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Três
modos
de correntes literárias
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Uma
corrente literária sendo, por
definição, uma ordem de obras
originais, há três modos de correntes
literárias:
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A corrente
literária cuja única preocupação
consiste em ser nova e original,
rompendo com o passado
conscientemente, embora
inconscientemente esteja ligada
a parte dele, como por força tem
que acontecer.
-
A corrente
literária que procura sintetizar
as correntes passadas.
-
Aquela que
procura sintetizar as correntes
passadas e acrescentar-lhes
qualquer elemento, isto é,
sintetizá-las através de um
critério novo, de uma nova visão
das coisas.
São
desta última espécie as mais altas
correntes literárias. São aquelas que,
reunindo em si quanto de original
todas as correntes anteriores
trouxeram, sintetizam através da sua
virtualidade própria os
característicos dessas correntes, e as
transcendem com um qualquer
característico que lhe[s] é peculiar.
Assim:
-
Pretende apenas
seguir qualquer corrente,
renovando-a (Parnasianismo).
-
Pretende
criar uma corrente nova (Simbolismo).
-
Pretende
sintetizar todas as correntes
passadas através de uma
originalidade própria, a qual
originalidade comporta um
poder sintetizador como um
dos seus característicos
(Renascença italiana e inglesa).
Presumivelmente
de 1916.
Pessoa, Fernando,
«Estética, Teoria e História da
Literatura / Plano e início de uma
Teoria do Sensacionismo» in Obras
de
Fernando Pessoa, vol. III,
Lello & Irmão - Editores, Porto,
1986
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O Sensacionismo perante
os movimentos literários anteriores
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O Sensacionismo
rejeita do Classicismo a noção - na
verdade mais característica dos
discípulos modernos dos escritores
pagãos do que deles propriamente - de
que todos os assuntos devem ser
tratados no mesmo estilo, no mesmo
tom, com a mesma linha exterior a
delinear-lhes a forma. O sensacionista
não concorda em que uma obra de arte
haja sempre de ser simples, porque há
sentimentos e conceitos que, de sua
natureza complexos, não são
suscetíveis e expressão simplificada,
sem que com essa expressão se traiam.
Há certos conceitos profundos, certos
sentimentos vagos que são, por certo,
suscetíveis de tal tratamento
literário; mas não são todos os
sentimentos nem todos os conceitos. O
sensacionista discorda, em seguida, da
atitude clássica pela limitação da sua
visão das cousas. A preocupação da
visão nítida é, com a preocupação da
expressão simplificada, por vezes um
erro estético. Nem tudo é nítido no
mundo exterior. O sensacionismo,
finalmente, não aceita do classicismo
a sua teoria basilar - a de que a
intervenção do temperamento do artista
deve ser reduzida ao mínimo.
Interpreta o princípio estético que
serve de base a tal afirmação, mas que
em tal afirmação se encontra
desvirtuado, de outro modo, do modo
como ele deve ser interpretado. O
artista interpreta através do seu
temperamento, não no que esse
temperamento tem de particular, mas no
que ele tem de universal, ou
universalizável. Isto é diferente de
eliminar o fator temperamental tanto
quanto possível, como os clássicos
ferrenhos querem ou procuram; o
artista deve, pelo contrário, acentuar
muito o fator temperamental (embora em
certos assuntos mais do que em
outros), curando porém de que não
sejam os lados inuniversalizáveis
desse fator que utilize.
O Sensacionismo
rejeita, do Romantismo,
a sua teoria básica do «momento de
inspiração». Não crê que a obra de
arte deva ser produzida rapidamente,
por um jato, a ser que o artista haja
conseguido (como alguns de facto
conseguem) de tal modo ter o espírito
disciplinado que a obra nasça
construindo-se.
Do Simbolismo
rejeita a exclusiva preocupação do
vago, a exclusiva atitude lírica, e,
sobretudo, a subordinação da
inteligência à emoção, que deveras
caracteriza aquele sistema estético.
Do classicismo
aceita a Construção, a preocupação
intelectual.
Do Romantismo
aceita a preocupação pictural, a
sensibilidade simpatética, sintética
perante as cousas.
Do Simbolismo
aceita a preocupação musical, a
sensibilidade analítica; aceita a sua
análise profunda dos estados de alma,
mas procura intelectualizá-la.
Presumivelmente
de 1916.
Pessoa, Fernando,
«Estética, Teoria e História da
Literatura / O Sensacionismo perante
os movimentos literários anteriores»
in Obras de Fernando Pessoa,
vol. III, Lello & Irmão -
Editores, Porto, 1986
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Princípios
do
Sensacionismo |
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Todo
o objeto é uma sensação nossa.
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Toda
a arte é a conversão duma sensação
em objeto.
-
Portanto,
toda a arte é a conversão duma
sensação numa outra sensação.
*
-
A
base de toda a arte é a sensação.
-
Para
passar da mera emoção sem sentido
à emoção artística, ou suscetível
de se tornar artística, essa
sensação tem de ser
intelectualizada. Uma sensação
intelectualizada segue dois
processos sucessivos: é primeiro a
consciência dessa sensação, e esse
facto de haver consciência de uma
sensação transforma-a já numa
sensação de ordem diferente; é,
depois, uma consciência dessa
consciência, isto é: depois de uma
sensação ser concebida como tal -
o que dá a emoção artística - essa
sensação passa a ser concebida
como intelectualizada, o que dá o
poder de ela ser expressa. Temos,
pois:
-
A sensação,
puramente tal.
-
A consciência da
sensação, que dá a essa
sensação um valor, e,
portanto, um cunho estético.
-
A
consciência dessa consciência
da sensação, de onde resulta
uma intelectualização de uma
intelectualização, isto é, o
poder de expressão.
-
Ora
toda a sensação é complexa, isto
é, toda a sensação é composta de
mais do que o elemento simples de
que parece consistir. É composta
dos seguintes elementos: a)
a sensação do objeto sentido; b)
a recordação de objetos análogos e
outros que inevitável e
espontaneamente se juntam a essa
sensação; c) a vaga
sensação do estado de alma em que
tal sensação se sente; d)
a sensação primitiva da
personalidade da pessoa que sente.
A mais simples das sensações
inclui, sem que se sinta, estes
elementos todos.
-
Mas,
quando a sensação passa a ser
intelectualizada, resulta que se
decompõe. Porque - o que é uma
sensação intelectualizada? Uma de
três cousas: a) uma
sensação decomposta pela análise
instintiva ou dirigida, nos seus
elementos componentes; b)
uma sensação a que se acrescenta
conscientemente qualquer outro
elemento que nela, mesmo
indistintamente, não existe; c)
uma sensação que de propósito se
falseia para dela tirar um efeito
definido, que nela não existe
primitivamente. São estas três
possibilidades da
intelectualização da sensação.
Presumivelmente
de 1916.
*
O
sensacionismo afirma, primeiro, o
princípio da primordialidade da
sensação - que a sensação é a única
realidade para nós.
Partindo
daí, o sensacionismo nota as duas
espécies de sensações que podemos ter
- as sensações aparentemente vindas do
exterior, e as sensações aparentemente
vindas do interior. E constata que há
uma terceira ordem de sensações
resultantes do trabalho mental - as
sensações do abstrato.
Perguntando
qual o fim da arte, o sensacionismo
constata que ele não pode ser a
organização das sensações do exterior,
porque esse é o fim da ciência; nem a
organização das sensações vindas do
interior, porque esse é o fim da
filosofia; mas sim, portanto, a
organização das sensações do abstrato.
A arte é uma tentativa de criar uma
realidade inteiramente diferente
daquela que as sensações aparentemente
do exterior e as sensações
aparentemente do interior nos sugerem.
Mas
a arte deve obedecer a condições de
Realidade (isto é, deve produzir
cousas que tenham, quanto possível, um
ar concreto, visto que, sendo a arte
criação, deve tentar produzir quanto
possível uma impressão análoga à que
as cousas exteriores produzem). A arte
deve também obedecer a condições de
Emoção porque deve produzir a
impressão que os sentimentos
exclusivamente interiores produzem,
que é emocionar sem provocar à ação,
os sentimentos de sonhos, entende-se,
que são os sentimentos no seu mais
puro estado.
A
arte, devendo reunir, pois, as três
qualidades de Abstração, Realidade e
Emoção, não pode deixar de tomar
consciência de si como sendo a
concretização abstrata da emoção (a
concretização emotiva da abstração).
Assim,
a arte tem por assunto, não a
realidade (de resto, não há realidade,
mas apenas sensações artificialmente
coordenadas), não a emoção (de resto,
não há propriamente emoção, mas
sensações de emoção), mas a abstração.
Não a abstração pura, que gera a
metafísica, mas a abstração criadora,
a abstração em movimento. Ao passo que
a filosofia é estática, a arte é
dinâmica; é mesmo essa a única
diferença entre a arte e a filosofia.
Por
concretização abstrata da emoção
entendo que a emoção, para ter relevo,
tem de ser dada como realidade, mas
não realidade concreta, mas realidade
abstrata. Por isso não considero artes
a pintura, a escultura e a
arquitetura, que pretendem concretizar
a emoção no concreto. Há só três
artes: a metafísica (que é uma arte),
a literatura e a música. E talvez
mesmo a música...
Presumivelmente
de 1916;
Pessoa, Fernando,
«Estética, Teoria e História da
Literatura / Princípios do
Sensacionismo» in Obras de
Fernando Pessoa, vol. III, Lello
& Irmão - Editores, Porto, 1986
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Poetas
sensacionistas |
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Se
a avaliação dos movimentos literários se
deve fazer pelo que trazem de novo, não
se pode pôr em dúvida que o movimento
sensacionista português é o mais
importante da atualidade. É tão pequeno
de aderentes quanto grande em beleza e
vida. Tem só três poetas e tem um
precursor inconsciente. Esboçou-o
levemente, sem querer, Cesário Verde.
Fundou-o Alberto
Caeiro, o
mestre glorioso [...]. Tornou-o,
logicamente, neoclássico o Dr. Ricardo
Reis.
Moderniza-o, paroxiza-o - verdade que
descrendo-o [?] e devirtuando-o - o
estranho e intenso poeta que é Álvaro de Campos. Estes quatro - estes três nomes
são todo o movimento. Mas estes três nomes
valem toda uma época literária.
Cada um destes 3 poetas
realiza uma cousa que há muito se andava
procurando [?] por esse tempo fora, e em
vão. Caeiro criou, de uma vez para sempre,
a poesia da Natureza, a única [?] poesia
da Natureza. R.
Reis encontrou
enfim a fórmula neoclássica. Álvaro de Campos revelou o que todos os [...]
paroxistas [?] e modernistas vários [?]
andam há anos a querer fazer. Cada um
destes poetas é supremo no seu género.
Presumivelmente
de
1916.
Pessoa, Fernando,
«Estética, Teoria e História da
Literatura / Os Poetas Sensacionistas»
in Obras de Fernando Pessoa,
vol. III, Lello & Irmão -
Editores, Porto, 1986
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