
5 Que saudade que deles
teremos...
Que
saudade! ai, amor, que saudade!
Pois
não sentes, neste ar que bebemos,
No
acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se
alma a tragar liberdade
10 E a crescer de inocência e vigor!
Oh!
aqui, aqui só se engrinalda
Da
pureza da rosa selvagem,
E
contente aqui só vive Amor.
O ar
queimado das salas lhe escalda
15 De suas asas o níveo candor,
E na
frente arrugada lhe cresta
A
inocência infantil do pudor.
E oh!
deixar tais delícias como esta!
E
trocar este céu de ventura
20 Pelo inferno da escrava cidade!
Vender
alma e razão à impostura,
Ir
saudar a mentira em sua corte,
Ajoelhar
em seu trono à vaidade,
Ter de
rir nas angústias da morte,
25 Chamar vida ao terror da verdade...
Ai!
não, não... nossa vida acabou,
Nossa
vida aqui toda ficou
Diz-lhe
adeus neste olhar derradeiro,
Dize à
sombra dos montes erguidos,
30 Dize-o ao verde do triste pinheiro,
Dize-o
a todos os sítios queridos
Desta
rude, feroz soledade,
Paraíso
onde livres vivemos,
Oh!
saudades que dele teremos,
35 Que saudade! ai, amor, que saudade!
|
Linhas
de Leitura
-
«[...] a
poesia romântica está cheia de vida
partilhada, vivida a dois: a
recordação do sítio onde se viveu
[...]», António José Saraiva, "A
Expressão Lírica nas Folhas Caídas", in
Para a História da Cultura em
Portugal
-
O presente texto
fala da despedida e da saudade duma vida
paradisíaca a dois que se acabou (vv 2,
5/6, 26);
-
O sujeito poético
convida o tu a olhar «bem»,
pela última vez, «os sítios
queridos» em que viveram (cf. v
33), manifestando a saudade que deles
terão. Deve-se notar, desde já, o
seguinte:
-
Tratando-se
de uma paisagem paradisíaca, ela é
transfigurada pelo estado de
espírito do sujeito poético, de tal
modo que o «negro dos montes»
sugere já um estado de luto e o
verde do pinheiro, que poderia
simbolizar a esperança, desvanece-se
completamente através da
personificação que o torna «triste»
(v 4);
-
O ponto de
exclamação presente no v 10 traduz uma
pergunta de retórica iniciada no v 7;
-
Entre os versos
11 e 17, é estabelecida uma comparação
entre aquele espaço paradisíaco (símbolo
de pureza (v 12), e de felicidade (v
13)) e o espaço social (símbolo da perda
da candura (vv 14/15), e da inocência e
do pudor (vv 16/17));
-
Na sequência
desta comparação, o sujeito poético
deixa transparecer a angústia que
resulta do abandono de tal paraíso a
caminho do «inferno da escrava
cidade» (vv 18/20), sede da
impostura (v 21), da mentira (v 22), da
vaidade (v 23) e da hipocrisia (vv
24/25);
-
Esta oposição
campo/cidade evidencia o mito de
Rousseau tão querido dos românticos,
como, aliás, também se verifica em Viagens
na Minha Terra;
-
Por isso, o que,
antes, era um paraíso transforma-se,
agora, numa paisagem sombria e triste
(vv 29/30);
-
Conclui-se,
assim, que a natureza (caracterizada de
forma positiva) é o espaço privilegiado
do amor, enquanto a cidade
(caracterizada de forma negativa,
sobretudo o seu espaço social (mundano))
é exatamente o contrário, isto é,
propicia a ausência do mesmo amor;
-
Algumas figuras
de estilo: apóstrofe
(vv 1/2, 6/7, 28/31, 35); adjetivação
(queridos, derradeiro, erguidos, triste,
acre, agreste, selvagem, contente,
queimado, níveo, arrugada, infantil,
escrava, rude, feroz, livres); personificação
(vv 4, 30); antítese
(vv 4, 16/17, 19/20, 24); reiteração
(vv 5/6, 11, 34/35); metáfora
(vv 7, 9, 10, 11, 14, 16, 19, 20, 21,
22, 23); metonímia (v
13); pleonasmo (v 15);
paradoxo (v 25); anáfora
(vv 29/31);
-
Algumas
características românticas: o
mito de Rousseau; a transfiguração da
natureza de acordo com o estado de
espírito do sujeito poético (um locus
amoenus que se transforma em locus
horrendus); um certo tom
declamatório;
-
Note-se, no
entanto, a presença de um elemento
mitológico (Amor,
filho de Vénus(v 13)), talvez uma
reminiscência da formação
neoclássica de Garrett.
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Não
te amo
Não te amo, quero-te: o amar vem
d’alma.
E eu
n’alma - tenho a calma,
A
calma - do jazigo.
Ai!
não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a
vida - nem sentida
A
trago eu já comigo.
Ai,
não te amo, não!
Ai! não te amo, não; e só te quero
De um
querer bruto e fero
Que o
sangue me devora,
Não
chega ao coração.
Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó
bela.
Quem
ama a aziaga estrela
Que
lhe luz na má hora
Da sua
perdição?
E quero-te, e não te amo, que é
forçado,
De
mau, feitiço azado
Este
indigno furor.
Mas
oh! não te amo, não.
E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de
mim tenho espanto,
De ti
medo e terror...
Mas
amar!... não te amo, não.
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Linhas
de Leitura
«Há três espécies
de mulheres neste mundo: a mulher que se
admira, a mulher que se deseja, a mulher
que se ama.», Viagens na
Minha Terra, Carlos.
-
Comecemos
por verificar alguns aspetos de uma
certa irregularidade métrica:
-
Cada uma das
estrofes é constituída por um
primeiro verso mais
longo (10 sílabas) e três mais
curtos (6 sílabas);
-
Aos versos de
6 sílabas, costumamos chamar quebrados
do
heroico pelo facto dos
versos heroicos (decassilábicos)
terem o acento rítmico marcado na 6ª
e 10ª sílabas;
-
Acontece que,
no caso das duas primeiras estrofes,
bem como na última, os primeiros
versos não são heroicos, mas sáficos
(acento rítmico na 4ª, 8ª e 10ª
sílabas);
-
Tal facto, no
caso das duas primeiras estrofes,
coloca as palavras marcadas, quero-te
e amor,
numa situação de confronto: a
primeira conotada com o amor sensual
e a segunda com o espiritual ou
platónico;
-
No caso da
última estrofe, mantém-se o valor
conotativo de quero (8ª
sílaba), que estabelece uma relação
com a palavra marcada na 4ª sílaba,
sou, cujo predicativo do
sujeito é infame;
- O v 13, o primeiro da 4ª
estrofe, é um caso particularmente
curioso:
-
Se
operarmos com as devidas
sinalefas, obtemos um verso
decassilábico sáfico (acento
rítmico na 4ª (bela),
8ª
(amo) e 10ª (bela)
sílabas);
-
Se, por
força da pontuação, evitarmos as
sinalefas, obtemos um verso com 13
sílabas, isto é, a soma de dois quebrados
do
heroico (6 (bela)
+ 1 (átona) + 6 (bela));
-
Em qualquer
dos casos, o ritmo
contribui, de uma forma decisiva,
para o paradoxo da bela
não ser amada;
-
Nas duas
primeiras estrofes, o último verso
funciona como uma espécie de refrão, que
é interrompido nas estrofes 3 e 4, mas
que é retomado, embora parcialmente, nas
duas últimas;
-
Nas estrofes 3 e
4, as palavras que asseguram a rima com
o «refrão» são coração e perdição,
pelo que o órgão que, por metonímia,
simboliza o amor (coração) fica
completamente enquadrado por duas
palavras de conotação negativa (não
e perdição), o que explica que
não seja alimentado pelo sangue (também
ele vermelho!) que devora o ser do
sujeito poético;
-
De facto, a rima,
no presente poema, é particularmente
importante: «o amor vem d'alma»,
mas alma rima com calma,
a calma do jazigo; «o
amor é vida», mas vida
rima com (nem) sentida,
que, por sua vez, rima (embora seja uma
rima apenas toante) com comigo
e jazigo; quero (v
9) rima com fero (querer);
devora, com (má) hora;
bela, com (aziaga) estrela;
forçado, com (feitiço)
azado; (indigno) furor,
com terror;
-
O sujeito poético
considera o amor sensual bruto
e fero (v 10), mas também
considera que o tu é
uma aziaga estrela e a sua
perdição (vv 14 e 16);
-
O amor sensual
conduz o sujeito poético a uma espécie
de remorso (v 21);
-
Algumas figuras
de estilo: antítese
(vv 1, 5, 9, 17, 22/23); reiteração
(vv 4, 8, 20, 24); dupla
adjetivação (v 10); apóstrofe
(v 13); paradoxo (v
13); pergunta de retórica
(vv 14/16); hipérbole
(vv 21/23); gradação crescente
(v 23);
-
Algumas
características românticas:
tom confessional e intimista; alusão a
elementos mórbidos, tétricos (jazigo,
aziaga estrela, má hora, perdição,
feitiço azado, medo, terror);
características de poesia de alcova,
como lhe chamou António José Saraiva;
liberdade métrica; uma certa
teatralidade.
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Anjo
és
Anjo
és tu, que esse poder
Jamais
o teve mulher,
Jamais
o há-de ter em mim.
Anjo
és, que me domina
5 Teu ser o meu ser sem fim;
Minha
razão insolente
Ao teu
capricho se inclina,
E
minha alma forte, ardente,
Que
nenhum jugo respeita,
10 Covardemente sujeita
Anda
humilde a teu poder.
Anjo
és tu, não és mulher.
Anjo
és. Mas que anjo és tu?
Em tua
fronte anuviada
15 Não vejo a c'roa nevada
Das
alvas rosas do céu.
Em teu
seio ardente e nu
Não
vejo ondear o véu
Com
que o sôfrego pudor
20 Vela os mistérios d'amor.
Teus
olhos têm negra a cor,
Cor de
noite sem estrela;
A
chama é vivaz e é bela,
Mas
luz não têm. - Que anjo és tu?
25 Em nome de quem vieste?
Paz ou
guerra me trouxeste
De
Jeová ou Belzebu?
Não
respondes - e em teus braços
Com
frenéticos abraços
30 Me tens apertado, estreito!...
Isto
que me cai no peito
Que
foi?... - Lágrima? - Escaldou-me...
Queima,
abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me
a ti, anjo maldito,
35 Que este ardor que me devora
É já
fogo de precito,
Fogo
eterno, que em má hora
Trouxeste
de lá... De donde?
Em que
mistérios se esconde
40 Teu fatal, estranho ser!
Anjo
és tu ou és mulher?
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Linhas
de Leitura
-
O poema começa
com a afirmação do sujeito poético de que
o tu é um anjo, já que
uma mulher jamais teve «esse poder»
sobre ele;
-
Ao longo da 1ª
estrofe, o sujeito poético esclarece em
que consiste esse poder:
-
no facto do
ser do tu dominar o
seu ser indefinidamente;
-
no facto da
sua razão «insolente» se
inclinar ao capricho do tu;
-
no facto da
sua alma, «forte, ardente»,
que não respeita nenhum jugo, andar
humilde e cobardemente sujeita ao
poder do tu;
-
Perante a
constatação da irracionalidade de tais
factos, o sujeito poético conclui que o tu
só pode ser um anjo;
-
Mas que espécie
de anjo será, pergunta no início da 2ª
estrofe, tudo levando a crer que não se
trata de um anjo divino:
-
possui uma
«fronte anuviada»;
-
não possui
a «coroa nevada das alvas rosas
do céu»;
-
em seu
seio, não vê «ondear o véu com
que o sôfrego pudor vela os
mistérios d'amor»;
-
os seus
olhos têm a cor negra, a cor da «noite
sem estrela»;
-
sua chama,
embora vivaz e bela, não tem luz;
-
Em face disso,
pergunta se é um anjo de Deus ou do Diabo;
-
Apesar de
assistirmos, uma vez mais, à presença do tu,
como, aliás, já nos habituou Garrett, esta
presença manifesta-se numa mudez absoluta
que tortura o sujeito poético: «Não
respondes - e em teus braços / Com
frenéticos abraços / Me tens apertado,
estreito!...»;
-
O sujeito
poético insiste no seu interrogatório
condenatório: «Isto que me cai no
peito / Que foi?... Lágrima?»
-
Afirmando que o
ardor que o devora é já o fogo eterno dos
condenados que o tu
trouxe de lá (alusão ao inferno), o
sujeito poético interroga-se sobre os
mistérios em que se esconde o fatal e
estranho ser deste anjo maldito,
demoníaco;
-
Termina,
questionando, uma vez mais, se o tu
é anjo ou é mulher;
-
A resposta está
contida em apenas duas palavras dos dois
últimos versos: fatal e mulher,
isto é, a mulher fatal;
-
Note-se que, ao
contrário do que acontece em O Anjo
Caído, em que o tu
é nitidamente a vítima do eu
(tirano caçador), em Anjo És, é
o eu que é vítima do tu
(esta oposição não se verifica pela
primeira vez: em Este inferno de amar
- como eu amo!, o eu
apresenta-se como vítima, mas em Gozo
e Dor e em Não te amo -
quero-te, a vítima é o tu);
-
Algumas figuras
de estilo: anáfora (vv
1/4); adjetivação
(insolente, forte, ardente, humilde,
anuviada, nevada, alvas, ardente, nu,
sôfrego, negra, vivaz, bela, frenéticos,
apertado, estreito, maldito, eterno,
fatal, estranho); personificação
(hipálage) (vv 6/7;
8/11); metáfora (vv 7,
23, 26, 35, 36); pergunta
de retórica (vv 13, 24/27, 32,
38, 41); anadiplose (vv
21/22); eufemismo (v
27); gradação crescente
(v 33);
-
Algumas
características românticas: o tom confessional do poema;
uma certa teatralidade; o tema da mulher
fatal; a superlativação dos poderes da
mulher; a alusão ao inferno e ao diabo.
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Barca
bela
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é
tão bela,
Ó
pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe
a vela,
Ó
pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas
cautela,
Ó
pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de
vê-la,
Ó
pescador!
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge
dela,
Ó
pescador!
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Linhas
de Leitura
-
O presente
poema, com toda a sua singeleza, exerce um
poder de fascínio que, por si só, define a
matriz de um artista;
-
O poema
sintetiza um conflito dramático
representado por três personagens: o
pescador, a sereia e alguém que é o dono
da voz que se dirige ao pescador (que bem
pode ser um coro à boa maneira clássica da
tragédia grega (não prenuncia o coro, por
regra, a catástrofe? e que acontecerá ao
pescador se não resistir à tentação
(leia-se sedução),
apesar dos avisos?));
-
Quem não vê, na
pergunta da 1ª estrofe, um aviso, um
conselho: «Pescador da barca bela, não vás
pescar com ela, que é tão bela, ó
pescador!» Que é como quem diz: «Se vais,
ficas sem ela e, perdendo-se a barca,
perdes-te tu!»
-
Todo o poema
contém os pré-requisitos de um texto
argumentativo cuja tese pode muito bem
ser: «Barco que vá para o mar
arrisca-se a lá ficar.»
(principalmente se as condições forem
adversas: vv 5/6; v 10; vv 13/14);
-
Assim, a lógica
da argumentação assenta na enumeração das
adversidades que aumentam, gradativamente,
o perigo que representa o próprio mar:
-
se o mar
(deve ser entendido como uma metáfora),
em si mesmo, já representa perigo para a
barca bela, esta ficará envolvida em
maior perigo se perder a sua orientação
(«Não vês que a última estrela / No
céu nublado se vela?» (vv 5/6) -
a ausência de luz retira a clarividência
ao pescador, facilitando a
perigosidade);
-
por isso: «Colhe
a vela, / Ó pescador!»
mas, se o não fizeres, se não
tiveres a força, a coragem para o fazer,
para resistir, «Deita o lanço com cautela...»
-
se o perigo é
mesmo iminente para uma barca à deriva
(sem orientação), é-o ainda mais se se
deixar seduzir pelo canto da sereia como
aconteceu no episódio de Ulisses;
-
enredando-se
a rede nela, ficará perdidamente
enredado o próprio pescador (será o
momento oportuno de lembrar um ditado
popular: «Ir à lã e vir tosquiado.»
ou, se se preferir a adaptação: «Ir à
pesca e ser pescado.»)
nota de curiosidade: o
termo pescar,
conotativamente, é muito utilizado no
jogo da sedução!;
-
por isso:
enquanto é tempo, «Foge dela, /
Foge dela, / Ó pescador!», isto
é, se não queres ficar sem a barca bela,
não vás pescar com ela;
-
Conclui-se,
assim, que o perigo último, o maior, é ela;
-
É altura, pois,
de lembrar que toda a rima, à exceção de pescador,
que faz parte dessa espécie de refrão,
contém o elemento feminino ela
(bela (v 1), ela (v 2),
bela (v 3), estrela (v
5), vela (verbo velar)
(v 6), vela (nome) (v 7), cautela
(v 9), bela (v 10), cautela
(v 11), nela (v 13), vela
(v 14), vê-la (v 15), bela
(v 17), dela (v 18), dela
(v 19);
-
Todas as
estrofes são constituídas por dois versos
mais longos (7 sílabas (redondilha maior))
e dois mais curtos (o 3º, de três sílabas;
o 4º, de quatro); se juntarmos os dois
últimos versos de cada estrofe, utilizando
o processo da sinalefa, obtemos mais um
verso de 7 sílabas, construindo, deste
modo, estrofes com versos isométricos;
-
Tal atitude, no
entanto, implicaria, por um lado, a
constituição de uma rima interna cujo
efeito seria profundamente atenuado em
relação ao que é obtido no seu estado
original e, por outro, faria desaparecer
uma espécie de refrão que, na minha
opinião, contém um profundo valor
reiterativo: o poeta sabia o que estava a
fazer;
-
Algumas figuras
de estilo: apóstrofe (vv
1, 4. 8. 12, 16, 20); adjetivação
(bela, última); pergunta de
retórica (vv 1/4; vv 5/6; exclamação
retórica (vv 7/8; 11/12; 15/16;
19/20); diáfora (vv 6/7
(repetição de uma mesma palavra, mas com
sentido diferente: vela (verbo)
/ vela (nome)); elipse
(v 11); reiteração (vv
18/19); assonância
(contida na rima); aliteração
do L;
Nota: todo o poema é uma
alegoria, pelo que quase
todos os seus elementos devem ser lidos no
plano metafórico: o que está em causa é o
irresistível poder de sedução
da mulher fatal;
-
Algumas
características românticas: a
construção do poema ligada à tradição
popular; a alusão à mulher fatal
(sereia); uma certa teatralidade.
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