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Movimento
literário,
essencialmente poético, que se insere na atividade
da
sociedade portuense «Renascença Portuguesa», fundada
por Jaime
Cortesão, Álvaro Pinto, Teixeira de Pascoaes e
Leonardo Coimbra, e cujo
órgão foi a revista A Águia (1910-1932),
propriedade dessa
sociedade a partir de 1912 (início da 2.ª série).
Nessa data, passaram
a ser diretores da revista (respetivamente
literário, artístico e
científico) Teixeira de Pascoaes, António Carneiro e
José de Magalhães.
O Saudosismo, no sentido estrito, é uma atitude
perante a vida que,
segundo Pascoaes e muitos outros, constitui feição
típica da literatura
portuguesa, tanto culta como popular, logo traço
definidor da «alma
nacional». Essa atitude interpretou-a o autor de Marânus
atribuindo à saudade amplas dimensões e profundo
significado,
arvorando-a mesmo em princípio enformador dum
ressurgimento pátrio. A
atmosfera mental portuguesa estava então impregnada
do idealismo e do
nacionalista tradicionalista que se haviam desenhado
na última década
do séc. XIX e de que Alberto Oliveira fora um
primeiro doutrinador.
Segundo Joel Serrão, a ideação de Sampaio Bruno
exposta em O
Encoberto (1904), em que se debruça sobre a decadência
dos povos peninsulares, «exerceu influência
decisiva, conquanto difusa
(como é timbre do esoterismo) nas ideias-forças da
'Renascença
Portuguesa' (1912) e constituiu, possivelmente, um
dos impulsos
iniciais do saudosismo». A «Renascença Portuguesa»
congregou muitos
espíritos animados do desejo de, agindo no plano da
cultura, promover a
reconstrução do país, minado pelas dissenções
políticas que a
instituição da República não viera sanar.
A
maioria dos
colaboradores d' A Águia aceitou Pascoaes
como seu mentor, quer
dizer, aderiu ao Saudosismo, perfilhou a doutrina
formulada por
Pascoaes no limiar do 1.º volume da 2.ª série. A
Pátria - diz ele -
anda tateando no caos. «É preciso, portanto, chamar
a nossa Raça
desperta à sua própria realidade essencial, ao
sentido da sua própria
vida, para que ela saiba quem é e o que deseja. E
então poderá realizar
a sua obra de perfeição social, de amor e de
justiça, e poderá gritar
entre os Povos: Renasci!» Ora aquela
«realidade essencial»
consiste na Saudade maiusculada: «A Saudade é o
próprio sangue
espiritual da Raça; o seu estigma divino, o seu
perfil
eterno. Claro que é a saudade no seu sentido
profundo, verdadeiro,
essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção
refletida
onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria,
amor e desejo,
terra e céu, atinge a sua unidade divina». Está
assim determinado o
rumo da «Renascença Portuguesa»: «continuarei sempre
a afirmar que o
movimento da Renascença Portuguesa se faz e fará
dentro da Saudade
revelada, a qual se ergue à altura duma Religião,
duma Filosofia e duma
Política, portanto. Dentro dela, Portugal, sem
deixar de ser Portugal,
poderá realizar os maiores progressos de qualquer
natureza». Sem
claramente nos dizer como tais ideias se vinculam à
Saudade, Pascoaes
preconiza um Portugal agrário, uma organização
municipalista e uma
Igreja independente. Leonardo Coimbra dá-lhe inteiro
apoio; vê em
Pascoaes o Profeta; a propósito do Deus infante
cujo advento se
anuncia no Regresso ao Paraíso, escreve
euforicamente: «Olhai a
sua melancolia feita de vida e não de morte, é a
melancolia da Saudade,
que é tão-só a concentração do Espírito
apreendendo-se no drama da sua
essência. É D. Sebastião que volta! [...] Alvorece a
nova religião, a
alma portuguesa vai possuir-se em Deus». O próprio
Pascoaes identifica
o Saudosismo com um sebastianismo esclarecido, revelado
pelos
novos poetas. Jaime Cortesão igualmente procura no
passado, nas fontes
genuínas da nacionalidade, a inspiração para um
futuro de grandeza
renovada; as suas palavras vibram dum otimismo
messiânico: a Árvore da
Raça «tem de entranhar bem as raízes na Terra-Mãe,
banhar-se na seiva
original e então os ramos subirão a perder de vista
e as naus da
aventura, instrumento do nosso Destino, hão-de ir no
Céu à descoberta
das certezas divinas». Colaborando n' A Águia
com uma série de
artigos sobre «A Nova Poesia Portuguesa», o jovem Fernando
Pessoa afirma que os poetas saudosistas
anunciam o pensamento da
«futura civilização europeia» - um
transcendentalismo panteísta -, e
que portanto essa futura civilização europeia será
«uma civilização
lusitana». Deve estar para muito breve - acrescenta
profeticamente - o
aparecimento do poeta supremo da nossa raça e,
ousando tirara a
verdadeira conclusão que se nos impõe [...], o poeta
supremo da Europa,
de todos os tempos [...] e a nossa grande raça
partirá em busca de uma
Índia nova, que não existe no espaço, em naus que
são construídas
'daquilo de que os sonhos são feitos'. E o seu
verdadeiro e supremo
destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro
e carnal
ante-remedo, realizar-se-á divinamente». O futuro
vate da Mensagem
integra-se, como se vê, no clima de exaltação
sebastianista dos poetas
d' A Águia. É mais um patriota místico,
pronto a embarcar para
o reino da Quimera, embora adivinhemos por detrás
desta atitude uma
deliberação mental.
Claro
está,
enquanto doutrina político-social (tal como Pascoaes
a expõe em vários
escritos, designadamente a Arte de Ser Português),
o Saudosismo
não podia satisfazer os espíritos com exigência de
positividade e
articulação lógica. Em breve António Sérgio e Raul
Proença, sócios da
«Renascença Portuguesa», manifestaram o seu
desacordo, travando o
primeiro correspondência polémica com Pascoaes nas
colunas d' A
Águia. Temperamentos inconciliáveis, falavam
linguagens diversas.
Sérgio acusou Pascoaes dum pensamento demasiado
utópico e passadista,
fechado num lusitanismo xenófobo, provinciano,
incompatível com o
moderno espírito europeu. O idealismo do poeta d' As
Sombras
desprezava o progresso técnico, substimava as
realidades económicas,
atribuía imaginosamente a um estado de alma
deprimente, passivo,
virtualidades construtivas. O que era preciso era
cortar com a tradição
nacional de isolamento sonhador, paralisante. A tese
de Sérgio «é que o
progresso moral dum povo está dependente do seu
progresso económico».
Em resumo, no seu entender, o Saudosismo não passava
de nova
manifestação do « temperamento fantasista,
impulsivo, inconsistente, -
por uns classificado de idealista e por outros de
retórico -, que nos
formou a velha sina de conquistadores e
aventureiros, retardatários da
Cavalaria». Esta primeira dissidência havia de
conduzir ao aparecimento
da Seara Nova.
[...]
Nas
colunas d' A
Águia encontramos lado a lado poetas já
feitos, com
individualidades marcadas: um Teixeira de Pascoaes,
um António Correia
de Oliveira, um Afonso Lopes Vieira. Define-os em
conjunto um
neorromantismo espiritualista e lusitanizante que se
compraz em evocar
tradições e em cantar a terra portuguesa; os dois
primeiros exprimem
uma religiosidade vagamente panteísta, são
visionários de tom
profético, de «verbo escuro», enquanto Lopes Vieira
parece menos
«inspirado», cultiva como esteta consciente, de
forma límpida,
trabalhada, um neogarrettismo professo; a sua
intuição de homem culto
leva-o a glosar temas e formas típicos da História,
da lenda, da
literatura culta e popular.
[...]
Todos
estes poetas
se podem definir como neorromânticos (descontando o
esmero estético de
Lopes Vieira e o modernismo ou modernidade de Afonso
Duarte, ambos
artistas muito conscientes): são intuitivos,
expansivos,
exclamativos, inclinados à oratória; oscilam entre o
historicismo e o
popularismo; dos românticos e dos
simbolistas
herdam o gosto da paisagem crepuscular e outoniça,
confundida com
estados de alma saudosos; mesmo quando evocam a
terra da infância (o
Marão de Pascoaes, o Alentejo de Mário Beirão),
imaterializam,
transfiguram os lugares, povoam-nos de sombras e de
espetros,
embebem-nos de alma. Fernando
Pessoa observa que, para os saudosistas,
«matéria e espírito são
[...] reais e irreais ao mesmo tempo»; que eles
operam ao mesmo tempo a
cada passo a «materialização do espírito» e a
«espiritualização da
matéria». E cita como exemplos típicos os versos de
Pascoaes «A folha
que tombava / Era alma que subia», e expressões como
«choupos de alma»
de J. Cortesão. Afonso Duarte fala em «tardes de
alma», «êxtases de
árvores», «crepúsculo de mágoa» - imagens que logo
lembram o autor de Marânus.
É
um espaço subjetivo, o indefinido, o ausente, o que
fica «para além»,
que estes poetas tentam sugerir. «Há paisagens que
são almas rezando» -
lemos em Augusto Casimiro. «Tarde absorta», «longes
moribundos», «um
íntimo sorriso / De além de ti» - escreve Mário
Beirão. Visão mística,
animista, da Natureza, em que tudo se esfuma em
vagos anseios,
quimeras, vida etérea, «verbo etéreo»- É este o lado
mais propriamente
saudosista (em certa medida «escolar», sob a égide
de Pascoaes) dos
poetas d' A Águia. A par disto, o bucolismo,
o folclorismo,
certo alor sentimental. Quanto à linguagem poética,
um regresso:
herdeiros do Junqueiro d' Os Simples e das Orações,
ligados também ao romantismo neogarrettista de
Nobre, os saudosistas
pouco aproveitaram da experiência formal do Simbolismo;
preferem
uma expressão mais tradicional, mais clássica, o
«verso
escultural» de Pascoaes; não se demoram num esforço
de análise do
subconsciente, são muito menos modernos e europeus
que os poetas -
afinal contemporâneos - do Orpheu.
Daí o desentendimento entre Pascoaes e F.
Pessoa,
que
cedo abandonou A Águia, onde o seu espírito
renovador se
sentia constrangido.
Como
tentativa de
interpretação da chamada «psique nacional», o
Saudosismo deu relevo,
com mais penetração e insistência do que nunca, ao
complexo de valores
espirituais de que a saudade é portadora e à sua
importância como traço
definidor. Na definição de Pascoaes, o caráter
saudoso portruguês
realiza a harminia mais perfeita entre o paganismo e
o cristianismo, a
Presença e a Ausência, a Alegria e a Tristeza - mas
harmonia instável,
dinâmica, sempre a fazer-se, princípio de permanente
renovação. A
Saudade é, pois, segundo o poeta, muito mais que o
estado sentimental a
que se refere o conceito corrente; pela vivência
desse estado e pela
reflexão exercida sobre ele, Pascoaes elevou-se a
uma conceção geral do
Homem e do mundo, conceção de raiz portuguesa mas de
alcance universal
- a mensagem lusíada. Pela saudade, o Homem
reage, responde à
sua situação concreta no mundo. Sofre a dor de ser
imperfeito, a
nostalgia da pura vida anímica, a «divina saudade»
ou saudade de Deus
que Pascoaes assinala já em Fr. Agostinho da Cruz.
Realiza o ausente
por obra e graça da imaginação; inventa
Deus. «O homem, em
virtude do seu poder saudosista, de lembrança e
esperança, eleva-se da
própria miséria e contingência à contemplação do
reino espiritual, onde
as coisas e os seres divagam em perfeita imagem
divina» (Arte de Ser
Português, p. 155). Naturalmente, aqueles que,
nos últimos anos,
dando primazia ao pensamento intuitivo criador de
mitos («quanto mais
poeta mais filósofo»), procuram fundamentar uma
filosofia genuinamente
portuguesa, ou galaico-portuguesa, destinada a
projetar no mundo os
dois povos irmãos, encontram no Saudosismo grande
riqueza de sugestões
e uma preciosa linha de rumo.
Coelho, Jacinto do
Prado,
DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3.ª edição,
4.º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979
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