FL |
Farol
das
Letras |
|
|
|
Características
do Paulismo
|
|
O próprio paulismo
(termo que deriva do poema que começa
«Pauis de roçarem ânsias pela minh'
alma em oiro», atrás aludido) é uma
invenção de Pessoa
que consiste num refinamento dos
processos simbolistas. Como observou
Gaspar Simões, «Pauis» ilustra, bem
melhor que a poesia saudosista, os
caracteres que Pessoa
atribuíra a esta num artigo d' A
Águia: o vago, o complexo, o
subtil [...] O estilo paúlico
define-se pela voluntária confusão do
subjetivo e do objetivo, pela
«associação de ideias desconexas»,
pelas frases nominais, exclamativas,
pelas aberrações da sintaxe
(«transparente de Foi, oco de
ter-se»), pelo vocabulário expressivo
de tédio, do vazio da alma, do anseio
de «outra coisa», um vago «além»
(«ouro», «azul», «Mistério», pelo uso
de maiúsculas que traduzem a
profundidade espiritual de certas
palavras («Outros Sinos», «Hora»).
Coelho, Jacinto do
Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA (in
Modernismo), 3.ª
edição, 2.º volume, Porto,
Figueirinhas, 1979
|
|
|
|
|
|
Paulismo,
uma tentativa para o aperfeiçoamento
do Simbolismo |
|
De entre os
escassos textos do poeta escritos por
altura da criação do Paulismo, um,
aparecido postumamente, tem para nós
significação muito especial (1). Nele, Pessoa
postula o carácter de sonho da
literatura moderna. A nova literatura
é forçosamente arte de sonho, segundo
Pessoa,
porque o pensamento e a ação, na época
moderna, se separaram
irremediavelmente. «Na Idade Média e
na Renascença, um sonhador, como o
Infante D. Henrique, punha o seu sonho
em prática. Bastava que com
intensidade o sonhasse.» Hoje, 0
pequeno mundo fechado de outrora
rebentou. A democracia parcelou o
poder em várias partes, a época dos
Descobrimentos alargou a nossa visão
do mundo, introduzindo o imperialismo.
No mundo da realidade, as
possibilidades de aventura
atrofiaram-se; mesmo as mais audazes
expedições ao Pólo e as mais
temerárias experiências dos pioneiros
do voo já não esbarram com mistérios,
mas sempre com factos, já conhecidos
da Ciência ou, pelo menos, facilmente
integráveis na sua visão das coisas.
Por tudo isto, é que a Arte teve de
abandonar o mundo exterior, desvendado
e vazio, e refugiar-se nos mistérios
do mundo interior que tende «...para o
sonho crescente, cada vez mais para o
sonho».
O poeta destes
sonhos deve deixar-se conduzir pelas
impressões visuais, mais do que pelo
ouvido ou pelo tato. E o «quadro», a
«paisagem», é de sonho, na sua
essência, porque é estática,
negadora do continuamente dinâmico,
que é o mundo exterior. (Quanto mais
rápida e turva é a vida moderna, mais
lento, quieto e claro é sonho.) Sob o
signo do Paulismo e do Intersecionismo,
Pessoa
escreve poesias deliberadamente
estáticas [...]
Só se pode
julgar o Simbolismo
com justiça, se se reconhecer a sua
tripla natureza: «É: 1) uma decadência
do Romantismo;
2) um movimento de reação contra o
cientismo; 3) um estádio na evolução
(ou princípio duma evolução) de uma
nova arte.»
Ao escritor
moderno restam três caminhos, podendo:
1) «entregar-se ao mundo exterior» e,
na peugada de Whitman e Verhaeren,
tornar-se no cantor da civilização
moderna - papel que Pessoa
atribui em primeiro lugar ao seu
heterónimo Álvaro de Campos; 2) pôr-se
à margem, fechando-se «num sonho todo
individual», seguindo o exemplo de
Poe, Baudelaire, Rossetti e outros -
caminho que Pessoa
escolheu nas poesias em inglês
agrupadas sob o título The Mad
Fiddler; 3) fugir da realidade e
refugiar-se no sonho, mas procurando
levar consigo o «ruidosomundo»
exterior. O último caminho é o que Pessoa
considera o mais tipicamente
português, determinante da poesia
portuguesa já desde Antero de Quental.
[...]
É pois de notar
a mudança de atitude em relação ao Simbolismo,
pelo qual Pessoa,
nos artigos para «A Águia», mostrara a
mais total aversão. O Simbolismo
já não lhe parece o canto-de-cisne
duma época literária, mas sim um
possível começo para qualquer coisa de
diferente, de novo. Com isto fica o
caminho livre para as teorias paulista
como interseccionista.
Esta atitude também explica a razão de
ambas as doutrinas, apesar da polémica
de Pessoa
contra uma arte subjetiva, serem
afinal prolongamentos da escola
simbolista. Para além de ambas as
tentativas, paira a convicção de que
«o maior poeta da época moderna será o
que tiver mais capacidade de sonho».
De modo que ambas as «escolas» são
tidas desde o princípio como estádios
intermédios, como soluções
provisórias, como «a transição entre
dois estádios da evolução
civilizacional», isto é, entre o Romantismo
e uma época nova da arte, ainda não
claramente definível.
A designação de
Paulismo para a «arte de sonho
moderna» provém de uma poesia datada
de 29-3-1913, que começa com a palavra
«pauis». Paulismo significa, pois,
poesia de paul ou pântano. O poema
apareceu em 1914, no número único da
revista «A Renascença», e documenta a
primeira vinda a público de Pessoa
como poeta português. De Paris, Mário
de Sá-Carneiro, de quem Pessoa
se tornara recentemente amigo,
prodigaliza-lhe um acolhimento
entusiasta. Numa carta de 6-5-1913,
Sá-Carneiro escreve extasiado: «Quanto
aos PAUIS... Eu sinto-os, eu compreendo-os,
e acho-os simplesmente uma coisa
maravilhosa... É álcool doirado, é
chama louca, perfume de ilhas
misteriosas o que você pôs nesse
excerto admirável, onde abundam as
garras...» (2) A
admiração de Sá-Carneiro e de outros
escritores amigos mostra claramente
que o programa contido no poema
correspondia à expectativa dos autores
jovens.
Muito
justamente, J. G. Simões chama a
atenção para o facto de Pessoa
ter aplicado no poema programático
«Pauis» aqueles princípios,
precisamente, que tinha descrito nos
artigos para a revista dos
saudosistas, como sendo os
característicos da nova poesia
portuguesa (3). O
vago, a subtileza e a complexidade,
qualidades que atribuíra nos artigos
aos versos de Pascoaes e de Mário
Beirão, transfere-as Pessoa
agora, de forma programática, para a
sua própria poesia:
IMPRESSÕES
DO CREPÚSCULO
Pauis de
roçarem ânsias pela minh' alma
em ouro...
Dobre
longínquo de Outros Sinos...
Empalidece o louro
Trigo na
cinza do poente... Corre um
frio carnal por minh' alma...
Tão
sempre a mesma, a Hora!...
Balouçar de cimos de palma!
Silêncio
que as folhas fitam em nós...
Outono delgado
Oh que
mudo grito de ânsia põe garras
na Hora!
Que
pasmo de mim anseia por outra
coisa que o que chora!
Estendo
as mãos para além, mas ao
estendê-las já vejo
Que não
é aquilo que quero aquilo que
desejo...
Címbalos
de Imperfeição... Ó tão
antiguidade
A Hora
expulsa de si-Tempo! Onda de
recuo que invade
O meu
abandonar-se a mim próprio até
desfalecer,
E
recordar tanto o Eu presente
que me sinto esquecer!...
Fluido
de auréola, transparente de
Foi, oco de ter-se.
O
Mistério sabe-me a eu ser
outro... Luar sobre o não
conter-se...
A
sentinela é hirta - a lança
que finca no chão
É mais
alta do que ela... Para que é
tudo isto.... Dia chão...
Trepadeiras
de despropósitos lambendo de
Hora os Aléns...
Horizontes
fechando os olhos ao espaço em
que são elos de ferro...
Fanfarras
de ópios de silêncios
futuros... Longes trens...
Portões
vistos longe... através de
árvores... tão de ferro! (4)
No
centro do poema que concretiza a
conceção de Pessoa
da arte de sonho estática, aparece o
meio-verso: «Tão sempre a mesma, a
Hora!», meio-verso este que
caracteriza o tema: o tédio de viver.
Expressões do «vago» aparecem com
frequência extrema e propositada:
Pauis de roçarem ânsias, o soar do
dobre longínquo, as folhas que fitam o
silêncio da alma e, até o canto da
alma se confunde no indefinido das
coisas; no estremecimento perante o
tédio da hora, o poeta anseia pelo
inatingível: «por outra coisa que o
que chora.» O impulso para um Além,
quanto aos seus próprios fins. o Eu do
poeta deixa-se atrair para este
redemoinho de coisas vagas e sonhadas,
alheando-se de si mesmo até se reduzir
a uma simples recordação e cair
finalmente no esquecimento. Uma
alienação total de si mesmo
substitui-se-lhe: « O Mistério sabe-me
a eu ser outro...» Esta ânsia
indefinida de Ideal e a alienação de
si mesmo canalizam-se para a pergunta:
«Para que é tudo isto... Dia chão.» O
mundo não fornece resposta à ânsia de
ideal, fechando-se a qualquer
tentativa de escape para além dos
limites do mundo de sonho por nós
mesmo construído. Imagens desta nossa
limitação concluem o poema: primeiro
horizontes, depois portões numa
indiferença de ferro - impondo
barreiras ao poeta e ao seu mundo de
sonho, para além das quais ele não
consegue escapar.
A
«subtileza» também é facilmente
detetável. Segundo os artigos de Pessoa
para «A Águia», uma sensação simples
terá de ser traduzida por uma
expressão «que a torne vivida,
minuciosa, detalhada [...], sem
contudo lhe acrescentar elemento que
se não encontre na direta sensação
inicial».
Isto
verifica-se através da utilização de
imagens «intensificadoras». A
inquietação da alma torna-se mais
nítida através da imagem «pauis de
roçarem ânsias de minh' alma em
ouro...». A uniformidade deprimente da
Hora exterioriza-se no «balouçar de
cimos de palma.» O sentimento de
insuficiência é caracterizado pelos
«címbalos de Imperfeição». A
imobilidade do tempo traduz-se na
imagem da sentinela hirta que finca a
lança no chão. As «trepadeiras de
despropósitos» exprimem a ânsia vã de
Ideal
Aliada à
subtileza, por vezes quase se não
distinguindo dela, encontramos a
«complexidade». A complexidade
consiste, tal como fora definida nos
artigos sobre o Saudosismo,
na tradução «duma impressão ou
sensação simples por uma expressão que
a complica, acrescentando-lhe um
elemento explicativo que, extraído
dela, lhe dá um novo sentido». Como
exemplo desta complexidade podemos
considerar a imagem «alma em ouro»; a
emoção da alma ao contemplar o pôr do
Sol alia-se à ânsia de Ideal; a
palavra «ouro» é utilizada neste seu
sentido extremo tanto por Pessoa
como por Sá-Carneiro. A já mencionada
alienação de si mesmo complica-se por
meio da referência a novas qualidades:
«fluido, transparente, oco.» Um
exemplo de complexidade
particularmente arrojado é o da
expressão «fanfarras de ópios».
Paradoxalmente, as fanfarras anunciam
«silêncios futuros»; o ópio associa-se
à ideia de silêncio, por isso a
aposição de imagens «fanfarras de
ópios». E, por fim, encontramos no
verso «corre um frio carnal pela minh'
alma», simultaneamente, um exemplo da
«materialização do espírito» e
«espiritualização da matéria» que Pessoa
atribuíra à poesia de Pascoaes. Os
«Pauis» arquitetam, igualmente, um
reino de sonho completamente
subjetivo. Do mundo exterior só chegam
ao poema fragmentos, todos eles em
relação estreita com a
disposição do poeta: pauis, sinos,
trigo, palmas, o azul do céu, luar,
portões. Sem valor próprio, aparecem
como sinais dum mundo exterior
transferido, todo ele na sua
totalidade, para o mistério do sonho.
J.
G. Simões chamou ao Paulismo um saudosismo
intelectualizado. Pascoaes e Mário
Beirão tinham sido «vagos» na sua
poesia por intuição, porque ser vago
correspondia à conceção que tinham da
espiritualidade da Natureza; Pessoa,
pelo contrário, utiliza o «vago» com
propósitos programáticos. J. G. Simões
comenta a este respeito: «O elemento
intelectual que não comparecia na obra
dos saudosistas, todos emoção e
instinto, é o traço distintivo do
paulismo.» (5) Apesar
de assim ser, nã<o devemos passar
por cima a proximidade em que os
«Pauis» também se encontram do Simbolismo
[...]
Nela
[uma carta ao «Diário de Notícias»] Pessoa
instruiu os adversários da arte
moderna: «O paulismo pertence à
corrente cuja primeira manifestação
nítida foi o simbolismo
[...] o paulismo é um enorme progresso
sobre todo o simbolismo
e o neo-simbolismo de lá-fora.» (6)
1
- F. P., Paginas de Estética,
p. 156 e sgs;
2
- Mário de Sá-Carneiro, Cartas a
F. P., Lisboa, 1958, vol. I,
p. 116;
3
- J. G. Simões, Vida e Obra de
F. P., vol. I, p. 185;
4
- F. P., Obra Poética, p.
108;
5
- J. G. Simões, Vida
e Obra de F. P., vol. I, p.
190;
6
- F. P., Páginas Íntimas, p.
126.
Lind, Georg
Rudolf, «Duas Tentativas para o
Aperfeiçoamento do Simbolismo: o
Paulismo e o Intersecionismo» in Estudos
Sobre Fernando Pessoa,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
1981
|
topo
|
©
2001-
-
Manuel Maria,
associado da SPA.
|