FL Farol das Letras


| Início | Mapa do Sítio | Autor |

Poemas d' O Livro de Cesário Verde

Índice

I - CRISE ROMANESCA

Deslumbramentos


Milady, é perigoso contemplá-la,

Quando passa aromática e normal,

Com seu tipo tão nobre e tão de sala,

Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,

Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,

Eu vejo-a, com real solenidade,

Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:

O seu ar pensativo e senhoril,

A sua voz que tem um timbre de oiro

E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…

E é, na graça distinta do seu porte,

Como a Moda supérflua e feminina,

E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,

Britânica, e fazendo-me assombrar;

Grande dama fatal, sempre sozinha,

E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,

Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;

Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,

E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,

O modo diplomático e orgulhoso

Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,

Sem sorrisos, dramática, cortante;

Que eu procuro fundir na minha chama

Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,

Que hão-de acabar os bárbaros reais;

E os povos humilhados, pela noite,

Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,

Sob o cetim do Azul e as andorinhas,

Eu hei-de ver errar, alucinadas,

E arrastando farrapos - as rainhas!

topo


Setentrional


Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.  

Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com prantos uma acácia.

Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a lua sorria no teu rosto
E nas lajes que estão no cemitério.

Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas de um acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados,

E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos;
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos;

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borboletas doudejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes,

E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhámos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas;

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias,
Ouvíamos os meigos ditirambos,
Que os rouxinóis teciam nas olaias,

E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais,
Devolvia-te os beijos que me deras;

Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda...

E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo, tão calado como a Morte,
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitivamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia.

E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.

topo


Contrariedades


Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
       Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
       E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
       E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
       Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
       Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
       Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
       Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
       Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
       Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
       Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
       Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
       Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
       E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
       Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
       Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
       Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
       Que mundo! Coitadinha!

topo



A Débil


Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, – talvez que o não suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca,
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

topo



Num Bairro Moderno


Dez horas da manhã; os transparentes

Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins estacam-se as nascentes,

E fere a vista, com brancuras quentes,

A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,

Abriram-se, nalguns, as persianas,

E dum ou doutro, em quartos estucados,

Ou entre a rama dos papéis pintados,

Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu aconchego,

E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego,

Aonde eu agora quase sempre chego

Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,

Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada,

Como um retalho de horta aglomerada,

Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:

Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;

E abre-se-lhe o algodão azul da meia,

Se ela se curva, esguedelhada, feia,

E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:

«Se te convém, despacha; não converses.

Eu não dou mais.» E muito descansado,

Atira um cobre lívido, oxidado,

Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -

Se eu transformasse os simples vegetais,

À luz do Sol, o intenso colorista,

Num ser humano que se mova e exista

Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;

Com o cabaz às costas, e vergando,

Sobem padeiros, claros de farinha;

E às portas, uma ou outra campainha

Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,

Um novo corpo orgânico, aos bocados.

Achava os tons e as formas. Descobria

Uma cabeça numa melancia,

E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,

Negras e unidas, entre verdes folhos,

São tranças dum belo cabelo que se ajeite;

E os nabos - ossos nus, da cor dp leite,

E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante

Nas posições de certos frutos. E entre

As hortaliças, túmido, fragrante,

Como dalguém que tudo aquilo jante,

Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,

Vi nos legumes carnes tentadoras,

Sangue na ginja vívida, escarlate,

Bons corações pulsando no tomate

E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,

Como vendera a sua fresca alface

E dera o ramo de hortelã que cheira,

Voltando-se, gritou-me, prazenteira:

«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;

E, pelas duas asas a quebrar,

Nós levantámos todo aquele peso

Que ao chão de pedra resistia preso,

Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»

E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude,

Que brotam dos excessos de virtude

Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,

E ao longe rodam as carruagens,

A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,

Descolorida nas maçãs do rosto,

E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira

Duma janela azul; e, com o ralo

Do regador, parece que joeira

Ou que borrifa estrelas; e a poeira

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,

Oiço um canário - que infantil chilrada! -

Lidam ménages entre as gelosias,

E o sol estende, pelas frontarias,

Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,

O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,

Duma desgraça alegre que me incita,

Ela apregoa, magra, enfezadita,

As suas couves repolhudas, largas.

E, como grossas pernas dum gigante,

Sem tronco, mas atléticas, inteiras,

Carregam sobre a pobre caminhante,

Sobre a verdura rústica, abundante,

Duas frugais abóboras carneiras.


topo



Cristalizações


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha, os calceteiros,

Com lentidão, terrosos e grosseiros,

Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,

E o descoberto sol abafa e cria!

A frialdade exige o movimento;

E as poças de ar, como em chão vidrento,

Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,

Disseminadas, gritam as peixeiras;

Luzem, aquecem na manhã bonita,

Uns barracões de gente pobrezita

E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!

Tomam por outra parte os viandantes;

E o ferro e a pedra - que união sonora! -

Retinem alto pelo espaço fora,

Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,

Cuja coluna nunca se endireita,

Partem penedos; cruzam-se estilhaços.

Pesam enormemente os grossos maços,

Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!

Que espessos forros! Numa das regueiras

Acamam-se as japonas, os coletes;

E eles descalçam-se com os picaretes,

Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente flores,

Fundeiam, como a esquadra em fria paz,

As árvores despidas. Sóbrias cores!

Mastros, enxárcias, vergas! Valadores

Atiram terra com largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -

Carros de mão, que chiam carregados,

Conduzem saibro, vagarosamente;

Vê-se a cidade, mercantil, contente:

Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;

Em arco, sem as nuvens flutuantes,

O céu renova a tinta corredia;

E os charcos brilham tanto, que eu diria

Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,

Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.

E tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem

De tão lavada e igual temperatura!

Os ares, o caminho, a luz reagem;

Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;

Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal-encarado e negro, um pára enquanto eu passo,

Dois assobiam, altas marretas

Possantes, grossas, temperadas de aço;

E um gordo, o mestre, com um ar ralaço

E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!

Que vida tão custosa! Que diabo!

E os cavadores pousam as enxadas,

E cospem nas calosas mãos gretadas,

Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas;

Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,

Surge um perfil direito que se aguça;

E ar matinal de quem saiu da toca,

Uma figura fina, desemboca,

Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento

E a quem, à noite na plateia, atraio

Os olhos lisos como polimento!

Com seu rostinho estreito, friorento,

Caminha agora para seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados

Como lajões. Os bons trabalhadores!

Os filhos das lezírias, dos montados:

Os das planícies, altos, aprumados;

Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,

Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto,

Neste Dezembro enérgico, sucinto,

E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,

Eles, bovinos, másculos, ossudos,

Encaram-na sanguínea, brutalmente:

E ela vacila, hesita, impaciente

Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa

Covas. entulhos, lamaçais, depressa,

Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

topo



Sentimento dum Ocidental



[Ave-Marias] * [Noite Fechada] * [Ao Gás] * [Horas Mortas]

I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista, exposições, países:

Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,

Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinido de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecção!

II

NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som

Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!

O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,

Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,

Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,

E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos

Alastram em lençol os seus reflexos brancos;

E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,

Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,

Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;

Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;

Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,

Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives

Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,

Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,

Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;

Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,

Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:

Entro na brasserie; às mesas de emigrados,

Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III

AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.

Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,

Um forjador maneja um malho, rubramente;

E de uma padaria exala-se, inda quente,

Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,

Quisera que o real e a análise mo dessem;

Casas de confecções e modas resplandecem;

Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos reverberos,

E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,

Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!

Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,

Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,

A sua traîne imita um leque antigo, aberto,

Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,

Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes

Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;

Da solidão regouga um cauteleiro rouco;

Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim!

topo

IV

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,

Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,

Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,

E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,

Nós vamos explorar todos os continentes

E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas

E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores

Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;

Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,

Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;

Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;

E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,

Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas que revistam as escadas,

Caminham de lanterna e servem de chaveiros;

Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,

Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

A Dor humana busca os amplos horizontes,

E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

topo



De Tarde


Naquele pique-nique de burguesas,

Houve uma coisa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandezas,

Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampámos, inda o Sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!

topo



Vaidosa

Dizem que tu és pura como um lírio

E mais fria e insensível que o granito,

E que eu que passo aí por favorito

Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,

Que és muito desdenhosa e presumida,

E que o maior prazer da tua vida,

Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,

A déspota, a fatal, o figurino,

E afirmam que és um molde alabastrino,

E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio

Dos que são teus, ó corpo sem defeito,

E julgam que é monótono o teu peito

Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio

Me matas, me desvairas e adormeces,

És tão loira e doirada como as messes,

E possuis muito amor... muito amor próprio.

topo


Para consultar o Glossário de Termos Literários, clique aqui.




© 2001- - Manuel Maria, associado da SPA.