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Intersecionismo

[Características do Intersecionismo] * [Intersecionismo, uma tentativa para o aperfeiçoamento do simbolismo]


Características do Intersecionismo



Processo típico da poesia do Modernismo, paralelo às sobreposições dinâmicas da pintura futurista, e de que
Fernando Pessoa nos deu exemplos acabados nas seis partes de «Chuva Oblíqua» (in Orpheu n.º 2, 1915) - demonstração brilhante de inteligência estética e de capacidade inovadora. Cruzam-se aí a paisagem presente e a ausente, o atual e o pretérito, o real e o onírico: «Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios / Que largam do cais...». A alma está lucidamente dividida, a hora é «dupla», o autor capta subtis correspondências de sensações: «Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, / E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...» Mas F. Pessoa cedo poria de lado esta experiência lúdica, dos «arredores da sua sinceridade».

Coelho, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA (in Modernismo), 3.ª edição, 2.º volume, Porto, Figueirinhas, 1979






Intersecionismo, uma tentativa para o aperfeiçoamento do simbolismo



As teorias estético-literárias elaboradas por
Pessoa depois do Paulismo servem essencialmente para justificar os heterónimos e fundamentar a produção deles, pelo menos na sua primeira fase. De certa maneira exceção é, apenas, o Intersecionismo que coexiste com a criação dos heterónimos. Mas como já notámos, o Intersecionismo manteve-se desde o princípio muito próximo do Sensacionismo, acabando por se fundir com ele. Se, não obstante, o consideramos separadamente, isto deve-se ao facto de o Intersecionismo, tal como o Paulismo, poder ser interpretado mais facilmente à base dos poemas que lhes servem de modelo. Deve-se, pois, considerar conjuntamente a poesia programática «Chuva Oblíqua» e as passagens das cartas relacionadas com o Intersecionismo, se quisermos definir tanto quanto possível com exatidão a fase de transição entre o Paulismo e as teorias dos heterónimos.

Na data 4-10-1914 - meio ano depois da criação de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos -, Pessoa escreve a Cortes-Rodrigues: «Verdade seja que descobri um novo género de paulismo. Mas preciso completar o feito.» (1) Com a sua habitual paixão pelas ideias, «caratteristica dei pigri fantasiosi e complessati» (2) (Luciana Stegagno Picchio), Pessoa começa logo vasta ação de propaganda para divulgação da nova corrente. Há que sair com uma revista intersecionista, ou melhor ainda, com uma antologia do Intersecionismo e, para colaboradores, são mais uma vez convocados todos os amigos que, há pouco ainda ligados ao Paulismo, de ora em diante passam a assinar-se de intersecionistas: Sá-Carneiro, A. P. Guisado e Cortes-Rodrigues. Para os espíritos inferiores prevê-se o auxílio por meio de gráficos ou desenhos em que o Intersecionismo apareça como cruzamento ou intersecção de todas as correntes anteriores. O projeto não se chega a concretizar, tal como acontecerá com a antologia do Sensacionismo em 1916. Parece, porém, ter existido um manifesto do Intersecionismo, pelo menos em fragmento, pois que Pessoa se lhe refere numa carta a Cortes-Rodrigues a 4-1-1915, na qual declara: «Não publicarei o Manifesto «escandaloso»». Tratava-se talvez dum texto precursor do «Ultimatum» publicado por Álvaro de Campos em 1917 na revista «Portugal Futurista»? O carácter escandaloso do «Ultimatum» poderia justificar esta conjetura, tanto mais que é um facto não ter aparecido no espólio, onde de resto se encontram todos os apontamentos manuscritos do autor, qualquer manifesto intersecionista.

De qualquer maneira, é certo que Pessoa quis, no seu primeiro entusiasmo, interpretar o Intersecionismo como «Paulismo a sério» e que considerou o «Orpheu» do seu amigo Sá-Carneiro como o órgão próprio para dar a ressonância devida à nova escola. J. G. Simões (3) sustenta esta opinião e afirma, noutro local, que o Intersecionismo representa na obra de Pessoa a transposição do Cubismo e do Futurismo para a literatura (4). O próprio Pessoa, porém, defende-se, como mostraremos, categoricamente contra a confusão do Intersecionismo com o Futurismo. Simões sugere, mas injustamente com certeza, que Pessoa tivesse sido encaminhado para as suas novas teorias através das cartas de Sá-Carneiro, vindas de Paris. Mas as cartas de Sá-carneiro dos anos de 1913 a 1914, embora contenham de facto alusões ao Cubismo, ao fascínio de Picasso e aos teoremas loucos do futurista Santa Rita Pintor, não fornecem quaisquer pontos de referência a partir dos quais Pessoa pudesse ter feito derivar o seu Intersecionismo. Só em 13-8-1915, muito depois do aparecimento do poema programático do Intersecionismo, é que Sá-Carneiro participa ao amigo a compra dum volume com poemas futuristas de Marinetti, Bétuda e Altomare, elogiando as exclamações aí contidas «Fu, fu, cri, cri e corcuruco» como muito recomendáveis adentro da nova poesia.

[...]

«Chuva Oblíqua» é uma amostra de virtuosismo poético e como tal, para demonstrar as variações do novo programa, desdobra-se em seis partes [...]. Para exemplo, tomemos dois excertos especialmente característicos. O poema na sua totalidade data de junho de 1914, seguindo-se aos primeiros versos de Caeiro, e foi publicado em 1915, no segundo número de «Orpheu».

CHUVA OBLÍQUA

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

Se chamamos a este poema paradigma da corrente intersecionista é porque a sua estrutura segue com uma nitidez geométrica uma única diretriz fundamental: a intersecção de duas superfícies, ou sejam, uma paisagem vivida e um porto imaginado. Desta intersecção resulta uma sequência imagética de grande nitidez plástica. [...] O poema é muito mais, de princípio a fim, uma montagem em dois planos e os efeitos de contraste são produzidos pela sobreposição de dois todos, o sonhado e o vivido. 

Com tudo isto pode dizer-se que nos encontramos ainda em terreno romântico; pois que, como no Paulismo, o sonho é mais forte do que a realidade exterior. O porto imaginário liberta o poeta da realidade («liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...»). Na segunda metade do poema processa-se abertamente uma permuta entre o sonho e a realidade: o porto imaginário ganha supremacia, usurpando o lugar à paisagem real que, por sua vez, assume a forma imaginária, emergindo diante dos nossos olhos como ficção, como «estampa» no fundo das águas do porto imaginário. Desta dupla paisagem estática solta-se a imagem mítica da nau ou caravela que, apesar do seu carácter imaginário, adquire tais foros de realidade que o poeta a distingue ou perceciona em ambos os planos simultaneamente, e sente que entra por ele dentro. Este fenómeno - a entrada da caravela na alma do poeta - sublinha mais uma vez a duplicidade da vivência, duplicidade esta provocada pela intersecção do sonho com a realidade.

Se nos lembrarmos de que o que os pintores cubistas pretendiam era representar simultaneamente as várias superfícies dum objeto, as visíveis e as encobertas, é-nos fácil descobrir que o Intersecionismo nada tem a ver com a técnica dos cubistas. O processo da intersecção de superfícies não pode ter derivado do cubismo nem pode, legitimamente, ser relacionado com ele. A primazia dada ao sonho no final do poema mostra muito mais que a desvalorização paulista do mundo exterior, em favor dum mundo fictício criado pela imaginação do poeta, continua a existir também no Intersecionismo. O novo estilo de Pessoa está mais próximo do Paulismo do que o querem admitir críticos como J. G. Simões.

A que efeitos requintados pode conduzir a técnica da intersecção, quando aplicada rigorosa e consequentemente, podemos avaliá-lo numa outra passagem de «Chuva Oblíqua»:

III

A Grande Esfinge do Egipto sonha pôr este papel dentro...

Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena

Ser o perfil do rei Quéops...

De repente paro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro

E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim!...

A técnica intersecionista - aliás caracterizada em ambas as passagens por termos geométricos, aqui através da «diagonal difusa», na primeira parte através da «horizontal vertical» - faz com que se entrecruzem aqui os planos do presente e do passado. Nos três primeiros versos o presente real e o passado imaginário começam por se apresentar desligados um do outro. O poeta ao escrever está a pensar no Egipto, e as imagens da esfinge e das pirâmides surgem diante dele. A visão e a realidade encadeiam-se. A junção das duas conduz ao desfecho quase humorístico da imagem seguinte: no bico da pena do poeta aparece o perfil do rei Quéops. A  técnica da intercalação, como vemos, é utilizada a rigor. Feita a advertência («de repente paro... Escureceu tudo...»), consuma-se a permuta dos dois planos: o sonho ganha a primazia e o poeta deixa-se dominar pelas imagens que ele próprio criou ao ponto de, neste caso, se sentir esmagado pelas pirâmides. De novo se entrecruzam os dois planos: o bico da caneta transforma-se no riso da esfinge. Ao contrário do primeiro exemplo que transcrevemos, parece-nos aqui evidente a existência dum maior requinte na aplicação da técnica intersecionista: o perfil do rei Quéops transforma-se em cadáver, cadáver sete que, como convém a um sonho, fita de olhos abertos o poeta, iniciando com ele uma espécie de diálogo mudo do qual resultam novas imagens: o Nilo, barcos embandeirados, preparativos para «os funerais. O «ouro velho» do verso final, metáfora predileta não só de Sá-Carneiro mas também de Pessoa na fase paulista, indica-nos que a visão acontece numa esfera ideal; os funerais do rei têm lugar simultaneamente no passado e no presente do Eu sensível.

Como principal inovação em relação ao Paulismo assinalam-se, além da nitidez plástica de cada uma das imagens, nitidez esta já antecipada em poemas como o «Ela canta, pobre ceifeira», a transição da métrica tradicional para o verso livre e sem rima. Para o que o Marine de Rimbaud poderia bem ter servido de exemplo.

Também o Intersecionismo permanece ainda preso nas malhas da poesia simbolista e subjetiva. Ninguém o soube ver mais claramente que o próprio Pessoa. Na carta ao «Diário de Notícias» de 4-6-1915 temo-lo a protestar contra a confusão que os jornalistas daquele diário, dada a sua ignorância, praticam, entre Futurismo e Intersecionismo; Pessoa explica: «A atitude principal do futurismo á a Objetividade Absoluta, a eliminação, da arte, de tudo quanto é ALMA, quanto é sentimento, emoção, lirismo, subjetividade em suma. O futurismo é dinâmico e analítico por excelência. Ora se há cousa que [seja] típica do Intersecionismo (tal é o nome do movimento português) é a subjetividade excessiva, a síntese levada ao máximo, o exagero da atitude estática.» (5)

Se procurámos dar uma ideia da técnica intersecionista à base do exemplo de «Chuva Oblíqua», é porque a estrutura deste ciclo de poemas não é de modo algum compreensível sem a teoria que lhe está por detrás. De resto o número de poemas claramente derivados do Intersecionismo é muito reduzido. Isto provém do facto, com certeza, de Pessoa ter esboçado num período de tempo relativamente curto várias teorias totalmente diferentes; não é, pois para admirar que cada uma das teorias de per si só se possa encontrar, em estado puro, em poucos poemas padrão.

[...]

Pessoa tinha, aliás, todos os motivos para se opor à confusão entre Intersecionismo e Futurismo. Logo que a palavra de ordem das tendências modernistas na arte europeia começara a circular, todas as outras teorias estavam em risco de serem classificadas sob a mesma etiqueta. O Intersecionismo de Pessoa não era, de resto, uma doutrina cuidadosamente formulada, como o futurismo de Marinetti, mas apenas uma técnica de composição, cujas características peculiares só se podiam avaliar pelos poemas que lhe serviam de exemplo. Quem observasse de fora podia imputar ao Intersecionismo tudo aquilo que, pessoalmente, tinha por modernista. Daí a confusão do Intersecionismo com o Futurismo ter sido acatada, inadvertidamente, mesmo pelo amigo mais chegado de Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, como no-lo mostra o seu poema «Manicure». [...]

Os vários planos caoticamente agrupados no poema e a referência expressa a «inúmeras intersecções» (em vez do entrecruzar de dois planos apenas, utilizado por Pessoa), afastam o poema para perto do Simultaneísmo e do Sensacionismo.

1 -  F. P., Cartas a A. Cortes-Rodrigues, p. 60;

2 - «Características dos preguiçosos fantasistas e complexados» (N. do T.);

3 - Cf. J. G. Simões, Literatura, Literatura, Literatura, Lisboa, 1964, pp. 60 e segs.;

4 - J. G. Simões, Vida e Obra de F. P., vol. I, p. 250;

5 - F. P., Páginas Íntimas, p. 413.

 

Lind, Georg Rudolf, «Duas Tentativas para o Aperfeiçoamento do Simbolismo: o Paulismo e o Intersecionismo» in Estudos Sobre Fernando Pessoa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1981

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