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Geração
e
Elite
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Por
último, haverá a notar nesta introdução ao
estudo da Geração de 70
que o conceito, sempre tão
ambíguo, de «geração» é aqui adotado na
sua aceção mais restrita de criação de
ideias e de obras em que essas ideias se
refletem por um determinado número,
inevitavelmente restrito, de grandes
figuras da literatura portuguesa num
determinado momento de confluência de
tendências culturais. O sentido
cronológico do termo «geração» só será,
portanto, muito parcialmente respeitado.
Quer isto dizer que se evitará a mera
enumeração enciclopédica, embora se tenha
a preocupação de proporcionar uma breve
visão cronológica geral.
Assim,
serão considerados como pertencentes à
Geração de 70 sobretudo os que a «geraram»
no plano das ideias e não os que a ela
eventualmente aderiram, prolongando-a
historicamente.
Isto
significa que à Geração de 70 pertencem,
antes de mais, Antero
de Quental, Eça de Queirós e Oliveira
Martins. Nesta perspetiva, só
secundariamente a ela pertencerão Ramalho
Ortigão e, ainda mais secundariamente, um
Teófilo Braga, um Gomes Leal, um Guerra
Junqueiro, um Jaime Batalha Reis, um
Guilherme de Azevedo, um Aberto Sampaio ou
ainda um Adolfo Coelho, pedagogo eminente,
ou um Augusto Soromenho, professor do Curso
Superior de Letras, os quais, no entanto,
participaram nas primeiras conferências
do
Casino.
Em suma,
haverá uma escolha rigorosa em função
das obras criadas e das repercussões
culturais dessas obras na sua época e
atualmente. Uma revolução cultural é, sem
dúvida, feita de múltiplas contribuições,
mais ou menos perduráveis. Mas raríssimos
serão, afinal, os seus verdadeiros mentores,
aqueles que, formando uma élite como
iniciadores, fixam para a posteridade, não
só no confinado domínio da cultura
portuguesa como, sobretudo, no mais vasto
domínio do grande saber universal.
Machado, Álvaro Manuel, A GERAÇÃO DE 70
- Uma Revolução Cultural e Literária, 2ª
edição, Lisboa, Biblioteca Breve, 1981
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Romantismo
e Revolução Cultural
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Seja
como for, seja qual for o nível da
capacidade crítica e da capacidade
inventiva pessoais, o certo é que a
chamada Geração de 70 representa, em
Portugal, uma profunda revolução cultural.
Até
então, tinham-se criado hábitos de um romantismo
demasiadamente limitado aos problemas (e
também às obsessões) nacionais. Se, apesar
das suas limitações, que são justamente as
que se ligam a um certo nacionalismo
cultural excessivo, o nosso primeiro romantismo,
o da Geração de 1830, trouxe com Garrett
e Herculano qualquer coisa de novo e de
perdurável, a verdade é que, por meados do
século XIX, o que restava desse romantismo
pouco era. À parte o vulto tutelar e
Camilo, que no entanto se fica por um
balzaquismo regionalista lusitano, um
balzaquismo sem Balzac, o período que
sucede ao primeiro romantismo português e
que vai de cerca de 1850 a cerca de 1870,
não é fértil em criações verdadeiramente
originais. Sobretudo, rareiam os contactos
com o estrangeiro a nível das grandes
criações de ideias.
A
Regeneração do marechal Saldanha (1851)
é um período de modorra confortável para
esses escritores que sucedem a Garrett e
a Herculano, esses escritores que,
querendo escapar à monótona ordem burguesa
conservadora que impera na Europa após o
fracasso das insurreições de 1848, se
refugiam no mais fácil sentimentalismo
bucólico ou fatalista ou então no mais
provinciano culto, quer da literatura
«filosófica» de importação, quer do
panfleto literário. Para evocar alguns
exemplos, citem-se os dramalhões
históricos ou os chamados «dramas da
atualidade» de um José da Silva Mendes
Leal (1818-1886), o lirismo vagamente à
la manière de Lamartine de um Bolhão
Pato (1829-1912) ou de um António Augusto
Soares de Passos (1826-1860).
A
Geração de 70 veio arrancar dessa modorra
de degenerescência
romântica não só a literatura
portuguesa mas sobretudo, de uma maneira
geral, a cultura portuguesa.
Está
talvez nesta preocupação, propriamente de
revolução cultural, a grande
originalidade de um Antero
de Quental (para lá mesmo das suas
visionárias preocupações sociais e das
suas igualmente visionárias inquietações
metafísicas), bem como a de um Eça de
Queirós (para lá mesmo das suas sucessivas
e contraditórias experiências estéticas,
que vão do decadentismo, do dandismo e do
pré-simbolismo baudelairianos ao naturalismo
de Flaubert e ao realismo
«total» de Zola). Revolução cultural no
sentido de, esquematicamente:
-
a Geração de 70 repensar e
pôr em questão toda a cultura
portuguesa desde as suas origens,
fixando-se no ponto mais elevado e
também mais complexo da história de
Portugal, isto é, o período das
descobertas;
-
a Geração de 70 preparar,
pelo menos numa fase inicial,
ativamente, uma profunda transformação
na ideologia política e na estrutura
social portuguesas, isto é, a
revolução republicana de 1910, com
tudo o que ela teve de culturalmente
positivo e negativo, e isto apesar da
nítida separação entre socialismo e
republicanismo, verificada sobretudo a
partir da polémica entre Antero
e Teófilo Braga a propósito da Teoria
da História da Literatura Portuguesa,
publicada por Teófilo em 1872.
Aliás,
ao falar da revolução cultural, não nos
esqueçamos de que a palavra cultura
é derivada do particípio do verbo latino colere
e que , portanto, está pela sua origem,
primeiro: ligada à ação, bem romana,
de cultivar a terra (colere agros);
depois, a partir de Cícero, à cultura
animi, ou seja, à ação de modificar
o espírito cultivando-o. O que significa
que, por mais revolucionária que seja, a
cultura tende sempre para uma
estabilidade, que é propriamente a forma
sólida, «telúrica», do saber, tanto
individual como coletivo.
A
Geração de 70 não escapa (nem, aliás,
tenta escapar) a esta regra geral. Bem
pelo contrário: é uma geração que, para
revolucionar culturalmente, procura uma
profunda e congregadora tradição cultural.
Daí que, estando sem dúvida aberta, mais
do que a Geração de 1830, a todas as
formas da cultura universal, tende a fazer
renascer uma cultura portuguesa, ou antes,
uma ideia da cultura portuguesa.
Por
outro lado, se é certo que na base de toda
a forma de cultura está a linguagem como
sistema de símbolos verbais indispensável
à comunicação entre os homens, a Geração
de 70 criou a sua linguagem própria, a
qual anuncia nos seus momentos mais
elevados a linguagem modernista de um
Fernando Pessoa ou de um Sá-Carneiro.
Sobretudo Fernando Pessoa, criador de
paradoxos enraizados nos paradoxos da
história de Portugal - Fernando Pessoa que
está finalmente mais próximo de um Eça de
Queirós do que à primeira vista se poderá
supor. Mas isso seria matéria para outro
livro.
Machado, Álvaro Manuel, A GERAÇÃO DE 70
- Uma Revolução Cultural e Literária, 2ª
edição, Lisboa, Biblioteca Breve, 1981
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