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Luís de Camões


[Crónica sobre o 10 de Junho] *  [ Os Lusíadas (Edição do Instituto Camões)] *  [Sonetos]



Esboço biográfico

Luís Vaz de Camões. É o nome do mais célebre dos escritores portugueses. Tendo vivido quase isolado dos seus pares, nenhuns deles em sua vida se lhe refere e só depois da morte mereceu de um ou outro raro amigo uma breve alusão, que, na ausência geral delas, atinge valor de preciosa. É, todavia, possível, completando os documentos que lhe respeitam, a ele ou à família, com seus escritos, tentar um esboço biográfico sem grande perigo de erros fundamentais, se bem deixando lacunas e sombras que já agora não há grande esperança de eliminar.

Impossível determinar a terra natal do poeta. Lisboa? Coimbra? A sua formação cultural, essa decorreu porventura em Coimbra, cidade em que o tio crúzio D. Bento de Camões era chanceler da Universidade e à qual o poeta se refere na Canção «Vão as serenas águas...» Aliás, a cultura que a obra demonstra é mais fácil compreendê-la admitindo-a como preparada em alguns anos de calma escolaridade, do que supondo-a adquirida na dissipação boémia da mocidade, em Lisboa, ou na acidentada existência de soldado ou funcionário no Oriente. A sua estada em Ceuta, de que fala o seu primeiro biógrafo Pedro de Mariz, documenta-se com a elegia «Aquela que de amor descomedido», e à perda em combate de um dos olhos se refere a Canção «Vinde cá, meu tão certo secretário».

Fora para Ceuta desterrado por «uns amores que, segundo dizem, tomou no Paço»? Não se sabe. O biógrafo Mariz repete o diz-se e não é possível assentar certeza sobre os versos das composições em que o Poeta fala de desterros, porque jamais esta palavra é interpretável apenas no sentido de degredo imposto como castigo e não afastamento de iniciativa própria.

De regresso a Lisboa, decorre-lhe a vida na frequentação do Paço, onde, então como antes, encontrou as relações a que os seus versos se referem, e entre elas a do filho dos Condes de Linhares, a cuja morte dedica uma Écloga, e a de D. Francisca de Aragão, a quem glosa um mote e escreve uma carta. Se, nos intervalos, em companhia dos marialvas do tempo, andas nas ruelas da Lisboa noturna, envolvido na boémia arruaceira que consta das Cartas II e III, numa destas cartas dá o Poeta evidência à distância a que de tal existência fica o seu ideal de vida. Diz ele ao amigo, que da boémia se fora para as suas terras de perto de Coimbra, que trocaria com ele a situação, «ainda com tornas», invejoso de passar o tempo «em braços com os Sonetos de Petrarca, Arcádia de Sannazaro, Éclogas de Virgílio». Não seria sem responsabilidade nesta desordem a Lisboa quinhentista, cais do Mundo, onde se aguardavam perigosas viagens de duras e longas abstinências, aonde se regressava depois de havê-las sofrido e se sentia o natural anseio de desforra dos sentidos moços, em áspera fome de prazeres.

Em tarde de procissão do Corpo de Deus, em consequência da rixa com Gonçalo Borges, que «tinha cárrego dos arreios do Rei», é preso no tronco da cidade. Uma carta de perdão publicada por Juromenha informa-nos de que o ferido, que ficou sem aleijão nem deformidade, perdoou ao agressor «toda a justiça, dano, corregimento». O Rei, por seu turno, lhe perdoa, por essas razões e ainda porque «o suplicante é um mancebo e pobre e me vai este ano (1553) servir à Índia...»

O ir servir o Rei à Índia não é condição imposta, até porque seria excessiva, dado que o agredido lhe perdoava: é espontânea resolução do Poeta, para mais facilmente obter o perdão, mas talvez ainda mais para se libertar da vida que o não contenta e que, em carta enviada da Índia, o faz escrever: «Enfim, Senhor, não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços me armavam os acontecimentos, como com me vir para esta» (terra), declaração que põe bem de manifesto a voluntariedade da largada.

Na Índia o Poeta não foi feliz. Goa dececionou-o, «Babilónia onde mana / matéria a quanto mal o mundo cria». Seus versos referem-se a excursões militares e, numa delas, no Cabo Guardafu, escreve uma das suas mais belas Canções, Junto dum seco, fero e estéril monte..., impressionante pela verdade do estado subjetivo e dos traços rápidos mas precisos do cenário. São ainda as suas composições que nos informam dos momentos de grato convívio, como aquele em que, tendo oferecido uma ceia a fidalgos seus amigos − João Lopes Leitão, Vasco de Ataíde, D. Francisco de Almeida e Heitor da Silveira − encontraram estes nos pratos graciosos versos por iguarias. Envolve-o simpatia e prestígio que o habilitam a pedir ao Vice-Rei, Conde de Redondo, a quem glosa versos que ele lhe manda, proteção para Heitor da Silveira e para o livro Colóquio dos Simples e Drogas, do Dr. Garcia de Orta, que publica a ode a isso destinada em sua primeira edição, e a solicitar do herói de Malaca, D. Leonis Pereira, benevolência igual para a obra de Magalhães Gândavo História de Santa Cruz. Colabora nas festas de investidura de Francisco Barreto no cargo de Governador da Índia (1555) com o Auto de Filodemo. Em alvará de 1585, confere Filipe I à mãe do Poeta − Ana de Sá − a tença do filho, falecido, atendendo aos serviços de «Simão Vaz de Camões e aos de Luís de Camões, seu filho, cavaleiro da minha casa, e a não entrar na feitoria de Chaul, de que era provido...» A nomeação do Poeta implica certo reconhecimento dos seus méritos, e o não provimento no cargo converge no mesmo significado com quanto nos fala nos seus infortúnios, por exemplo, as trovas ao Conde de Redondo, para que o livre do embargo por dívida a um certo Fios-Secos de alcunha; as Oitavas ao Vice-Rei D. Constantino de Bragança, em que alude à «pobreza avorrecida, / por hospícios alheios degradado»; e a do Canto X dos Lusíadas, alusiva ao injusto mando de que foi vítima e ao naufrágio na foz do rio Mecon. Fundindo suas mágoas pessoais com o mal-estar geral, o Poeta chora a incompreensão da Pátria, que o não ouve, porque «está metida / no gosto da cobiça e na rudeza / dua austera, apagada e vil tristeza».

No regresso a Portugal (1569), encontrou-o Diogo do Couto em Moçambique comendo de amigos, ao mesmo tempo que ia trabalhando nos seus Lusíadas e no seu Parnaso − «livro de muita erudição, doutrina e filosofia» que lhe foi roubado − «furto notável». Alude ainda à sua existência no Reino no desconforto da pura pobreza, situação de que nos dá testemunho igual o soneto que Diogo Bernardes lhe dedica na 1.ª ed. das Rimas (1595). A epopeia, publicada em 1572, não lha remediou notavelmente. A pensão de 15.000 réis, renovável, concedidos aos serviços passados e futuros e à «suficiência que mostrou no livro que fez das coisas da Índia», além de exígua comparada com as que, em data próxima, foram concedidas a pessoas da família de João de Barros, era-lhe paga com irregularidade, o que, somado à naturalíssima falta de tino administrativo dum Poeta, daria em resultado a penúria registada pelo seu primeiro biógrafo e a lenda das esmolas colhidas por Jau (javanês) seu criado. Era certeiro o fecho do soneto de Bernardes: «Honrou a Pátria em tudo. Imiga sorte / a fez com ele só ser encolhida / em prémio de estender dela a memória».

Cidade, Hernâni, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 1º volume, Porto, Figueirinhas, 1979




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