FL |
Farol
das
Letras |
 |
|

|
|
Imagens
do
filme
Quem És Tu?
de
João
Botelho
|
|
|
|
Esta é uma verdadeira
tragédia
«Esta é uma verdadeira
tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as
possa haver sobre factos e pessoas comparativamente
recentes. [...]
Demais, posto que eu não
creia no verso como língua dramática possível para
assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado
contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa
o título solene que as musas gregas deixaram
consagrado à mais sublime e difícil de todas as
composições poéticas.
O que escrevi em prosa,
pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto
está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar
todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas
sempre havia de aparecer mais artifício do que a
índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei
porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de
Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da
elegante prosa portuguesa que ele, mais do que
ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem
sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de
imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer
falar por versos meus o mais perfeito prosador da
língua.
Contento-me para a minha
obra com o título modesto de drama; só peço que a não
julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa
composição de forma e índole nova; porque a minha, se
na forma desmerece da categoria, pela índole há-de
ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores,
que me não julguei obrigado a ser escravo da
cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo
quanto a severa crítica moderna indigitou como
arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico
às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe,
por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de
melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória
ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de
maio de 1843 - nota de Garrett)
topo
|
|
|
|
|
|
«É, pois, a tragédia
imitação de uma ação de carácter elevado, completa e
de certa extensão, em linguagem ornamentada e com
várias espécies de ornamentos distribuídas pelas
diversas partes do [drama], [imitação que se efetua]
não por narrativa, mas mediante atores, e que,
suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a
purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é
executada por atores, em primeiro lugar o espetáculo
cénico há-de ser necessariamente uma das partes da
tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois
estes sãos os meios pelos quais os atores efetuam a
imitação. [...]
E como a tragédia é a
imitação de uma ação e se executa mediante personagens
que agem e que diversamente se apresentam, conforme o
próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas
diferenças de carácter e pensamento que nós
qualificamos as ações), daí vem por consequência o
serem duas causas naturais que determinam as ações:
pensamento e carácter; e, nas ações [assim
determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos
homens. Ora o mito é imitação de ações; e, por "mito",
entendo a composição dos atos; por "carácter", o que
nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal
qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as
personagens para demonstrar o que quer que seja ou
para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais
importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é
imitação de homens, mas de ações e de vida, de
felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou
infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da
vida é uma ação, não uma qualidade. Ora os homens
possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao
carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações
que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não
agem as personagens para imitar caracteres, mas
assumem caracteres para efetuar certas ações; por
isso, as ações e o mito constituem a finalidade da
tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o
princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm
os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura:
se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores,
a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas
houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é,
por conseguinte, imitação de uma ação e, através dela,
principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética, 49 b /
50 b
topo
|
|
|
|
|
|
Classificação
de Frei Luís de
Sousa
«Garrett
disse na Memória ao Conservatório que o
conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as
características de uma tragédia. No entanto,
chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal
da tragédia:
não é em verso, mas em prosa;
não tem cinco atos;
não respeita as unidades de tempo e de
lugar;
não tem assunto antigo.
Sendo
assim, quase podemos dizer que é uma tragédia,
quanto ao assunto. Na verdade,
-
o número de personagens é diminuto;
-
Madalena, casando sem ter a certeza do
seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando
o palácio, desafiam as prepotências divinas e
humanas (a hibris);
-
uma fatalidade ( a desonra de uma
família, equivalente à morte moral), que o
assistente vislumbra logo na primeira cena, cai
gradualmente (climax)
sobre Madalena, atingindo todas as restantes
personagens (pathos);
-
contra essa fatalidade os protagonistas
não podem lutar (se pudessem e assim
conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a
peça seria um drama);
limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de
ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez
mais pavoroso;
-
há um reconhecimento: a identificação
do Romeiro (a agnorisis);
-
Telmo, dizendo verdades duras à
protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma
palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas,
por outro lado, a peça está a transbordar de
romantismo:
-
a crença no sebastianismo;
-
a crença no aparecimento dos mortos, em
Telmo;
-
a crença em agouros, em dias aziagos,
em superstições;
-
as visões de Maria, os seus sonhos, o
seu idealismo patriótico;
-
o «titanismo» de Manuel de Sousa
incendiando a casa só para que os Governadores
do Reino a não utilizassem;
-
a atitude que Maria toma no final da
peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio
uno e indissolúvel, que força os pais à
separação e lhos rouba.
Se a isto
acrescentarmos certas características formais, como
-
o uso da prosa;
-
a divisão em três atos;
-
o estilo todo, do princípio ao fim,
teremos
que concluir que é um drama romântico, com
lances de tragédia apenas no conteúdo.»
Barreiros, António José, História
da Literatura Portuguesa, vol. II
topo
|
|
|
|
|
|
Processo
psicológico de autorrevelação e de desarticulação
da
personalidade de Telmo
«Não é o conflito das
personalidades e dos sentimentos,
particularmente da ambição e do amor, que
sobressai no Frei Luís de Sousa
ante a intervenção de uma fatalidade
transcendente aos homens indefesos,
independentemente de culpas ou responsabilidades
humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade:
o aparecimento dele vem destruir toda a vida que
se erguera sobre o pressuposto da morte de D.
João de Portugal; anular o segundo casamento da
sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a
filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das
insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria,
sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem
acontecimentos. Quando estes começam a
desencadear-se, no 2º ato, preparam, sem os
protagonistas se darem conta disso, o desfecho
que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num
ato exemplarmente patriótico, decide incendiar o
seu palácio e transferir-se para a antiga
residência de D. João, está-se metendo na boca
do lobo, porque é aquele o sítio onde
naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e
se identificará com o seu próprio retrato. O seu
ato exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa
ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta
história da Fatalidade exterior aos homens, que
os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem
que conta com a vida de D. João e para quem
portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a
realização de uma esperança, mas nesta
personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se
um processo psicológico que é talvez o que há de
mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no
culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença
de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o
ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da
morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu
velho aio descobre repentinamente que também ele
próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua
vida afetiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma
construção voluntária: o que efetivamente estava
vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança
nascida do segundo casamento de D. Madalena.
Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir
a construção sentimental em que julgava assentar
a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá
anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se
tentado a fazê-lo, isto é, a relegar
definitivamente para o mundo dos mortos D. João
de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não
tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo
que objetivamente esmaga uma situação
estabelecida entre os protagonistas, serve para
despertar subjetivamente um processo psicológico
de auto-revelação e de desarticulação da
personalidade dentro de Telmo Pais.»
Saraiva,
António José, História Ilustrada das Grandes
Literaturas
topo
|
© 2001-
-
Manuel Maria,
associado da SPA.
Textos
em conformidade com as normas do novo Acordo Ortográfico.
|