As
teorias estético-literárias elaboradas por
Pessoa
depois do Paulismo
servem essencialmente para justificar os
heterónimos e fundamentar a produção deles,
pelo menos na sua primeira fase. De certa
maneira exceção é, apenas, o Intersecionismo
que coexiste com a criação dos heterónimos.
Mas como já notámos, o Intersecionismo
manteve-se desde o princípio muito próximo
do Sensacionismo,
acabando por se fundir com ele. Se, não
obstante, o consideramos separadamente, isto
deve-se ao facto de o Intersecionismo, tal
como o Paulismo,
poder ser interpretado mais facilmente à
base dos poemas que lhes servem de modelo.
Deve-se, pois, considerar conjuntamente a
poesia programática «Chuva
Oblíqua» e as passagens das cartas
relacionadas com o Intersecionismo, se
quisermos definir tanto quanto possível com
exatidão a fase de transição entre o Paulismo
e as teorias dos heterónimos.
Na
data 4-10-1914 - meio ano depois da criação
de Alberto
Caeiro, Ricardo
Reis e Álvaro
de
Campos -, Pessoa
escreve a Cortes-Rodrigues: «Verdade seja
que descobri um novo género de paulismo.
Mas preciso completar o feito.» (1)
Com a sua habitual paixão pelas ideias,
«caratteristica dei pigri fantasiosi e
complessati» (2) (Luciana
Stegagno Picchio), Pessoa
começa logo vasta ação de propaganda para
divulgação da nova corrente. Há que sair com
uma revista intersecionista, ou melhor
ainda, com uma antologia do Intersecionismo
e, para colaboradores, são mais uma vez
convocados todos os amigos que, há pouco
ainda ligados ao Paulismo,
de ora em diante passam a assinar-se de
intersecionistas: Sá-Carneiro, A. P. Guisado
e Cortes-Rodrigues. Para os espíritos
inferiores prevê-se o auxílio por meio de
gráficos ou desenhos em que o
Intersecionismo apareça como cruzamento ou
intersecção de todas as correntes
anteriores. O projeto não se chega a
concretizar, tal como acontecerá com a
antologia do Sensacionismo
em 1916. Parece, porém, ter existido um
manifesto do Intersecionismo, pelo menos em
fragmento, pois que Pessoa
se lhe refere numa carta a Cortes-Rodrigues
a 4-1-1915, na qual declara: «Não publicarei
o Manifesto «escandaloso»». Tratava-se
talvez dum texto precursor do «Ultimatum»
publicado por Álvaro
de
Campos em 1917 na revista «Portugal
Futurista»? O carácter escandaloso do
«Ultimatum» poderia justificar esta
conjetura, tanto mais que é um facto não ter
aparecido no espólio, onde de resto se
encontram todos os apontamentos manuscritos
do autor, qualquer manifesto
intersecionista.
De
qualquer maneira, é certo que Pessoa
quis, no seu primeiro entusiasmo,
interpretar o Intersecionismo como «Paulismo
a sério» e que considerou o «Orpheu»
do seu amigo Sá-Carneiro como o órgão
próprio para dar a ressonância devida à nova
escola. J. G. Simões (3)
sustenta esta opinião e afirma, noutro
local, que o Intersecionismo representa na
obra de Pessoa
a transposição do Cubismo e do
Futurismo para a literatura (4).
O próprio Pessoa,
porém, defende-se, como mostraremos,
categoricamente contra a confusão do
Intersecionismo com o
Futurismo. Simões sugere, mas
injustamente com certeza, que Pessoa
tivesse sido encaminhado para as suas novas
teorias através das cartas de Sá-Carneiro,
vindas de Paris. Mas as cartas de
Sá-carneiro dos anos de 1913 a 1914, embora
contenham de facto alusões ao Cubismo, ao
fascínio de Picasso e aos teoremas loucos do
futurista Santa Rita Pintor, não fornecem
quaisquer pontos de referência a partir dos
quais Pessoa
pudesse ter feito derivar o seu
Intersecionismo. Só em 13-8-1915, muito
depois do aparecimento do poema programático
do Intersecionismo, é que Sá-Carneiro
participa ao amigo a compra dum volume com
poemas futuristas de Marinetti, Bétuda e
Altomare, elogiando as exclamações aí
contidas «Fu, fu, cri, cri e corcuruco» como
muito recomendáveis adentro da nova poesia.
[...]
«Chuva
Oblíqua» é uma amostra de virtuosismo
poético e como tal, para demonstrar as
variações do novo programa, desdobra-se em
seis partes [...]. Para exemplo, tomemos
dois excertos especialmente característicos.
O poema na sua totalidade data de junho de
1914, seguindo-se aos primeiros versos de
Caeiro, e foi publicado em 1915, no segundo
número de «Orpheu».
CHUVA
OBLÍQUA
I
Atravessa
esta paisagem o meu sonho dum porto
infinito
E
a cor das flores é transparente de as
velas de grandes navios
Que
largam do cais arrastando nas águas
por sombra
Os
vultos ao sol daquelas árvores
antigas...
O
porto que sonho é sombrio e pálido
E
esta paisagem é cheia de sol deste
lado...
Mas
no meu espírito o sol deste dia é
porto sombrio
E
os navios que saem do porto são estas
árvores ao sol...
Liberto
em duplo, abandonei-me da paisagem
abaixo...
O
vulto do cais é a estrada nítida e
calma
Que
se levanta e se ergue como um muro,
E
os navios passam por dentro dos
troncos das árvores
Com
uma horizontalidade vertical,
E
deixam cair amarras na água pelas
folhas uma a uma dentro...
Não
sei quem me sonho...
Súbito
toda a água do mar do porto é
transparente
E
vejo no fundo, como uma estampa enorme
que lá estivesse desdobrada,
Esta
paisagem toda, renque de árvores,
estrada a arder em aquele porto,
E
a sombra duma nau mais antiga que o
porto que passa
Entre
o meu sonho do porto e o meu ver esta
paisagem
E
chega ao pé de mim, e entra por mim
dentro,
E
passa para o outro lado da minha
alma...
Se
chamamos a este poema paradigma da corrente
intersecionista é porque a sua estrutura
segue com uma nitidez geométrica uma única
diretriz fundamental: a intersecção de duas
superfícies, ou sejam, uma paisagem vivida e
um porto imaginado. Desta intersecção
resulta uma sequência imagética de grande
nitidez plástica. [...] O poema é muito
mais, de princípio a fim, uma montagem em
dois planos e os efeitos de contraste são
produzidos pela sobreposição de dois todos,
o sonhado e o vivido.
Com tudo
isto pode dizer-se que nos encontramos ainda
em terreno romântico; pois que, como no Paulismo, o
sonho é mais forte do que a realidade
exterior. O porto imaginário liberta o poeta
da realidade («liberto em duplo,
abandonei-me da paisagem abaixo...»). Na
segunda metade do poema processa-se
abertamente uma permuta entre o sonho e a
realidade: o porto imaginário ganha
supremacia, usurpando o lugar à paisagem
real que, por sua vez, assume a forma
imaginária, emergindo diante dos nossos
olhos como ficção, como «estampa» no fundo
das águas do porto imaginário. Desta dupla
paisagem estática solta-se a imagem mítica
da nau ou caravela que, apesar do seu
carácter imaginário, adquire tais foros de
realidade que o poeta a distingue ou
perceciona em ambos os planos
simultaneamente, e sente que entra por ele
dentro. Este fenómeno - a entrada da
caravela na alma do poeta - sublinha mais
uma vez a duplicidade da vivência,
duplicidade esta provocada pela intersecção
do sonho com a realidade.
Se nos
lembrarmos de que o que os pintores cubistas
pretendiam era representar simultaneamente
as várias superfícies dum objeto, as
visíveis e as encobertas, é-nos fácil
descobrir que o Intersecionismo nada tem a
ver com a técnica dos cubistas. O processo
da intersecção de superfícies não pode ter
derivado do cubismo nem pode, legitimamente,
ser relacionado com ele. A primazia dada ao
sonho no final do poema mostra muito mais
que a desvalorização paulista do mundo
exterior, em favor dum mundo fictício criado
pela imaginação do poeta, continua a existir
também no Intersecionismo. O novo estilo de
Pessoa
está mais próximo do Paulismo
do que o querem admitir críticos como J. G.
Simões.
A que
efeitos requintados pode conduzir a técnica
da intersecção, quando aplicada rigorosa e
consequentemente, podemos avaliá-lo numa
outra passagem de «Chuva
Oblíqua»:
III
A
Grande Esfinge do Egipto sonha pôr
este papel dentro...
Escrevo
- e ela aparece-me através da minha
mão transparente
E
ao canto do papel erguem-se as
pirâmides...
Escrevo
- perturbo-me de ver o bico da minha
pena
Ser
o perfil do rei Quéops...
De
repente paro...
Escureceu
tudo... Caio por um abismo feito de
tempo...
Estou
soterrado sob as pirâmides a escrever
versos à luz clara deste candeeiro
E
todo o Egipto me esmaga de alto
através dos traços que faço com a pena...
Ouço
a Esfinge rir por dentro
O
som da minha pena a correr no papel...
Atravessa
o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre
tudo para o canto do tecto que fica
por detrás de mim,
E
sobre o papel onde escrevo, entre ele
e a pena que escreve
Jaz
o cadáver do rei Quéops, olhando-me
com olhos muito abertos,
E
entre os nossos olhares que se cruzam
corre o Nilo
E
uma alegria de barcos embandeirados
erra
Numa
diagonal difusa
Entre
mim e o que eu penso...
Funerais
do rei Quéops em ouro velho e Mim!...
A técnica intersecionista - aliás
caracterizada em ambas as passagens por termos
geométricos, aqui através da «diagonal
difusa», na primeira parte através da
«horizontal vertical» - faz com que se
entrecruzem aqui os planos do presente e do
passado. Nos três primeiros versos o presente
real e o passado imaginário começam por se
apresentar desligados um do outro. O poeta ao
escrever está a pensar no Egipto, e as imagens
da esfinge e das pirâmides surgem diante dele.
A visão e a realidade encadeiam-se. A junção
das duas conduz ao desfecho quase humorístico
da imagem seguinte: no bico da pena do poeta
aparece o perfil do rei Quéops. A
técnica da intercalação, como vemos, é
utilizada a rigor. Feita a advertência («de
repente paro... Escureceu tudo...»),
consuma-se a permuta dos dois planos: o sonho
ganha a primazia e o poeta deixa-se dominar
pelas imagens que ele próprio criou ao ponto
de, neste caso, se sentir esmagado pelas
pirâmides. De novo se entrecruzam os dois
planos: o bico da caneta transforma-se no riso
da esfinge. Ao contrário do primeiro exemplo
que transcrevemos, parece-nos aqui evidente a
existência dum maior requinte na aplicação da
técnica intersecionista: o perfil do rei
Quéops transforma-se em cadáver, cadáver sete
que, como convém a um sonho, fita de olhos
abertos o poeta, iniciando com ele uma espécie
de diálogo mudo do qual resultam novas
imagens: o Nilo, barcos embandeirados,
preparativos para «os funerais. O «ouro velho»
do verso final, metáfora predileta não só de
Sá-Carneiro mas também de Pessoa
na fase paulista, indica-nos que a visão
acontece numa esfera ideal; os funerais do
rei têm lugar simultaneamente no passado e
no presente do Eu sensível.
Como
principal inovação em relação ao Paulismo
assinalam-se, além da nitidez plástica de
cada uma das imagens, nitidez esta já
antecipada em poemas como o «Ela canta,
pobre ceifeira», a transição da métrica
tradicional para o verso livre e sem rima.
Para o que o Marine de Rimbaud
poderia bem ter servido de exemplo.
Também o
Intersecionismo permanece ainda preso nas
malhas da poesia simbolista e subjetiva.
Ninguém o soube ver mais claramente que o
próprio Pessoa.
Na carta ao «Diário de Notícias» de 4-6-1915
temo-lo a protestar contra a confusão que os
jornalistas daquele diário, dada a sua
ignorância, praticam, entre
Futurismo e Intersecionismo;
Pessoa explica: «A atitude principal do futurismo á a
Objetividade Absoluta, a eliminação, da
arte, de tudo quanto é ALMA, quanto é
sentimento, emoção, lirismo, subjetividade
em suma. O futurismo
é dinâmico e analítico por excelência. Ora
se há cousa que [seja] típica do
Intersecionismo (tal é o nome do movimento
português) é a subjetividade excessiva, a
síntese levada ao máximo, o exagero da
atitude estática.» (5)
Se
procurámos dar uma ideia da técnica
intersecionista à base do exemplo de «Chuva
Oblíqua», é porque a estrutura deste
ciclo de poemas não é de modo algum
compreensível sem a teoria que lhe está por
detrás. De resto o número de poemas
claramente derivados do Intersecionismo é
muito reduzido. Isto provém do facto, com
certeza, de Pessoa
ter esboçado num período de tempo
relativamente curto várias teorias
totalmente diferentes; não é, pois para
admirar que cada uma das teorias de per si
só se possa encontrar, em estado puro, em
poucos poemas padrão.
[...]
Pessoa
tinha, aliás, todos os motivos para se opor
à confusão entre Intersecionismo e
Futurismo. Logo que a palavra de ordem
das tendências modernistas na arte europeia
começara a circular, todas as outras teorias
estavam em risco de serem classificadas sob
a mesma etiqueta. O Intersecionismo de Pessoa
não era, de resto, uma doutrina
cuidadosamente formulada, como o futurismo
de Marinetti, mas apenas uma técnica de
composição, cujas características peculiares
só se podiam avaliar pelos poemas que lhe
serviam de exemplo. Quem observasse de fora
podia imputar ao Intersecionismo tudo aquilo
que, pessoalmente, tinha por modernista. Daí
a confusão do Intersecionismo com o
Futurismo ter sido acatada,
inadvertidamente, mesmo pelo amigo mais
chegado de Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro, como no-lo mostra o
seu poema «Manicure». [...]
Os vários
planos caoticamente agrupados no poema e a
referência expressa a «inúmeras
intersecções» (em vez do entrecruzar de dois
planos apenas, utilizado por Pessoa),
afastam
o poema para perto do Simultaneísmo e do Sensacionismo.
1 - F. P., Cartas a
A. Cortes-Rodrigues, p. 60;
2 - «Características dos
preguiçosos fantasistas e complexados» (N.
do T.);
3 - Cf. J. G. Simões, Literatura,
Literatura, Literatura, Lisboa, 1964,
pp. 60 e segs.;
4 - J. G. Simões, Vida e
Obra de F. P., vol. I, p. 250;
5 - F. P., Páginas
Íntimas, p. 413.
Lind, Georg Rudolf,
«Duas Tentativas para o Aperfeiçoamento do
Simbolismo: o Paulismo e o Intersecionismo»
in Estudos Sobre Fernando Pessoa,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1981