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                     Romagem
                            ao Espírito de Antero 
                    por 
                    Manuel
                            Maria 
                    Artigo publicado no NOTÍCIAS DE
                          GONDOMAR de 30 de outubro de 1999 
                      
                     No dia em que este
                          número do Notícias de Gondomar
                          chegar às mãos da maioria dos seus leitores,
                          já teremos cumprido, uma vez mais, o ritual da
                          romagem aos cemitérios em memória dos que nos
                          são queridos. E, quer queiramos, quer não,
                          esta data acaba sempre por ser, em maior ou
                          menor grau, um motivo de profunda reflexão, a
                          reflexão sobre o insondável mistério que é o
                          absurdo da morte. Tal facto trouxe-me à
                          memória um vulto enorme da Literatura
                          Portuguesa, dos maiores entre os maiores, e um
                          dos três mestres de Fernando Pessoa, para além
                          de Alberto Caeiro, um dos seus heterónimos. «É mestre quem tem de ensinar...»,
                          diz Pessoa, e Antero de Quental «ensinou
                            a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade
                            de que ser imbecil não é indispensável a um
                            poeta.» 
                    Nascido a 18
                          de abril de 1842, em Ponta Delgada, nos
                          Açores, Antero recebeu uma esmerada educação
                          religiosa, ao ponto de ter planeado tornar-se
                          sacerdote, o que, a verificar-se, não seria
                          caso único na família. Diz-se, por exemplo,
                          que, aos 12 anos já se extasiava com a poesia
                          da Harpa do Crente, de
                          Alexandre Herculano, uma poesia profundamente
                          mística.   
                    Aos 16 anos,
                          porém, estava matriculado na Universidade de
                          Coimbra, aonde chegavam as influências de
                          vultos como Darwin, Proudhon, Marx, Michelet,
                          Taine, Balzac, Flaubert, Zola, entre outros.
                          Deste modo, não admira que, após a sua saída
                          de S. Miguel, em carta autobiográfica, registe
                          a seguinte confissão: «Varrida
                            num instante toda a minha educação católica
                            e tradicional, caí num estado de dúvida e
                            incerteza, tanto mais pungente quanto,
                            espírito naturalmente religioso, tinha
                            nascido para crer placidamente e obedecer
                            sem esforço a uma regra reconhecida.»
                            
                    É, pois,
                          este estado pungente de dúvida e de incerteza
                          que irá determinar a sua poesia ao longo da
                          sua vida, independentemente de alguns
                          estudiosos, nomeadamente contemporâneos seus,
                          como é o caso de Oliveira Martins, pretenderem
                          definir diferentes períodos de produção
                          literária.   
                    Depois de
                          ter afirmado, aquando da publicação das Odes Modernas, que «A
                            Poesia moderna é a voz da Revolução», a
                          sua obra poética ganha alcance em temas como a
                          Justiça, a Fraternidade, o Amor, a Solidão,
                          Deus, a Morte e o Nada, o que revela, à
                          evidência, as suas verdadeiras preocupações.
                            
                    A par dos
                          que defendem a estratificação da sua obra de
                          acordo com diferentes períodos da sua vida, há
                          também quem afirme estarmos diante de um
                          espírito em permanente convulsão, no qual já
                          se sente fermentar a gestação duma heteronímia
                          não declarada, que apenas viria a ganhar
                          corpo, tal como a conhecemos, em Fernando
                          Pessoa.   
                    Não admira
                          que o protagonista da célebre Questão
                            Coimbrã, na generosidade da sua
                          juventude e no espírito vanguardista das Odes Modernas, se dirigisse aos
                          poetas do seu tempo, incitando-os ao combate
                          em nome de valores como o Amor, a Fraternidade
                          e a Justiça, que, no fundo, alimentavam o seu
                          sonho de mudar o mundo: Tu que
                            dormes, espírito sereno / [...] / [...] / Longe da luta e do fragor
                            terreno, / / Acorda! É tempo! [...]
                            / [...]
                            / [...]
                            / Um mundo novo espera só um aceno... / /
                            Escuta! É a grande voz das multidões! / São
                            teus irmãos, que se erguem! São canções... /
                            Mas de guerra... e são vozes de rebate! / /
                            Ergue-te, pois, soldado do Futuro, / E dos
                            raios de luz do sonho puro, / Sonhador, faze
                            espada de combate! [i]   
                    Num outro
                          soneto, depois de falar «Dum Deus
                            que luta, poderoso e inculto» e que se
                          manifesta nas florestas, na serra, no espaço
                          constelado, no mar, estabelece o contraste com
                          o que se verifica nas «negras cidades»,
                          naquilo que me parece ser clara alusão às
                          consequências da Revolução Industrial: «Mas nas negras cidades, onde solta
                            / Se ergue, de sangue mádida, a revolta, /
                            Como incêndio que um vento bravo atiça, /
                            /Há mais alta missão, mais alta glória: / O
                            combater, à grande luz da história, / Os
                            combates eternos da Justiça!» [ii]
                            
                    Porém, a
                          cruel realidade da vida desvanece tamanho
                          altruísmo e o herói vacila, evidenciando um
                          espírito cada vez menos sereno e
                          comportando-se como barco à deriva em mar
                          revolto e tempestuoso, em busca desesperada
                          dum seguro porto de abrigo. Se, num soneto,
                          por exemplo, faz a apologia da luz, num outro,
                          embrulha-se na proteção da noite: «Amem
                            a noite os magros crapulosos, / e os que
                            sonham com virgens impossíveis, / E os que
                            se inclinam, mudos e impassíveis, / À borda
                            dos abismos silenciosos... / / [...] / / Eu amarei a santa madrugada, /
                            E o meio-dia, em vida refervendo, / E a
                            tarde rumorosa e repousada. / / Viva e
                            trabalhe em plena luz: depois, / Seja-me
                            dado ainda ver, morrendo, / O claro Sol,
                            amigo dos heróis!» [iii]
                              
                    «Noite,
                            vão para ti meus pensamentos, / Quando olho
                            e vejo, à luz cruel do dia, / Tanto estéril
                            lutar, tanta agonia, / E inúteis tantos
                            ásperos tormentos...» [iv]
                              
                    É inegável
                          que é já o reflexo do desalento que
                          manifestará em muitos outros poemas, de que é
                          exemplo paradigmático  O
                              Palácio da Ventura, um soneto em
                          que podemos assistir a uma espécie de balanço
                          introspetivo da sua vida: «Sonho
                            que sou um cavaleiro andante / Por desertos,
                            por sóis, por noite escura. / Paladino do
                            amor, busco anelante / O palácio encantado
                            da Ventura!»   
                    Apesar das
                          adversidades anunciadas, de forma
                          eloquentemente metafórica, no segundo verso,
                          este paladino do amor (universal), procura,
                          ansiosamente, o palácio da Ventura, isto é,
                          tudo o que possa simbolizar o seu sossego, a
                          sua tranquilidade, no fundo, a felicidade a
                          que todo o ser humano aspira por direito de
                          nascença. Todavia, antevê-se já a frustração
                          final deste cavaleiro. É que se trata de um
                          cavaleiro que se não afirma como sendo, mas
                          como sonhando que é, e, como se não bastasse,
                          o quarto verso aponta para um objeto de busca
                          que só ganha forma no mundo a que pertence, o
                          mundo feérico e onírico, o mundo da fantasia.
                            
                    «Mas
                            já desmaio, exausto e vacilante, / Quebrada
                            a espada já, rota a armadura... / E eis que
                            súbito o avisto, fulgurante / Na sua pompa e
                            aérea formosura!»   
                    O desafio
                          parece inumano, por isso não é de estranhar a
                          tibieza manifestada nos dois primeiros versos
                          desta segunda quadra. É apenas um momento mais
                          de desalento, como tantos da sua vida.
                          Entretanto, parece avistar, lá longe, o objeto
                          da sua busca, uma espécie de luzinha no fundo
                          do túnel, fazendo renascer a esperança. Mas,
                          tal como acontece aos beduínos do deserto
                          (elemento apontado já na primeira quadra),
                          constata-se que tudo não vai passar duma mera
                          miragem, fruto do seu ardente desejo, fruto
                          duma ânsia desmedida: «Com
                            grandes golpes bato à porta e brado: / Eu
                            sou o Vagabundo, o Deserdado... / Abri-vos,
                            portas d'ouro, ante meus ais! / / Abrem-se
                            as portas d'ouro, com fragor...» E
                          enquanto as portas se abrem, parecerá
                          infindável esse momento de enorme expectativa:
                          é fácil adivinhar a ansiedade do cavaleiro que
                          quer ver banidos para sempre os seus
                          desesperos, os seus sofrimentos, as suas
                          angústias. «Mas dentro encontro
                            só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão - e nada mais!»   
                    Não espanta,
                          por isso, que um espírito, num estado de alma
                          como este, procure, desesperadamente, a
                          tranquilidade final e absoluta - absoluto que,
                          no fundo, terá sido a grande causa de toda a
                          sua angústia existencial: «E o
                            homem porque vaga desolado / E em vão busca
                            certeza que o conforte? / / Mas, na pompa de
                            imenso funeral, / Muda, a noite, sinistra e
                            triunfal, / Passa volvendo as horas
                            vagarosas... / / É tudo, em torno de mim,
                            dúvida e luto...» [v]
                            
                    Daqui ao
                          refúgio na morte é apenas o tempo de um ai: « - “Se esta
                            espada que empunho é coruscante, / (Responde
                            o negro cavaleiro andante) / É porque esta é
                            a espada da Verdade. / / Firo mas salvo...
                            Prostro e desbarato, / Mas consolo...
                            Subverto, mas resgato... / E, sendo a Morte,
                            sou a liberdade.”» [vi] A liberdade, sim, porque a morte
                          liberta-o de todo o sofrimento: «Em
                            mim, os Sofrimentos que não saram, / Paixão,
                            Dúvida e Mal, se desvanecem. / As torrentes
                            da Dor, que nunca param, / Como num mar em
                            mim desaparecem. [vii]
                          Não surpreende, pois, que o poeta se lhe
                          entregue: «Dormirei no teu seio
                            inalterável, / Na comunhão da paz universal,
                            / Morte libertadora e inviolável! [viii]   
                    No entanto,
                          reminiscências da sua cultura judaico-cristã
                          parecem trazer à superfície um certo complexo
                          de culpa, que não de pecado: «Talvez
                            seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar
                            contigo e adorar-te, / Não-ser, que és o Ser
                            único absoluto.»   
                    Esta é,
                          talvez, a grande verdade a chegou o espírito
                          compungido do poeta: a morte como único
                          absoluto a que pode ascender a razão humana.
                            
                    Num último
                          golpe de desespero, lança-se nas mãos da sua
                          derradeira e extrema aspiração, a de um Deus
                          no qual gostaria de acreditar: «Na
                            mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou
                            afinal meu coração. / [...] / Como criança, em lôbrega
                            jornada, / Que a mãe leva no colo agasalhada
                            / E atravessa, sorrindo vagamente, / /
                            Selvas, mares, areias do deserto... / Dorme
                            o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão
                            de Deus eternamente! [ix] Mas, ainda agora, o sono não é um
                          sono profundo e tranquilo: [Deus] «Buscou
                            quem o não quis; e a mim, que o chamo, / Há
                            de fugir-me, como a ingrato filho? / Ó Deus,
                            meu pai e abrigo! Espero!... eu creio!
                          [x]
                          Será que crê? Se tal fosse verdade,
                          desaparecer-lhe-iam todas as dúvidas que lhe
                          alimentam as angústias, desapareceriam os
                          pesadelos de seu sono intranquilo: «Só uma vez ousei interrogá-lo: / - “Quem és (lhe
                            perguntei com grande abalo), / Fantasma a
                            quem odeio e a quem amo?” / / -
                            “Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos, /
                            Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos... /
                            Mas eu por mim não sei como me chamo... [xi]   
                    Por mais que
                          apregoasse a conversão, creio que nunca a terá
                          alcançado, para infelicidade sua: «Entre
                            os filhos dum século maldito / Tomei também
                            lugar na ímpia mesa, / [...]
                            / Mas um dia abalou-se-me a firmeza, /
                            Deu-me rebate o coração contrito! / / Erma,
                            cheia de tédio e de quebranto, / Rompendo os
                            diques ao represo pranto, / Virou-se para
                            Deus minha alma triste! / / Amortalhei na Fé
                            o pensamento, / E achei a paz na inércia e
                            esquecimento... / Só me falta saber se Deus
                            existe! [xii] 
                           
                    Como viver
                          em paz um espírito assim?   
                    Antero de
                          Quental pôs termo à vida em 11 de Setembro de
                          1891. 
                    
                       
                          
                        [i] Antero de Quental, Sonetos,
                           A Um Poeta, Círculo
                        de Leitores; 
                          [ii] Idem,  Justitia Mater; 
                          [iii] Idem,  Mais Luz!; 
                          [iv] Idem, Nox; 
                          [v] Idem,  Lacrimae Rerum
                          (Lágrimas das Coisas); 
                          [vi] Idem,  Mors Liberatrix (Morte
                          Libertadora); 
                          [vii] Idem,  O que diz a Morte; 
                          [viii] Idem,  O Elogio da Morte, V; 
                          [ix] Idem,  Na Mão de Deus; 
                          [x] Idem, Salmo; 
                          [xi] Idem,  O Inconsciente; 
                          [xii] Idem,  O Convertido.
                      
                     
                    topo  
                    
                         
                    Prefácio de Oliveira Martins aos
                              Sonetos de Antero 
                     
                    [...] 
                    I 
                    Eu
                            não conheço fisionomia mais difícil de
                            desenhar, porque nunca vi natureza mais
                            complexamente bem dotada. Se fosse possível
                            desdobrar um homem, como quem desdobra os
                            fios de um cabo, Antero de Quental dava alma
                            para uma família inteira. É sabidamente um
                            poeta na mais elevada expressão da palavra;
                            mas ao mesmo tempo é a inteligência mais
                            crítica, o instinto mais prático, a
                            sagacidade mais lúcida, que eu conheço. É um
                            poeta que sente, mas é um raciocínio que
                            pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa. 
                    Inventa e critica. Depois, por um
                            movimento reflexo da inteligência, dá corpo
                            ao que criticou, e raciocina o que imaginou.
                            O seu temperamento apresenta um contraste
                            correlativo: é meigo como uma criança,
                            sensitivo como uma mulher nervosa, mas
                            intermitentemente é duro e violento. 
                    É
                            fraco, portanto? Não. A vontade, em
                            obediência à qual, e com esforço, se faz
                            colérico, fá-lo também forte - dessa força
                            persistente, raciocinada e na aparência
                            plácida, como a superfície do mar em dias de
                            bonança. O oceano, porém, é interiormente
                            agitado pelo gulf stream quente e
                            invisível: Também às vezes a placidez
                            extrema da sua face encobre ondas de aflição
                            que sobem até aos olhos e rebentam em
                            lágrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o
                            homem digno da humanidade. 
                    É
                            destas crises que nasceram os seus versos,
                            porque Antero de Quental não faz
                            versos à maneira dos literatos: nascem-lhe,
                            brotam-lhe da alma como soluços e agonias.
                            Mas, apesar disso, é requintado e exigente
                            como um artista: as suas lágrimas hão de ter
                            o contorno de pérolas, os seus gemidos hão
                            de ser musicais. As faculdades artísticas
                            geradoras da estatuária e da sinfonia são as
                            que vibram na sua alma estética. A noção das
                            formas, das linhas e dos sons possui-a num
                            grau eminente: não já assim a da cor nem da
                          composição. Aos quadros chama painéis
                            com desdém, e por isso mesmo tem horror à
                            descrição e ao pitoresco. É artista, no que
                            a arte contém de mais subjetivo. A sua
                            poesia é escultural e hierática, e por isso
                            fantástica. É exclusivamente psicológica e
                            dantesca: não pode pintar, nem descrever:
                            acha isso inferior e quase indigno. 
                    Os
                            seus versos são sentidos, são vividos
                            como nenhuns; mas o sentir e o viver deste
                            homem é de uma natureza especial que tem por
                            fronteiras físicas as paredes do seu crânio,
                            mas que não tem fronteiras no mundo real,
                            porque a sua imaginação paira librada nas
                            asas de uma razão especulativa para a qual
                            não há limites. 
                    O
                            poeta é por isso um místico, e o crítico um
                            filósofo. O misticismo e a metafísica, o
                            sentimento e a razão, a sensibilidade e a
                            vontade, o temperamento e a inteligência,
                            combatem-se às vezes dilacerando-se. Eis aí
                            a explicação desta poesia que é o retrato
                            vivo do homem. O génio, esse quid
                            divinatório, que não é honra para nenhuma
                            criatura possuir, porque só nos dá
                            merecimento aquilo que ganhámos à força de
                            inteligência e de vontade; o génio, que é
                            uma faculdade tão acidental como a cor dos
                            cabelos, ou o desenho das feições; o génio,
                            que pode andar ligado a uma inteligência
                            medíocre, mas que o não anda no caso de
                            Antero de Quental - é o predicado particular
                            e a chave do enigma deste homem. O génio
                            pressupõe a intuição de uma verdade visceral
                            ou fundamental da natureza. Essa intuição,
                            essa aspiração absorvente, é para o nosso
                            poeta a síntese da verdade racional ou
                            positiva e do sentimento místico: uma poesia
                            que exprima o raciocínio, ou antes uma
                            filosofia onde caibam todas as suas visões.
                            O próprio do génio é querer realizar o
                            irrealizável; é ser quimérico, no sentido
                            crítico da palavra, quando por quimera
                            entendemos uma verdade essencial que não
                            pode todavia reduzir-se a fórmulas
                            compreensíveis, ou uma coisa cuja realidade
                            se sente, sem se poder ver. 
                    Dos aspetos quase inesgotavelmente
                            variáveis desta singular fisionomia de
                            homem, desta mistura excecional de
                            pensamentos e de temperamento num mesmo
                            indivíduo, resulta porém um tipo de
                            sinceridade e de retidão mais singular
                            ainda, porque mais facilmente podia resultar
                            dela um grande cínico. É sobretudo um
                            estoico, sem deixar de ter bastante de
                            cético; é um místico, mas com uma forte dose
                            de ironia e humorismo; é um misantropo,
                            quando não é o homem do trato mais afável,
                            da convivência mais alegre; é um pessimista,
                            que todavia acha em geral tudo ótimo.
                            Intelectualmente é a fisionomia mais dúbia,
                            complexa e contraditória por vezes;
                            moralmente é o carácter mais inteiro e
                            melhor que existe. A sua inteligência
                            encontra-se permanentemente no estado de
                            alguém que, querendo ir para um sítio,
                            resiste por não querer ao mesmo tempo, sem
                            todavia ter razões bastantes para querer nem
                            também para não querer. O núcleo da sua
                            personalidade, se a encararmos pelo lado
                            praticamente humano, está na energia do seu
                            querer moral, e não na lucidez do seu
                            pensamento, embora tenha a pretensão de
                            julgar que a sua vontade obedece sempre à
                            sua razão. É verdade que dentro de si tem
                            permanentemente um espelho facetado que
                            representa e critica as modalidades do seu
                            pensamento: mas, por isso mesmo, vê ou
                            inventa faces de mais às coisas, e também
                            por vezes o cristal embacia. O que nunca
                            esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É
                            um homem fundamentalmente bom. 
                    A complexidade do seu espírito
                            dá-lhe uma verdade de aptidões, singular. 
                    [...] 
                    A sua força é a prodigalidade com
                            que a natureza dotou o seu espírito; mas
                            essa força é uma fraqueza. Tem demasiada
                            imaginação para ver bem, e por outro lado o
                            raciocínio crítico peia-lhe os voos
                            luminosos da fantasia. Vê de mais para poder
                            ser ativo, ou não tem a energia
                            correspondente à sua visão. Se a tivesse,
                            seria verdadeiramente um assombro. A
                            imaginação e a razão, irredutíveis nos
                            cérebros humanos com as circunvoluções
                            limitadas que contêm, são igualmente
                            poderosas no seu cérebro para que qualquer
                            delas domine. Lutam em permanência,
                            procurando entender-se, combinar-se,
                            penetrar-se, e, no desejo quimérico da
                            síntese, desequilibram o homem,
                            atrofiando-lhe a energia ativa. Ainda assim,
                            felizes daqueles cuja inércia desse um livro
                            comparável a este! 
                    Mas é que as suas páginas foram
                            escritas com sangue e lágrimas! E dói ver a
                            vida do mais belo espírito consumir-se em
                            agonias de uma alma em luta consigo mesmo! O
                            comum da gente, ao ler as páginas deste
                            volume, dirá então: Quantas catástrofes, que
                            desgraças, este homem sofreu! Que singular
                            hostilidade do Mundo para uma criatura
                            humana! - E todavia o Mundo nunca lhe foi
                            propriamente hostil, nenhuma desgraça o
                            acabrunhou; a sua vida tem corrido serena,
                            plácida, e até, para o geral da gente, em
                            condições de felicidade. 
                    É que o geral da gente não sabe que
                            as tempestades da imaginação são as mais
                            duras de passar! Não há dores tão agudas
                            como as dores imaginárias. Não há problemas
                            mais difíceis do que os problemas do
                            pensamento, nem crises mais dolorosas do que
                            as crises do sentimento. As agonias
                            dilacerantes da morte com as ânsias do
                            estertor, os horrores mais inverosímeis dos
                            crimes monstruosos, as aflições mais
                            pungentes da saudade, as tristezas mais
                            dolorosas da solidão, as lutas do dever com
                            a paixão, os gritos do homem arruinado, os
                            ais da orfandade faminta... tudo, tudo
                            quanto no Mundo pode haver de doloroso,
                            desde a miséria até à prostituição, desde o
                            andrajo até ao veludo arrastado pela
                            imundície, desde o cardo que dilacera os pés
                            até ao punhal que rasga o coração: tudo isto
                            é menos do que a agonia de um poeta vendo
                            passar diante de si, em turbilhão medonho,
                            as lúgubres misérias do Mundo. Todas as
                            aflições têm o seu quê de imaginativas, e
                            por isso há apenas uma espécie de homens que
                            não sentem: são os cínicos, esses que
                            perderam os nervos da moralidade,
                            anestesiados do sentimento. 
                    Quando se é poeta como Antero de
                            Quental, a imaginação exarcebada vibra como
                            as harpas que os gregos expunham às virações
                            da brisa nos ramos das árvores. Nenhum dedo
                            dedo lhes feria as cordas, e todavia
                            tocavam! Nenhuma dessas desgraças do Mundo
                            feriu a harpa da vida do poeta; e todavia
                            essa harpa geme e chora; soluça e grita,
                            porque pelas suas cordas passa o vento
                            agreste das ideias, passa o eco ululante do
                            egoísmo dos homens, aflitivo como os uivos
                            de uma alcateia de lobos famintos. 
                    II 
                    Esta
                            coleção de Sonetos
                            é, portanto, ao mesmo tempo biográfica e
                            cíclica. Conta-nos as tempestades de um
                            espírito; mas essas tempestades não são os
                            quaisquer episódios particulares de uma vida
                            de homem: são a refração das agonias morais
                            do nosso tempo, vividas, porém, na
                            imaginação de um poeta. 
                    O primeiro período, de 1860-62,
                            contém em embrião todos os sucessivos, da
                            mesma forma que as flores incluem em si a
                            substância dos frutos. Denuncia uma alma
                            sensível, mas patenteia já a preocupação
                            metafísica na sua fase rudimentar de dúvida
                            teológica, e apresenta uns assomos de
                            tristeza que são como os farrapos de nuvens
                            quando velam intermitentemente o Sol,
                            deixando antever a tempestade para o dia
                            seguinte. Estes primeiros sonetos são o
                            balbuciar de uma criança. Romântica? De modo
                            nenhum. Este poeta não se filia em escolas,
                            não obedece a correntes literárias: a sua
                            poesia é exclusivamente pessoal. Sucedia,
                            porém, que nesse tempo já os nossos bardos
                            classicamente românticos tinham passado de
                            moda; e a Coimbra chegavam, por via de
                            Paris, os ecos do espírito novo, expresso
                            nas obras de Michelet, de Quinet, de
                            Vera-Hegel, etc. 
                    Tudo isso fermentava no cérebro de
                            Antero de Quental, mas a sua personalidade
                            não se deixava absorver pelo otimismo que,
                            depois dos românticos, se espalhou na
                            Europa, liricamente ingénuo no Ocidente
                            afrancesado, sistematicamente filosófico na
                            Alemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguém o
                            lia. Não era moda. Pois foi essa corrente,
                            dominante hoje, aquela em que o nosso poeta,
                            espontaneamente, por um movimento do seu
                            temperamento se achou levado. Aos dezoito ou
                            vinte anos, ignorante ainda, mas inquieto e
                            perscrutador, o poeta, que desdenha
                            sinceramente da fama e da glória, vê no
                            eterno feminino de que nos fala Goethe a
                            síntese da existência. Os seus amores já são
                            fantásticos: só têm realidade no Céu. 
                    Ali, ó lírio dos celestes vales, 
                    Tendo
                          seu fim, terão o seu começo, 
                    Para não mais findar, nossos
                            amores. 
                    E se ainda o dia, a luz, o Sol, esposo amado, têm o
                            condão de o encher de entusiasmo, é mister
                            desconfiar de um homem mais caprichoso do
                            que todas as mulheres, porque 
                    Pedindo à forma, em vão, a ideia
                          pura. 
                    Tropeço,
em
                          sombras, na matéria dura 
                    E encontro a imperfeição de
                            quanto existe 
                    Esta nota é mais
                            constitucionalmente verdadeira. «Seja a
                            Terra degredo, o Céu destino», diz num
                            ponto; e noutro: 
                    Minha alma, ó Deus, a outros céus
                          aspira: 
                    Se
                          um momento a prendeu mortal beleza 
                    É pela eterna pátria que
                            suspira... 
                    Não acreditemos também
                            demasiadamente nisto, porque Deus não passa
                            ainda de uma interrogação: 
                    Pura essência das lágrimas que choro 
                    E
                          sonho dos meus sonhos! Se és verdade, 
                    Descobre-te, visão, no Céu
                            ao menos! 
                    As lutas infantis deste primeiro
                            período para saber se Deus é ou não é
                            verdade bastam, em si mesmo e no próprio
                            modo por que estão expressas, para nos
                            mostrar que o poeta não saiu ainda das
                            esferas de representação elementar dos seres
                            para a esfera compreensiva das abstrações
                            racionais. Os sonetos desta primeira série
                            desenrolam-se no terreno da fantasmagoria
                            transcendente. O traço mais seguro de todos
                            e o mais significativo está neste verso: 
                    Que sempre o mal pior é ter
                            nascido. 
                    A
                            segunda série tem a data de 1862-66.
                            Psicologicamente é a menos original,
                            artisticamente é a mais brilhante. O Sonho
                          Oriental, o Idílio, o Palácio da Ventura,
                            são obras-primas, até de colorido. Talvez
                            por isso mesmo que o estado de espírito do
                            poeta o não obrigava a tirar tanto de si, e
                            porque nesta época viveu mais à lei da
                            natureza; talvez por isso mesmo a sentiu e
                            pintou melhor nas suas cores, nas suas
                            imagens. 
                    A nebulose do primeiro período
                            começava a resolver-se numa tragédia mental,
                            que umas vezes tem os sonhos dos que
                            mastigam haxixe, outras vezes fúrias de
                            desespero, ironias como punhais e gritos
                            lancinantes: 
                    Se nada há que me aqueça esta frieza, 
                    Se
                          estou cheio de fel e de tristeza, 
                    É de crer que só eu seja o
                            culpado. 
                    Meu pobre amigo, como foi amarga
                            esta época! Outros sofreram também, outros
                            penaram iguais dores, sem conseguirem porém
                            estrangular os monstros que defendem os
                            áditos do templo da Sabedoria. Heine e
                            Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram
                            vidas inteiras nesse estado de ironia e de
                            sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia
                            e de abatimento, de fúria e de atonia, que
                            para ti representam quatro anos apenas! 
                    Mas
                            é que não havia em nenhum desses homens a
                            semente de abstração que se descobre no Palácio da
                            Ventura: 
                    Abrem-se as portas de ouro, com
                          fragor... 
                    Mas
                          dentro encontro só, cheio de dor, 
                    Silêncio
e
                          escuridão - e nada mais! 
                    Os românticos, mais ou
                            menos satanistas ou satanizados, ficavam-se
                            por aqui. Achando apenas silêncio e
                            escuridão onde tinham sonhado venturas, ou
                            davam em bêbedos, como Espronceda, ou
                            suicidavam-se, como Nerval, ou faziam-se
                            cínicos. à maneira de Baudelaire, cultivando
                            com amor as Flores do Mal. 
                    De 1864 a 74, nesses dez anos em
                            que a tempestade caminha, vê-se o «silêncio
                            e a escuridão», que antes surgiam como
                            surpresas medonhas, ganharem um lugar
                            apropriado, embora eminente, no regime das
                            coisas; vê-se o espírito do filósofo reagir
                            sobre o temperamento do poeta, e tornar-se
                            sistema o que até aí era fúria. Bom
                            prenúncio. 
                    Nesta época Antero de Quental é
                            niilista como filósofo, anarquista como
                            político; é tudo o que for negativo, é tudo
                            o que for excessivo; e é-o de um modo tão
                            determinante, tão dogmático e tão
                            afirmativo, que por isso mesmo hesitamos em
                            crer na consciência com que o é. Da
                            sinceridade não é lícito duvidar, mas contra
                            a segurança depõe a própria violência. A
                            nevrose contemporânea, que produzira nele a
                            terceira época, dá de si ainda a quarta; mas
                            se pôde galgar a saltos por entre a floresta
                            incendiada que devorou e consumiu os
                            satânicos, não poderá também sair da estepe
                            lúgubre onde apodrecem os pessimistas,
                            embriagados na negação universal, sem se
                            lembrarem de que são contraditórios no
                            próprio facto de pregarem o que quer que
                            seja? 
                    Ora
                            a isto responde esta própria série, porque,
                            ao lado dos sonetos crepuscularmente
                            desolados, levantam-se como auroras os
                            sonetos estoicos. Para curar o poeta da
                            vertigem satânica serviu-lhe a metafísica
                            pessimista; para o curar mais tarde dessa
                            metafísica, servir-lhe-á a reação do
                            sentimento moral sobre a razão especulativa.
                            Quando pede Mais Luz, quando
                            chama ao Sol «o claro sol amigo dos heróis»,
                            quando define a Ideia acabando por
                            estes versos diamantinos: 
                    A Ideia, o Sumo bem, o Verbo, a
                          Essência, 
                    só
                          se revela aos homens e às nações 
                    No
                          céu incorruptível da Consciência! 
                    sentimo-nos bem distantes das
                            fantasmagorias do princípio e das loucuras
                            da viagem, que todavia o poeta não terminou
                            ainda. 
                    Lutando
furioso
                            contra a desilusão, caindo esmagado pelo
                            aniquilamento, Antero de Quental ensimismou-se
                            (para usar de uma feliz expressão
                            espanhola), meteu-se dentro de si, a sós
                            consigo, apelou para as energias do seu
                            instinto de homem, e foi isso que lhe
                            inspirou o belo Hino à Razão. 
                    Porém, na luta entre o temperamento
                            de estoico e a imaginação metafísica, o seu
                            espírito atribulado não conseguiu manter o
                            equilíbrio, porque as suas exigências de
                            crítico e filósofo (alimentadas agora por
                            leituras variadíssimas e profundas)
                            contrariavam ou contradiziam as suas visões
                            de poeta. À maneira que a inteligência se
                            lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que
                            a experiência o educava com mais de um caso
                            doloroso ou apenas triste - apurava-se-lhe a
                            imaginação até ao ponto de ver claramente o
                            que para o comum dos espíritos são apenas
                            conceções do entendimento abstrato. A sua
                            poesia despe-se então de acessórios: não há
                            quase uma imagem; há apenas linhas, mas
                            essas linhas de estátuas incorpóreas têm uma
                            nitidez dantesca. 
                    O
                            seu pessimismo torna-se sistemático: é uma
                            filosofia inteira, a que corresponde, como
                            expressão sentimental, a ironia
                            transcendente. Na Disputa em Família,
                            Deus responde aos ateus: 
                    Muito antes de nascerem vossos pais 
                    Dum
                          barro vil, ridículas crianças, 
                    Sabia
                          eu tudo isso... e muito mais! 
                    No Inconsciente, este
                            herói metafísico diz assim: 
                    Chamam-me Deus há mais de dez mil
                          anos... 
                    Mas
                          eu por mim não sei como me chamo. 
                    N' A  Divina Comédia, os
                            homens queixam-se aos deuses do que sofrem,
                            invetivando-os por os terem criado: 
                    Mas os deuses, com voz ainda mais
                          triste, 
                    Dizem:
                          - Homens! porque é que nos criastes? 
                    Como se vê, houve um progresso. No
                            período anterior a negação era violenta e
                            terminante; agora tem como expressão a
                            ironia, que é uma das formas conhecidas do
                            saber e uma das linguagens da verdade. Eis
                            aí o que a reação moral conseguiu,
                            acompanhada pelo esclarecimento da razão, da
                            inteligência e do conhecimento. O antigo
                            poeta satânico, transformado em niilista,
                            vemo-lo agora na pele de um pessimista
                            sistemático, sorrindo já bondosamente, com a
                            ironia nesses próprios lábios, que, primeiro
                            cobertos de espuma, depois nos apareciam
                            brancos de agonias. 
                    Não tinha eu razão para chamar
                            cíclica a esta coleção de sonetos? Não tem
                            sido este o movimento das ideias, a evolução
                            do pensamento criador na segunda metade do
                            nosso século? 
                    Quando escreveu o primeiro soneto
                            da quarta série (1880-84) 
                    Já sossega, depois de tanta luta, 
                    Já me
                            descansa em paz o coração... 
                    Antero de Quental resolveu
                            destruir todas as suas poesias lúgubres.
                            Sentia remorsos por alguma vez ter estado
                            numa disposição de ânimo que agora
                            considerava com horror. Entendia que esses
                            versos tétricos não podiam consolar ninguém
                            e fariam mal a muita gente. Destruiu-os,
                            pois, com aquela violência própria de um
                            carácter intermitentemente meigo e frenético
                            como o de uma mulher. Desse naufrágio, onde
                            se perderam verdadeiras obras primas, salvei
                            eu as poesias que vão no fim deste ensaio; e
                            salvei-as porque as possuía entre os
                            originais remetidos em cartas, e mais de uma
                            vez como texto de notícias do estado do seu
                            espírito, ou cartas rimadas. 
                    Que espécie de paz era
                            porém essa em que o seu coração descansava?
                            Era o Nirvana: 
                           
                    E quando o pensamento, assim absorto, 
                    Emerge
                          a custo desse mundo morto 
                    E
                          torna a olhar coisas naturais, 
                    À bela luz da vida, ampla, infinita, 
                    Só
                          vê com tédio em tudo que quanto fita 
                    A
                          ilusão e o vazio universais. 
                    O Nirvana
                            é o céu do budismo, a religião mais
                            filosófica e menos fantasmagórica inventada
                            pelos homens. É por este motivo que o
                            budismo atrai hoje em dia todos os espíritos
                            a um tempo racionalistas e místicos, desta
                            época em tudo semelhante à alexandrina,
                            menos no volume do saber positivo, que já se
                            não compadece com muitas das teorias sobre
                            que os neoplatónicos especulavam. A teoria
                            da Substância levou-os a eles a uma conceção
                            do Ser que produziu o mito do Verbo cristão,
                            encarnado popularmente em Jesus Cristo. Ora
                            hoje tudo isso vale apenas como documento
                            histórico, e, por paradoxal que isso pareça,
                            o  Não-Ser é, segundo a
                            metafísica contemporânea, a essência de tudo
                            o que existe. O Absoluto é o Nada. O
                            Universo, a realidade inteira, são
                            modalidades, aspetos fugitivos, que só se
                            tornam verdades racionais quando nos
                            aparecem despidas de todos os acidentes. E
                            como é pelos acidentes apenas que nós,
                            distinguindo-as, as conhecemos, a realidade
                            verdadeiramente e em si é nada. 
                    Religiosamente, Nada é igual a
                            Nirvana; e o budismo é a única religião que
                            atingiu esta conclusão sumária do pensamento
                            científico moderno. O Nirvana é esse estado
                            em que os seres, despindo-se de todas as
                            suas modalidades e acidentes, de todas as
                            condições de realidade, condições que os
                            limitam distinguindo-os entre si, adquirem a
                            não-realidade (o não contingente) e com ela
                            a existência absoluta e a absoluta
                            liberdade. Essa liberdade é o tipo e a
                            essência da vida espiritual; e o Nirvana,
                            puro  Não-Ser
                            para a inteligência, é, para o sentimento
                            moral, o símbolo e o veículo de toda a
                            perfeição e virtude: radicalmente negativo
                            na esfera da razão, é, na esfera do
                            sentimento absolutamente afirmativo. O
                            pessimismo torna-se desta forma um otimismo
                            gigantesco; toda a inércia é condenada, e o
                            sistema das coisas, agitando-se, movendo-se
                            na direção do aniquilamento final, move-se e
                            agita-se no sentido de uma liberdade
                            evolutivamente progressiva, até atingir a
                            plenitude. O Universo é uma grande vida que
                            tem, no termo, o termo de todas as vidas - a
                            morte, idealizada agora e tornada luminosa e
                            apetecível por essa idealização. 
                    Leiam-se
os
                            dois sonetos Redenção, talvez os
                            mais belos de todo o livro, e
                            compreender-se-á melhor o que fica dito.
                            Leia-se o Elogio da Morte, 
                    Dormirei no teu seio inalterável, 
                    Na
                          comunhão da paz universal, 
                    Morte libertadora e
                            inviolável! 
                    e ver-se-á quanto estamos longe do
                            desespero trágico de outros anos. A
                            tempestade acalmou, 
                    Na esfera do invisível, do
                          intangível, 
                    Sobre
                          desertos, vácuo, soledade, 
                    Voa e
                            paira o espírito impassível, 
                    presidindo à evolução dos seres
                            (v. o soneto Evolução), desde a
                            rocha até ao homem, evolução que seria
                            absolutamente inexpressiva se não tivesse um
                            destino, um fim, um ideal. A teoria do
                            progresso indefinido é, com efeito,
                            racionalmente absurda. Esse destino, para os
                            neobudistas, é o Nada transcendente; esse
                            ideal é a Liberdade. A existência está,
                            pois, consagrada racionalmente: falta
                            consagrá-la sentimentalmente. Falta ainda ao
                            sistema medianeiro: é o Amor. 
                    Porém o coração, feito valente 
                    Na
                          escola da tortura repetida, 
                    E
                          no uso do penar tornado crente, 
                    Respondeu: Desta altura vejo o Amor! 
                    Viver
                          não foi em vão, se é isto a vida, 
                    Nem foi demais o desengano e
                            a dor. 
                    O Universo está pois construído e
                            santificado na mente do poeta e na razão do
                            filósofo. Dir-se-á portanto que a quimera,
                            de que a princípio falámos, ficou
                            desvendada, o problema resolvido, conciliada
                            a visão com a razão, e que nos não resta
                            mais do que fazermo-nos todos budistas?
                            Suprema ilusão! Creia-o embora o poeta; eu,
                            como crítico, observando que o pensamento
                            humano, desde que existe e trabalha,
                            progride sempre, com efeito, mas progride em
                            três estradas paralelas que, por serem
                            paralelas, nunca podem encontrar-se,
                            atrevo-me a afirmar a irredutibilidade do
                            misticismo, racional ou imaginativamente
                            concebido, e do naturalismo, ponderada ou
                            orgiacamente realizado. Atrevo-ma a dizer
                            que estes dois feitios ou temperamentos são
                            constitucionais do espírito humano, e que da
                            coexistência necessária deles resulta um
                            terceiro - o cético, o crítico, o que provém
                            da comparação de ambos, e por isso não tem
                            cor, nem é afirmativo; [...] 
                    «Um helenismo coroado por um
                            budismo», eis a fórmula com que mais de uma
                            vez Antero de Quental me tem exprimido o seu
                            pensamento - a sua quimera! Quimera, digo,
                            porque a coroa não nos pode assentar na
                            cabeça, sob pena de a crivar de espinhos e
                            de a deixar escorrendo sangue. Fundar o
                            princípio da ação na inércia sistemática, a
                            realidade no Não-Ser, a vida no
                            aniquilamento, só é praticamente aceitável
                            para o comum dos homens quando acreditem na
                            metempsicose, dogma tão infantilmente mítico
                            do budismo como, v. g., o inferno do
                            cristianismo. Ao cristianismo, porém,
                            tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação
                            semita deu para a sua formação, fica ainda o
                            helenismo, isto é, um idealismo mais ou
                            menos panteísta e uma teoria moral - coisas
                            que eu não afirmo que resistam a uma análise
                            rigorosamente lógica, por isso mesmo que
                            todo o nosso conhecimento racional das
                            coisas assenta apenas sobre axiomas do senso
                            comum - ao passo que, em se tirando a
                            metempsicose ao budismo, o budismo reduz-se
                            a uma névoa de abstrações. 
                    Pobre humanidade, se se visse
                            condenada à coroação budista! Nós, europeus,
                            incapazes de nos sujeitarmos ao regime de
                            contemplação inerte, sofreríamos as agonias,
                            experimentaríamos as aflições do poeta, que,
                            tendo no peito um coração ativo, tem na
                            cabeça uma imaginação mística, e, para
                            obedecer ao pensamento, tortura o coração,
                            sem poder também esmagá-lo sob o manto da
                            inteligência. 
                    Deste
cruel
                            estado vêm os documentos que atestam a
                            transformação sofrida pela ironia dos
                            períodos anteriores. Que nome se há de dar
                            ao sentimento que inspira os sonetos À
                          Virgem Santíssima e o Na Mão de Deus,
                            que fecha o volume? Eu, por mim, chamarei
                            humorismo transcendente a essa liga íntima
                            da piedade  e da ironia, e declaro que
                            nunca vi coisa parecida em verso. [...] 
                    Ó visão, visão triste e piedosa! 
                    Fita-me
                          assim calada, assim chorosa, 
                    E
                          deixa-me sonhar a vida inteira! 
                    A visão é a  Virgem Santíssima, e
                            a poesia é tão sincera, tão verdadeira, tão
                            cheia de piedade e unção, que eu sei de mais
                            de um livro de rezas onde andam cópias
                            escritas. 
                    Dorme o teu sono, coração liberto, 
                    Dorme na mão de Deus
                            eternamente! 
                    Um monge cristão escreveria isto. E
                            Antero de Quental nem é cristão, nem crê em
                            Deus, nem na Virgem, segundo o sentido
                            ordinário da palavra crer. 
                    Blasfemar
era
                            bom noutros tempos; para a ironia também a
                            idade passou; finalmente para o exercício
                          literário nunca se inclinou a pena que o
                            poeta molhou sempre no seu sangue. Como
                            explicar, pois, o fenómeno? 
                    Por
                            acaso subiu já o leitor ao cume de um monte
                            suficientemente alto para que toda a
                            paisagem lhe aparecesse à vista, fundida ao
                            ponto de não distinguir uma árvore de um
                            casal, nem um rio de um vale sem curso de
                            água? Pois sucede assim nas campinas da
                            história do pensamento humano, quando as
                            olhamos das cumeadas luminosas da crítica.
                            Veem-se as coisas na sua essência, não
                            importam os acidentes. O fetiche que o
                            selvagem adora, a imagem perante a qual se
                            prostra o comum dos crentes, o arquiteto
                            universal dos pensadores livres, e
                            finalmente esse quid inominado a que
                            a filosofia moderna chamou Inconsciente -
                            tudo isso é igualmente Deus: somente é Deus
                            percebido pela inteligência vulgar, Deus
                            percebido pelo saber incipiente, e Deus
                            finalmente incompreendido, mas sentido, pela
                            sabedoria. E todas essas modalidades de uma
                            mesma impressão, recebida e representada de
                            forma diversa, consoante a natureza e o
                            estado de educação dos homens, são
                            igualmente verdadeiras, igualmente santas e
                            igualmente humorísticas, para aquele que tem
                            coração para sentir as coisas por dentro e
                            olhos para as ver de fora - objetivamente,
                            como os alemães dizem, e nós diremos
                            criticamente. 
                    Eis aí a suprema liberdade do
                            espírito, o Nirvana apenas intelectual, a
                            que eu prefiro chamar impassibilidade
                            subjetiva: um estado que permite compreender
                            todas as coisas, analisando-as e
                            classificando-as, sem todavia nos transmitir
                            essa espécie de frialdade de coração,
                            própria dos naturalistas quando estudam uma
                            rocha, uma planta ou um animal. O filósofo,
                            impassível ao analisar e classificar os
                            fenómenos do espírito humano, há de misturar
                            ao sorriso que provocam todas as vaidades e
                            ilusões o amor que merecem todos os
                            sentimentos ingénuos e fundamentalmente
                            bons; há de aliar à compreensão da nulidade
                            extrínseca das coisas a compreensão da sua
                            excelência intrínseca; exigindo que o homem
                            seja ativo, porque a atividade é boa por ser
                            indispensável à saúde do espírito, embora os
                            objetos da atividade sejam as mais das vezes
                            írritos e nulos, quando considerados em si
                            próprios e isoladamente. 
                    E
                            eis aí as razões por que não sou budista...
                            nem Antero de Quental o é, embora julgue
                            sê-lo. A evolução dolorosa que terminou com
                            o seu último soneto, esta longa e
                            tempestuosa viagem através do mar tenebroso
                            da fantasia metafísica, parece ter
                            concluído. A idade, talvez, acima de tudo,
                            trouxe ao espírito do poeta uma paz
                            iluminada de bondade e sabedoria: e como a
                            sua alma é sã e a sua inteligência firme e
                            sempre ativa, é mais que provável que o
                            declinar da vida de Antero de Quental
                            enriqueça o pecúlio, por sinal bem pobre, da
                            filosofia portuguesa com algum trabalho tão
                            digno de se conservar na memória dos tempos
                            como estes Sonetos,
                            que são as amargas flores de uma mocidade.
                            Esse trabalho, porém, não será um catecismo
                            budista, não pode ser nenhuma revelação
                            milagrosa do verdadeiro sistema,
                            porque a sabedoria nos diz que toda a
                            pretensão da Verdade é ilusória, pois sendo
                            nós, a nossa inteligência, os nossos
                            pensamentos, simples e fugitivas
                            contingências, é loucura pensar que jamais
                            possamos definir o Absoluto. Cada qual
                            sente-o a seu modo, segundo o seu
                            temperamento; e sábio é aquele que se limita
                            a registar as relações das coisas. 
                    III 
                    Quem diante destes versos não
                            sentir elevar-se-lhe o espírito, como numa
                            oração, àquela espécie de Deus que é
                            compatível com o seu temperamento ou com o
                            estado de educação do seu pensamento, é
                            porque tem dentro do peito, no lugar do
                            coração, um seixo polido e frio. Quem, no
                            meio do lidar da vida, roçando os braços
                            pelas arestas cortantes que a eriçam de
                            ângulos, pousar o olhar da alma sobre um
                            destes sonetos e não sentir o que os
                            sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de
                            água límpida, é porque tem a alma feita
                            apenas de egoísmo. Quem, emergindo dos
                            montões de papelada que as imprensas vomitam
                            diariamente, deitar os olhos sobre estas
                            páginas e não sentir o deslumbramento que os
                            diamantes produzem, é porque a sua vista se
                            embaciou com o exame dos livros grosseiros
                            em todo o sentido, e a sua língua perdeu o
                            hábito de falar português. Um dos nossos
                            queridos amigos, um dos que conhecem de
                            perto Antero de Quental - e somente o
                            conhece quem com ele viveu largo tempo na
                            intimidade -, interroga-me geralmente deste
                            modo: «E santo Antero, como vai?» 
                    Di-lo com a convicção quente dos
                            artistas, mas eu, que o não sou, tenho a pôr
                            embargos, porque a santidade não é planta
                            adequada ao clima do nosso tempo. Exige uma
                            porção de sentimento ingénuo que já não há
                            nos ares que respiramos. 
                    A vida contemplativa, porém, a vida
                            asceta inclusivamente: essa virtude austera
                            para consigo, tolerante para com tudo e para
                            com todos; esse observar constante de si
                            próprio e o dispensar de um sorriso sempre
                            bom, embora indiferente com frequência, aos
                            que alguma vez o rodeiam; a caridade, o
                            amor, a abnegação, as tentações, as crises,
                            as lágrimas, as aflições, as dúvidas
                            cruciantes e as dores angustiosas: tudo o
                            que, reunido, forma uma mística - tudo isso
                            mora na alma deste poeta arrebatada pela
                            visão inextinguível do Bem. 
                    Só no meu coração, que sondo e meço, 
                    Não
                          sei que voz, que eu mesmo desconheço, 
                    Em segredo protesta e afirma
                            o Bem. 
                    E para nada faltar a este místico,
                            anacronicamente perdido no meio do
                            burburinho de um século ativo até à
                            demência, tem também uma fé ardente - uma fé
                            budista. Somente o seu Deus, Deus sem
                            vontade, sem inteligência e sem consciência,
                            é para nós outros, a quem são vedados os
                            mistérios da metafísica budista, igual a
                            coisa nenhuma. 
                    Este homem, fundamentalmente bom,
                            se tivesse vivido no século VI ou no século
                            XIII, seria um dos companheiros de S. Bento
                            ou de S. Francisco de Assis. No século XIX é
                            um excêntrico, mas desse feitio de
                            excentricidade que é indispensável, porque a
                            todos os tempos foram indispensáveis os
                            hereges, a que hoje se chama dissidentes. 
                    Oliveira Martins, in A 
                            GERAÇÃO DE 70, Antero de Quental, Sonetos,
                          Círculo de Leitores, 1987  
                    topo  
                    
                         
                    Missão Social e Moral da Poesia
                              e da Arte 
                     
                    A
                          primeira edição das Odes Modernas,
                          1865, traz uma nota final Sobre a Missão
                            Revolucionária da Poesia [recolhida em Prosas,
                          I, pp. 306-315]. Logo no primeiro parágrafo, a
                          poesia é caracterizada como sendo «a confissão
                          sincera do pensamento mais íntimo de uma
                          idade», donde se infere que «a poesia moderna
                          é a voz da Revolução - porque revolução é o
                          nome que o sacerdote da história, o tempo,
                          deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso
                          século». Esta conceção está de acordo com uma
                          série de folhas volantes que desde 1862
                          imprimia para distribuição no Teatro
                          Académico, em saraus dominados pela intenção
                          de homenagem a Itália de Garibaldi, como
                          mostra António Salgado Júnior num muito seguro
                          prefácio para Raios de Extinta Luz. (1) Segundo
                          essa Nota, já muito tocada por Proudhon, que
                          doravante será sempre o maior «mestre»
                          reconhecido de Antero, é a própria burguesia
                          que, meio século após o seu triunfo, se
                          esfacela e, involuntariamente, prepara a
                          transformação iminente. «Não há já mão que a
                          possa salvar. O seu nome é contradição.
                          Contradição de desejos e condições.
                          Contradição de palavras e obras.» É certo que
                          a Revolução social ainda poderia aos
                          portugueses parecer muito distante, por
                          viverem ainda «fora da história e do
                          progresso». Mas nem por isso deixaria de lhes
                          chegar «essa onda misteriosa», preparada pelos
                          «apóstolos de um Evangelho tão grande que pode
                          conter no seu seio todos quantos têm [...]
                          pregado ao norte e ao sul, os Cristos de todas
                          as raças e de todas as cores. [...]
                          Reconstrução do mundo humano sobre as bases
                          eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com
                          exclusão dos Reis e de Governos tirânicos, de
                          Deus e Religiões inúteis e ilusórias - é este
                          o mais alto desejo, a aspiração mais santa
                          desta sociedade tumultuosa. [...] Esta voz, se
                          é a mais alta, deve ser também a mais poética.
                          A poesia que quiser corresponder ao sentir
                          mais fundo do seu tempo, hoje, tem
                          forçosamente de ser uma poesia revolucionária.
                      Que importa que a
                          palavra não pareça poética às vestais
                          literárias do culto da arte pela arte? (2) 
                      É ainda no estilo
                          tribunício deste posfácio que, quatro meses
                          mais tarde (ou seja, em novembro de 1865), se
                          dirige num folheto de carta aberta a António
                          Feliciano de Castilho que deu o nome à mais
                          intensa polémica literária portuguesa: Bom Senso e Bom Gosto.
                          (3)
                          Bastara uma alusão desdenhosa de Castilho aos
                          poemas recém-publicados de Teófilo Braga e
                          Antero (4)
                          para que este reagisse como se tivesse
                          perigado a sua «liberdade absoluta», a sua
                          independência de «homem sem pretensões
                          literárias». Deixando de lado o muito que tal
                          folheto tem de puramente oratório e agressivo,
                          registemos apenas que «a imensa missão do
                          escritor» é aí concebida como «um sacerdócio,
                          um ofício público e religioso»; que, nos seus
                          termos, a primeira «condição da grandeza, da
                          beleza, da bondade, não é o talento, nem a
                          ciência, nem a experiência: é a elevação moral
                          [...] a dignidade do pensamento e do
                          carácter». Castilho é visado como «mero
                          adorador da palavra», desprezador da «ideia
                          que custa muito e nada luz», como simples
                          imitador e efeitador de «ninharias luzidias».
                          Ora a época era de «transformação dolorosa.
                          (...) Refundem-se as crenças antigas. Geram-se
                          com esforço novas ideias. Desmoronam-se velhas
                          religiões. [...] Há toda uma humanidade em
                          dissolução, de que é preciso extrair uma
                          humanidade viva, sã, crente e formosa. [...]
                          Todavia quem pensa e sabe hoje na Europa não é
                          Portugal, não é Lisboa [...] é Paris, é
                          Londres, é Berlim». O foliculário menciona
                          então os seus mestres e novas disciplinas, «a
                          filosofia alemã, a crítica francesa [da
                          religião], o positivismo, o naturalismo, a
                          [filosofia da] história e a metafísica»,
                          cifrando tudo isto numa palavra-chave que
                          Castilho ridicularizara: o Ideal. 
                    Logo
                          no mês seguinte (dezembro de 1865) Antero
                          volta à estacada com um novo folheto, A
                            Dignidade das Letras e as Literaturas
                            Oficiais, que em apêndice faz uma
                          crítica, quase toda ela justa e ponderada, à
                          obra literária de Castilho, então patriarca
                          abonador de diversos epígonos do primeiro
                          Romantismo português. A sua nota mais
                          insistente é a da responsabilidade dos
                          escritores e dos artistas, «que fazem a
                          corrupção e a grandeza das épocas», a sua
                          responsabilidade perante a Nação. «Mas a
                          nação, a nação verdadeira, não sois vós,
                          senhores do funcionalismo, parasitas ociosos,
                          improdutivos. A nação portuguesa são três
                          milhões de homens que trabalham, suam,
                          produzem, ativos e honrados» e que apenas
                          conhecem o Governo para o maldizer, e nem
                          sequer sabem os nomes dos pretensos «grandes
                          homens [...] a três léguas das vossas
                          academias e das vossas redações». 
                    Antero
                          não mais deixará de conceber-se investido de
                          uma grande responsabilidade como escritor,
                          mesmo quando substitui o Ideal revolucionário
                          por um «novo misticismo». Pois com efeito a
                          sua conceção histórica da poesia e da arte
                          oscilará entre dois extremos. Em 1865, como
                          vimos, pensa que a poesia revolucionária, voz
                          mais íntima do seu tempo, seria também «a mais
                          alta» e por isso «a mais poética». Num
                          prefácio do mesmo ano, vê-a mesmo como «a
                          ciência do Ideal». (5)
                          E num artigo pouco mais ou menos do mesmo
                          período considera a arte como eterna, síntese
                          imperecível da Ciência e da Religião, ambas
                          perecíveis, como Espírito em que se fundem e
                          culminam a Alma e a Natureza. (6)
                          Sem embargo disso, e por influência indireta
                          da dialética racionalista de Hegel, da
                          conceção genética do espírito humano vinda de
                          G. Vico através do seu tradutor e admirador
                          Michelet, e ainda de outros ideólogos então
                          muito influentes, como P.-C. E. Pelletan (Profession
                            de foi du XIX siècle, 1852), já em 1866
                          Antero se mostra convicto de que a música
                          (Antero preferiu sempre as artes rítmicas às
                          artes plásticas) desaparecerá um dia com a
                          racionalização da vida social, pois ela seria
                          expressão de um conflito tipicamente moderno:
                          «Este contraste inaudito de esperança sem
                          termo e profunda melancolia, este paradoxo do
                          maior desejo e a maior desgraça, unidos num
                          mesmo sentimento e dentro do coração, é isto
                          que faz a alta originalidade do espírito dos
                          últimos três séculos, o fundo mesmo da alma
                          moderna.» (7)
                          E ainda em 1881 abraça a ideia de Vico segundo
                          a qual a poesia, contemporânea da «produção
                          das línguas e dos mitos», reduzir-se-á, graças
                          ao progresso científico, «à expressão isolada
                          de sentimentos muito pessoais e muito
                          limitados», pois «a alta poesia, épica,
                          lírica» - essa irmã da metafísica e da
                          religião -, terá assim desaparecido. (8)
                          Salta à vista que estas conceções colidem com
                          a primazia que por diversas vezes Antero
                          atribui ao sentimento sobre a razão. (9) 
                         
                    Há
                          ainda um ponto importante a consignar na
                          atividade teorética e crítica de Antero com
                          respeito à função social da literatura e da
                          Arte. A geração da Questão
                            Coimbrã de 1865 e das Conferências Democráticas
                          de 1871 é muitas vezes ligada à teoria e
                          prática do realismo. Esta
                          conotação carece de várias especificações,
                          mormente pelo que se relaciona com o nosso
                          poeta. Em primeiro lugar, a apologia, a
                          preceituação e o exercício do realismo tinham já, por
                          finais do decénio de 1860, conciliado diversas
                          adesões, antes da intervenção de Eça de
                          Queirós nas Conferências Democráticas
                          que constitui o primeiro manifesto em forma da
                          nova estética. Balzac foi, em geral, pouco
                          prezado pelos românticos portugueses da
                          primeira geração, mas na carreira do (mais)
                          consagrado novelista, Camilo Castelo Branco, o
                          aproveitamento da melhor técnica balzaquiana é
                          evidente desde cerca de 1855, e a qualificação
                          de realista era já favoravelmente
                          atribuída a obras da chamada «escola do elogio
                          mútuo» de Castilho, na barricada oposta à de
                          Antero na Questão Coimbrã. (10) A teoria do
                          realismo exposta por Eça de Queirós em 1871,
                          quer na conferência sobre «O Realismo como nova
                            expressão da Arte» quer em textos
                          contemporâneos no folheto periódico As
                            Farpas, baseia-se afinal numa obra que
                          Antero impusera ao estudo dos companheiros de
                          Cenáculo: De la
                            justice dans la révolution et dans l' église,
                          3 vols., 1958, P.-J. Proudhon. (11)
                          Antero nem sempre acompanhou o realismo tal
                          como foi praticado por Eça de Queirós.
                          Encontram-se ácidas críticas aos realistas, e
                          nomeadamente a Eça de Queirós, em várias
                          cartas. (12)
                          No entanto Antero reconhece os méritos do
                          realismo. São várias as referências a leituras
                          em curso, ou em projeto, de Balzac, cujos
                          romances admira profundamente. (13) 
                           
                         
                    
                       (1) Trata-se da 3.ª
                          edição, muito modificada, desta recolha
                          póstuma, Lisboa, 1948, pp. V-XLII. 
                        (2) Nota cit., Prosas,
                          I, especialmente pp. 306 e 313-315. 
                          (3) Recolhido em Prosas,
                          I, pp. 330-347. 
                        (4) Visão dos Tempos e
                            Tempestades Sonoras, 1864, de Teófilo, Odes
                            Modernas, ob. ci. de Antero. 
                          (5) Introdução a Cantos na
                            Solidão de Manuel Ferreira da Portela,
                          incluso em Prosas, I, pp. 316-321. 
                        (6) «Arte e verdade», inserto
                          em Prosas, I, pp. 322-329. 
                        (7) «O futuro da música», in O
                            Instituto, vol. XIII, n.º 10, Coimbra,
                          1866, recolhido em Prosas, II, pp.
                          26-46. 
                          (8) A Poesia na Atualidade,
                          opúsculo impresso no Porto, 1881, e incluído
                          em Prosas, II, pp. 310-326. 
                        (9) A expressão mais cabal do
                          primado da poesia como «evidência da alma» no
                          âmbito do primado e sobrevivência do
                          sentimento em relação às ideias encontra-se
                          numa longa carta não datada a Anselmo de
                          Andrade, Cartas, 1.ª ed., IX, pp.
                          22-35. 
                        (10) António José Saraiva e
                          Óscar Lopes, História da Literatura
                            Portuguesa, 12.ª ed., Porto, 1979, pp.
                          827 e seguintes. 
                          (11) Vejam-se, nomeadamente,
                          os capítulos VII e VIII do Neuvième Étude,
                          «Progrès et Décadence», que na edição anotada
                          de 1930-1935, em 4 vols., figuram no vol. III,
                          pp. 582-648; e veja-se ainda de P.-J. Proudhon
                          Du principe de l' art et de sa destination
                            sociale, Paris, 1865, cuja influência é
                          ainda mais sensível na exposição de Eça.
                          Estudo fundamental a este respeito: António
                          Salgado Júnior, História das Conferências
                            do Casino, Lisboa, 1930. 
                          (12) Cartas a António de
                            Azevedo Castelo Branco, Lisboa, 1942,
                          XXIV, de 1875, pp. 81-83, e XXVII, de
                          24-2-1876, pp. 97-99; Cartas, 1.ª ed.,
                          Porto, 1915, CXI, a José Félix Pereira, de
                          24-9-1880, p. 216; XVIII, de 25-7-1873, pp.
                          78-81. Cartas Inéditas de Antero de
                            Quental a Oliveira Martins, Coimbra,
                          1931, nomeadamente XV, pp. 33-34. 
                          (13) Cartas, ob. cit.,
                          LIV, a Germano Meireles, 1886, pp. 138-139:
                          «Os romances de Balzac são uma verdadeira
                          história íntima do nosso século, e tenho
                          admirado como em certas coisas capitais (como
                          a influência da bancocracia, a anarquia do
                          livre-câmbio, as ilusões do
                          constitucionalismo, etc.) a sua observação
                          despreocupada da sociedade se encontra e
                          concorda com a crítica sistemática do grande
                          Proudhon.» Ver ainda ibidem, XXII, a
                          Cândido de Figueiredo, de 1-5-1870, pp. 60-86,
                          onde contradiz Cousin e os espiritualistas
                          franceses quanto ao preceito da
                          intemporalidade clássica, nomeadamente no
                          teatro de Schiller, e sustenta, de acordo com
                          uma linha teorética romântico-realista, que as
                          personagens não podem «viver sem pátria nem
                          idade certa», sob pena de se reduzirem a «uma
                          abstracção» sem vida ou existência possível.
                          Em Cartas Inéditas de Antero de Quental a
                            Oliveira Martins, XXXIII, de 5-2-1877,
                          pp. 72-73, pede ao amigo a aquisição de quatro
                          romances de Balzac. 
                    
                      Lopes,
                            Óscar, Antero de Quental - Vida
                              e Legado de uma Utopia, Editorial
                            Caminho, Lisboa, 1983 
                      topo
                       
                         
                    Carta Biográfica a Wilhem Stork 
                     
                    Ponta Delgada (Ilha de S. Miguel,
                          Açores) 
                    24
                          de Maio de 1887 
                    Ex.mo Sr.: 
                    Só agora me chegou às mãos a sua
                          estimada carta de 23 de abril último, pelo
                          facto de me encontrar, há dois meses, nesta
                          ilha (que é a minha pátria) trazido aqui por
                          urgentes negócios de família. A demora das
                          comunicações com o continente explica este
                          atraso.    
                    Agradeço
                          a V. Ex.ª as amáveis e para mim tão honrosas
                          expressões de sua carta, e nada me pode ser,
                          como poeta e como homem, mais grato do que o
                          apreço que um tal mestre e crítico manifesta
                          pelas minhas composições, ao ponto de querer
                          ser meu intérprete e introdutor junto do
                          público o mais culto do mundo e que mais
                          direito tem a ser exigente. Discípulo da
                          Alemanha filosófica e poética, oxalá que ela
                          receba com benignidade essas pobres flores,
                          que uma semente sua, trazida pelo vento do
                          século, faz desabrochar neste solo pouco
                          preparado. Qualquer que seja a sua fortuna,
                          toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil
                          espírito, que generosamente me
                            toma pela mão, para me apresentar. 
                            
                    As
                          informações biográficas e bibliográficas que
                          V. Ex.a me pede, podem reduzir-se ao seguinte:
                          nasci nesta ilha de S. Miguel, descendente de
                          uma das mais antigas famílias dos seus
                          colonizadores, em abril de 1842, tendo por
                          conseguinte perfeito 45 anos. Cursei, entre
                          1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo
                          por ela bacharel formado em Direito. Confesso,
                          porém, que não foi o estudo do Direito que me
                          interessou e absorveu durante aqueles anos,
                          tendo sido e ficando um insignificante
                          legista.    
                    O facto
                          importante da minha vida, durante aqueles
                          anos, e provavelmente o mais decisivo dela,
                          foi a espécie de revolução intelectual e moral
                          que em mim se deu, ao sair, pobre criança
                          arrancada do viver quase patriarcal de uma
                          província remota e imersa no seu plácido sono
                          histórico, para o meio da irrespeitosa
                          agitação intelectual de um centro, onde mais
                          ou menos vinham repercutir-se as encontradas
                          correntes do espírito moderno. Varrida num
                          instante toda a minha educação católica e
                          tradicional, caí num estado de dúvida e
                          incerteza, tanto mais pungentes quanto,
                          espírito naturalmente religioso, tinha nascido
                          para crer placidamente e obedecer sem esforço
                          a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção,
                          estado terrível de espírito, partilhado mais
                          ou menos por quase todos os da minha geração,
                          a primeira em Portugal que saiu decididamente
                          e conscientemente da velha estrada da
                          tradição.   
                    Se a
                          isto se juntar a imaginação ardente, com que
                          em excesso me dotara a natureza, o acordar das
                          paixões amorosas próprias da primeira
                          mocidade, a turbulência e a petulância, os
                          fogachos e os abatimentos de um temperamento
                          meridional, muito boa fé e boa vontade, mas
                          muita falta de paciência e método, ficará
                          feito o quadro das qualidades e defeitos com
                          que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo do
                          pensamento e da poesia.    
                    No meio
                          das católicas leituras a que então me
                          entregava, devorando com igual voracidade
                          romances e livros de ciências naturais, poetas
                          e publicistas e até teólogos, a leitura do Fausto de Goethe (na tradução
                          francesa de Blaze de Bury) e o livro de
                          Rémusat sobre a nova filosofia alemã exerceram
                          todavia sobre o meu espírito uma impressão
                          profunda e duradoura: fiquei definitivamente
                          conquistado para o germanismo; e,
                          se entre os franceses, preferi a todos
                          Proudhon e Michelet, foi sem dúvida por serem
                          estes dois os que mais se ressentem do
                          espírito de além-Reno. Li depois muito de He
                          gel, nas traduções francesas de Vera (pois só
                          mais tarde é que aprendi alemão); não sei se o
                          entendi bem, nem a independência do meu
                          espírito me consentia ser discípulo: mas é
                          certo que me seduziam as tendências grandiosas
                          daquele estupenda síntese. Em todo o caso o
                          hegelianismo foi o ponto de partida das minhas
                          especulações filosóficas, e posso dizer que
                          foi dentro dele que se deu a minha evolução
                          intelectual.    
                    Como
                          acomodava eu este culto pelas doutrinas do
                          apologista do Estado prussiano, com o
                          radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet
                          e Proudhon? Mistérios da incoerência da
                          mocidade! O que é certo é que, revestido com
                          esta armadura mais brilhante do que sólida,
                          desci confiado para a arena: queria reformar
                          tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio
                          caminho da formação de mim mesmo! Consumi
                          muita atividade e algum talento, merecedor de
                          melhor emprego, em artigos de jornais, em
                          folhetos, em proclamações, em conferências
                          revolucionárias: ao mesmo tempo que conspirava
                          a favor da União Ibérica, fundava com a outra
                          mão sociedades operárias e introduzia, adepto
                          de Marx e de Engels, em Portugal a Associação
                          Internacional dos Trabalhadores. Fui durante
                          uns sete ou oito anos uma espécie de pequeno
                          Lassalle, e tive a minha hora de vã
                          popularidade.    
                    Do que
                          publiquei por esse tempo, aí vai o que ainda
                          posso lembrar. O meu primeiro folheto é do ano
                          de 1864. Intitula-se: Defesa da
                            Carta Encíclica de S. S. Pio
                            IX contra a Chamada Opinião Liberal. É
                          um protesto contra a falta de lógica com que
                          as folhas liberais atacavam o Syllabus,
                          declarando-se ao mesmo tempo fiéis
                          católicos. O autor, glorificando o Pontífice
                          pela beleza da sua atitude intransigente em
                          face do século, via nessa intransigência uma
                          lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a Igreja
                          condenada pela mesma grandeza da sua
                          instituição a cair inteira mas não a
                          render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais
                          liberais.    
                    O meu
                          último folheto é de 1871. Intitula-se: Carta ao Ex.mo Marquês de' Ávila e
                            Bolama, sobre a Portaria Que Mandou Fechar
                            as Conferências do Casino Lisbonense. As
                           Conferências Democráticas
                          tinham sido fundadas por mim com o concurso de
                          homens moços (que quase todos têm hoje nome na
                          política) e eram muito frequentadas pelo escol
                          da classe operária. Pareceram perigosas ao
                          Governo, que arbitrariamente as mandou fechar.
                          O meu folheto parece que concorreu, segundo se
                          disse, para a queda do ministério, que, de
                          resto, não ,podia durar muito, sendo dos
                          chamados de transição. E uma diatribe, mas
                          eloquente.    
                    Entre
                          esses dois extremos, coloca-se a famosa Questão Literária ou a Questão de Coimbra, que
                          durante mais de seis meses agitou o nosso
                          pequeno mundo literário, e foi o ponto de
                          partida da atual evolução da literatura
                          portuguesa. Os novos datam
                          todos de então. O hegelianismo dos coimbrões
                          fez explosão.    
                    O velho
                          Castilho, o árcade póstumo, como então lhe
                          chamaram, viu a geração nova insurgir-se
                          contra a sua chefatura anacrónica. Houve em
                          tudo isto muita irreverência e muito excesso;
                          mas é certo que Castilho, artista primoroso
                          mas totalmente destituído de ideia, não podia
                          presidir, como pretendia, a uma geração
                          ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava
                          a uma nova direção, a orientar-se
                          como depois se disse, nas correntes do
                          espírito da época. Havia na mocidade uma
                          grande fermentação intelectual, confusa,
                          desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não
                          compreendia, julgou poder suprimi-la com
                          processos de velho pedagogo. lnde
                            irae. Rompi eu o fogo com o folheto Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao
                            Ex.mo A. F. de Castilho. Seguiu-se
                          Teófilo Braga, seguiram-se depois muitos
                          outros, la mêlée devint générale.
                          Todo o inverno de 1865 a 66 se passou
                          neste batalhar. Quando o fumo se dissipou, o
                          que se viu mais claramente foi que havia em
                          Portugal um grupo de dezasseis a vinte
                          rapazes, que não queriam saber da Academia nem
                          dos académicos, que já não eram católicos nem
                          monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel
                          como os velhos tinham falado de Chateaubriand
                          e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os
                          outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes
                          bárbaros e ciências desconhecidas, como
                          glótica, filologia, etc., que inspiravam
                          talvez pouca confiança pela petulância e
                          irreverência, mas que inquestionavelmente
                          tinham talento e estavam de boa-fé e que, em
                          suma, havia a esperar deles alguma cousa, quando assentassem.  
                           
                    Os
                          factos confirmaram esta impressão: os dez ou
                          doze primeiros nomes da literatura de hoje
                          saíram todos (salvos dois ou três) da Escola
                          Coimbrã ou da influência dela. O germanismo
                          tomara pé em Portugal. Abrira-se uma nova era
                          para o pensamento português. O velho Portugal
                          ainda conservado artificialmente por uma
                          literatura de convenção morrera
                          definitivamente. Desta espécie de revolução
                          fui eu o porta-estandarte, com o que me não
                          desvaneço sobremaneira, mas do que também não
                          me arrependo. Se a uma ordem artificial se
                          seguiu uma espécie de anarquia, é isso ainda
                          assim preferível, porque uma contém gérmenes
                          de vida, e da outra nada havia a esperar.
                          Pertence ainda a essa época o folheto: Dignidade das Letras e Literaturas
                            Oficiais.    
                    Durante
                          o ano de 1867 e parte de 68 viajei em França e
                          Espanha e visitei os Estados Unidos da
                          América. No fim desse ano de 68 publiquei o
                          folheto: Portugal perante a
                            Revolução de Espanha. Advogava aí a
                          União Ibérica por meio da República Federal,
                          então representada em Espanha por Castellar,
                          Pi y Margall e a maioria das Cortes
                          Constituintes. Era uma grande ilusão, da qual
                          porém só desisti ( como de muitas outras desse
                          tempo) à força de golpes brutais e repetidos
                          da experiência. Tanto custa a corrigir um
                          certo falso idealismo nas cousas da sociedade!
                             
                    O meu Discurso sobre as Causas da
                            Decadência dos Povos Peninsulares nos
                            Séculos XVII e XVIII, embora pisasse um
                          terreno mais sólido, o terreno da História,
                          ressente-se ainda muito da influência das
                          ideias políticas preconcebidas, da crítica
                          histórica com tendências. E
                          do ano de 1871.    
                    Nesse
                          ano e no seguinte tomei parte ativa no
                          movimento socialista, que se iniciava em
                          Lisboa, e tanto nessa cidade como no Porto
                          escrevi bastante nos jornais políticos.
                          Incidentemente publiquei, num pequeno volume,
                          uma série de estudos com o título de Considerações sobre a Filosofia da
                            História Literária Portuguesa. Creio
                          que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou
                          pelo menos, de mais razoável em prosa.
                          Confesso sinceramente que dou muito pouca
                          importância a todos esses meus escritozinhos
                          de ocasião, e até, às vezes, preciso de certa
                          força de reflexão para não me envergonhar de
                          ter publicado tanta cousa pouco pensada. E
                          todavia era aplaudido! Porquê? Em primeiro
                          lugar, creio eu, porque os que me aplaudiam
                          não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do
                          que eu. Em segundo lugar, porque me concedeu a
                          natureza o dom da prosa portuguesa, não da
                          prosa de convenção, arremedando o estilo dos
                          séculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o
                          seu tipo na língua viva e falada hoje,
                          analítica já nos movimentos da frase, mas na
                          linguagem ainda e sempre portuguesa. Isso
                          agradou, porque era o que convinha e, em suma,
                          acabei por ser citado como modelo da prosa
                          moderna! É certo porém que tudo aquilo são
                          escritinhos de ocasião e que, em prosa, não
                          produzi ainda o que se chama uma
                            obra, isto é, uma cousa original,
                          pessoal e aprofundada. Há muito tempo que sei
                          escrever, mas foi-me necessário chegar aos 45
                          anos para ter que escrever. Por isso, deixemos
                          toda essa farragem que não cito senão para
                          corresponder ao desejo de V. Ex.a
                          na matéria bibliográfica. E passemos aos
                          versos.    
                    Além da
                          coleção de sonetos que V. Ex.a
                          conhece, publiquei ainda mais dois volumes.
                          Um, de 1872, com o título de Primaveras
                            Românticas contém os meus Juvenília,
                          as poesias de amor e fantasia, compostas
                          na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que
                          andavam dispersas por várias publicações
                          periódicas, e que só em 72 reuni em volume,
                          juntamente com mais alguma cousa posterior, de
                          mesmo carácter e estilo. Talvez a melhor
                          maneira de caracterizar esse volume será dizer
                          em francês que é du Heine de
                            deuxième qualité. Como muitas pessoas,
                          por cá, têm achado essa semelhança, por isso a
                          indico. A segunda secção dos Sonetos
                              Completos que não contém senão
                          composições desse período dará a V. Ex.a
                          uma ideia suficiente do fundo e do estilo
                          daquela poesia: assim como a terceira secção
                          lhe dará ideia das Odes Modernas,
                          cuja primeira edição apareceu em 1865. Não
                          sei bem como caracterizar este livro: não é
                          certamente medíocre; há nele paixão sincera e
                          elevação de pensamento; mas além de
                          declamatória e abstrata, por vezes aquela
                          poesia é indistinta, e não define bem e
                          tipicamente o estado de espírito que a
                          produziu. O que ela representa perfeitamente é
                          a singular aliança, a que atrás me referi já,
                          do naturalismo hegeliano e do humanitarismo
                          radical francês. Acima de tudo é, como dizem
                          os franceses, poesia de combate;
                          o panfletário divisa-se muitas vezes por
                          detrás do poeta, e a Igreja, a monarquia, os
                          grandes do mundo, são o alvo das suas
                          apóstrofes de nivelador idealista. Noutras
                          composições, é verdade, o tom é mais calmo e
                          patenteia-se nelas a intenção filosófica do
                          livro, vaga sim, mas humana e elevada. A
                          novidade, o arrojo, talvez a mesma
                          indeterminação do pensamento, apenas vagamente
                          idealista e humanitária, fizeram a fortuna do
                          livro, junto da geração nova, o que prova pelo
                          menos que veio no seu momento: é
                          tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este
                          ciclo os sonetos compreendidos na secção dos Sonetos Completos, muitos
                          dos quais já entraram nas Odes
                            Modernas. Em 1874 teve este livro uma
                          segunda edição muito correta e contendo várias
                          composições novas que considero, tal como é e
                          com todos os defeitos inerentes à própria
                          essência do género, como definitiva.  
                         
                    Nesse
                          mesmo ano de 1874 adoeci gravissimamente, com
                          uma doença nervosa de que nunca mais pude
                          restabelecer-me completamente. A forçada
                          inação, a perspetiva da morte vizinha, a ruína
                          de muitos projetos ambiciosos e uma certa
                          acuidade de sentimentos, própria da nevrose,
                          puseram-me novamente, e mais imperiosamente do
                          que nunca, em face do grande problema da
                          existência. A minha antiga vida pareceu-me vã
                          e a existência em geral incompreensível. Da
                          luta que então combati, durante cinco ou seis
                          anos, com o meu próprio pensamento e o meu
                          próprio sentimento que me arrastavam para um
                          pessimismo vácuo e para o desespero, dão
                          testemunho, além de muitas poesias, que depois
                          destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira
                          Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as
                          composições que perfazem a quarta secção (de
                          1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as V.
                          Ex.a, não preciso comentá-las. Direi somente
                          que esta evolução de sentimento correspondia a
                          uma evolução de pensamento. O naturalismo,
                          ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o
                          de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções
                          verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o
                          sentimento, no que ele tem de mais profundo,
                          por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e
                          só aparente; no fundo não é mais do que um
                          paganismo intelectual e requintado. Ora eu
                          debatia-me desesperadamente, sem poder sair do
                          naturalismo, dentro do qual nascera para a
                          inteligência e me desenvolvera. Era a minha
                          atmosfera, e todavia sentia-me asfixiar dentro
                          dela. O .naturalismo, na sua forma empírica e
                          científica, é o struggle for
                            life, o horror duma luta universal no
                          meio da cegueira universal; na sua forma
                          transcendente é uma dialética gelada e inerte,
                          ou um epicurismo egoistamente contemplativo.
                          Eram estas as consequências que eu via sair da
                          doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora que a
                          interrogava com a seriedade e a energia de
                          quem, antes de morrer, quer ao menos saber
                          para que veio ao mundo.    
                    A reação
                          das forças morais e um novo esforço do
                          pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo
                          tempo que percebia que a voz da consciência
                          moral não pode ser a única voz sem
                          significação no meio das vozes inúmeras do
                          Universo, refundindo a minha educação
                          filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer
                          na História, a confirmação deste ponto de
                          vista; Voltei a ler muito os filósofos,
                          Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo às
                          origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant.
                          Li ainda mais os moralistas e místicos antigos
                          e modernos, entre todos a Teologia
                            Germânica e os livros budistas. Achei
                          que o misticismo, sendo a última palavra do
                          desenvolvimento psicológico, deve
                          corresponder, a não ser a consciência humana
                          uma extravagância no meio do Universo, à
                          essência mais funda das cousas.  
                         
                    O
                          naturalismo apareceu-me, não já como a
                          explicação última das cousas, mas apenas como
                          o sistema exterior, a lei das aparências e a
                          fenomenologia do Ser . No psiquismo,
                          isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que
                          encontrei a explicação última e verdadeira de
                          tudo, não só do homem moral mas de toda a
                          natureza, ainda nos seus momentos fisicos
                          elementares. A monadologia de
                          Leibnitz, convenientemente reformada,
                          presta-se perfeitamente a esta interpretação
                          do mundo, ao mesmo tempo naturalista e
                          espiritualista. O espírito é que é o tipo da
                          realidade: a natureza não é mais do que uma
                          longínqua imitação, um vago arremedo, um
                          símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O
                          Universo tem pois como lei suprema o bem,
                          essência do espírito. A liberdade, em despeito
                          do determinismo inflexível da natureza, não é
                          uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na
                          santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser
                          um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do
                          mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só
                          por ele é que o Universo sabe para que existe:
                          só ele realiza o fim do Universo.  
                         
                    Estes
                          pensamentos e muitos outros, mas concatenados
                          sistematicamente, formam o que eu chamarei,
                          embora ambiciosamente, a minha filosofia. O
                          meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como
                          um budista. Há, com efeito, muita coisa comum
                          entre as minhas doutrinas e o budismo, mas
                          creio que há nelas mais alguma cousa do que
                          isso. Parece-me que é esta a tendência do
                          espírito moderno que, dada a sua direção e os
                          seus pontos de partida, não pode sair do
                          naturalismo, cada vez em maior estado de
                          bancarrota, senão por esta porta do
                          psicodinamismo ou panpsiquismo. Creio que é
                          este o ponto nodal e o centro de atração da
                          grande nebulose do pensamento moderno, em via
                          de condensação. Por toda a parte, mas
                          sobretudo na Alemanha, encontram-se claros
                          sintomas desta tendência. O Ocidente produzirá
                          pois, por seu turno, o seu budismo, a sua
                          doutrina mística definitiva, mas com mais
                          sólidos alicerces e, por todos os lados, em
                          melhores condições do que o Oriente.  
                         
                    Não sei
                          se poderei realizar, como tenho desejo, a
                          exposição dogmática das minhas ideias
                          filosóficas. Quisera concentrar nessa obra
                          suprema toda a atividade dos anos que me
                          restam a viver. Desconfio, porém, que não o
                          conseguirei; a doença que me ataca os centros
                          nervosos não me permite esforço tão grande e
                          tão aturado como fora indispensável para levar
                          a cabo tão grande empresa. Morrerei, porém,
                          com a satisfação de ter entrevisto a direcção
                          definitiva do pensamento europeu, o norte para
                          onde se inclina a divina bússola do espírito
                          humano. Morrerei também, depois de uma vida
                          moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez
                          de pensamentos tão irmãos das mais íntimas
                          aspirações da alma humana, e, como diziam os
                          antigos, na paz do Senhor! Assim o espero. 
                            
                    Os
                          últimos vinte e um sonetos do meu livrinho dão
                          um reflexo desta fase final do meu espírito e
                          representam simbólica e sentimentalmente as
                          minhas atuais ideias sobre o mundo e a vida
                          humana. É bem pouco para tão vasto assunto,
                          mas não estava na minha mão fazer mais, nem
                          melhor. Fazer versos foi sempre em mim cousa
                          perfeitamente involuntária; pelo menos ganhei
                          com isso fazê-los sempre perfeitamente
                          sinceros. Estimo este livrinho dos Sonetos por
                          acompanhar, como a notação dum diário íntimo e
                          sem mais preocupações do que a exatidão das
                          notas dum diário, as fases sucessivas da minha
                          vida intelectual e sentimental. Ele forma uma
                          espécie de autobiografia de um pensamento e
                          como que as memórias de uma consciência. 
                            
                    Se
                          entrei em tão largos desenvolvimentos
                          biográficos, foi por entender que, sem eles,
                          se havia de perder a maior parte do interesse
                          que a leitura dos meus sonetos pode inspirar.
                          Os críticos alemães acharão talvez
                          interessante observar as reações provocadas
                          pela inoculação do germanismo, no espírito não
                          preparado dum meridional, descendente dos
                          navegadores católicos do século XVI. Poderá
                          essa ser mais uma página, embora ténue, na
                          história do germanismo na Europa, e porventura
                          parecerá curiosa aos que se ocupam da
                          psicologia comparada dos novos.  
                         
                    Ao bom e
                          amável espírito que me introduz, a mim
                          neófito, nesses grandes círculos do pensamento
                          e do saber, tributo, além de muita simpatia,
                          indelével gratidão.    
                    E sou de
                          V. Ex.a com a máxima consideração.  
                         
                    criado m.to obrg.º 
                     
                     ANTERO DE QUENTAL  
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