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Memorial do Convento



José Saramago

Memorial do Convento por capítulos



Capa da 3.ª edição
LINHAS DA AÇÃO NARRATIVA

Esquema 1


1.ª linha de ação

Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra.  >>>

2.ª linha de ação

Era uma vez a gente que construiu esse convento.  >>>

3.ª linha de ação

Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. >>>

4.ª linha de ação

Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.  >>>



PÓLOS ESTRUTURAIS DA AÇÃO NARRATIVA

Esquema 2


Universo dos Dominantes (Farsa Palaciana)

Universo dos Dominados (Epopeia do Trabalho)

 Universos Alternativos




Linhas da ação narrativa

1.ª linha de ação

Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra:

  • «Prometo, pela

    minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos…»

Cap. I, p. 14

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2.ª linha de ação

Era uma vez a gente que construiu esse convento:

  • «Em que posso então eu trabalhar, irmão, isto perguntou Baltasar a Álvaro Diogo, seu cunhado […] Há aqui mais quem esteja dormindo  […] só tem doze anos  […] este é o filho que ficou, chega à noite morto de dar serventia, andaime acima, andaime abaixo, acaba de cear e adormece logo, Querendo, há trabalho para toda a gente, disse Álvaro Diogo, podes ir de servente ou fazer carretos com os carros de mão, o teu gancho é quanto basta para amparares o varal»

Cap. XVII, pp. 210/211

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3.ª linha de ação

Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes:

  • «Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros»

Cap. IV, p. 35

  • «Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. […] Eu posso olhar por dentro das pessoas.

  • […] mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse»

Cap. VIII, pp. 77/78

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4.ª linha de ação

Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido:

  • «Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador»

Cap. VI, p. 61

  • «Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há de acabar cedo, se não fosse a proteção de el-rei não sei o que seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina»

Cap. VI, p. 64

  • «És um homem natural, nem cascos de mula nem asas de passarola, É assim que se chama a sua máquina, perguntou Baltasar, e o padre respondeu, Assim lhe têm chamado por desprezo.»

Cap. VI, pp. 65/66

  • «Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha fugido, dizem que louco»

Cap. XVII, p. 224

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Universo dos Dominantes (Farsa Palaciana)

REALEZA
  • «[…] fique ela sabendo que seu marido vem aí. Que espere. Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para a noite. Despiram-no os camaristas, vestiram-no com o trajo da função e do estilo, passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas, e isto se passa na presença de outros criados e pajens […] Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei […] já não tarda um minuto que D. João V se encaminhe ao quarto da rainha. O cântaro está à espera da fonte.»

Cap. I, p. 13

  • «Agora não se vá dizer que, por segredos de confissão divulgados, souberam os arrábidos que a rainha estava grávida antes mesmo que ela o participasse ao rei. Agora não se vá dizer que D. Maria Ana, por ser tão piedosa senhora, concordou calar-se o tempo bastante para aparecer com o chamariz da promessa o escolhido e virtuoso frei António. Agora não se vá dizer que el-rei contará as luas que decorrerem desde a noite do voto ao dia em que nascer o infante, e as achará completas. Não se diga mais do que ficou dito.»

Cap. II, p. 26

  • «D. Maria Ana, como razões acrescentadas de recato, tem a mais a maníaca devoção com que foi educada na Áustria, e a cumplicidade que deu ao artifício franciscano, assim mostrando ou dando a entender que a criança que em seu ventre se está formando é tão filha do rei de Portugal como do próprio Deus, a troco de um convento.»

Cap. III, p. 31

  • «São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra.»

Cap. I, p. 17

  • «D. Maria Ana […] de repente adormece e acha-se dentro do coche, recolhendo-se ao paço noite já escura […] e subitamente um homem a cavalo […] rompe o homem em direção ao coche […] e quando como um raio rompe a guarda da rainha […] é o infante D. Francisco, de que lugares do sono veio ele e porque virá tantas vezes. […] mas, comparando sonho e sonho, observa a rainha que de cada vez chega o infante mais perto, que quererá ele, e ela que quererá.»

Cap. III, p. 32

  • «Para D. Maria Ana é que lhe vem chegando o tempo. A barriga não aguenta crescer mais por muito que a estique, é um bojo enorme, uma nau da Índia, uma frota do Brasil...»

Cap. VII, p. 69

  • «D. João V vai ter de contentar-se com uma menina.»

Cap. VII, p. 71

  • Sete bispos a batizaram […] e à noite houve luminárias.»

Cap. VII, p. 73

  • «Levantemos agora os nossos próprios olhos, que é tempo de ver o infante D. Francisco a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos barcos, só para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair no convés, sangrando todos, um que outro morto, e se a bala errou não se livram de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo, enquanto os criados lhe carregam outra vez as armas, bem pode acontecer que este criado seja irmão daquele marinheiro, mas a esta distância nem sequer a voz do sangue é possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda, e o contramestre não se atreve a mandar descer os marujos para não irritar sua alteza e porque, apesar das baixas, a manobra tem de ser feita, e dizermos nós que ele não se atreve é ingenuidade de quem de longe está olhando, porque o mais certo é nem sequer pensar esta simples humanidade, Lá está aquele filho da puta a dar tiros aos meus marinheiros que vão para o mar a descobrir a Índia descoberta ou o Brasil encontrado, e em vez disso dá ordem para que venham lavar o convés […]»

Cap. VIII, p. 83

  • «[…] de el-rei não falemos, que sendo tão moço ainda gosta de brinquedos, por isso protege o padre, por isso se diverte tanto com as freiras nos mosteiros e as vai emprenhando, uma após outra, ou várias ao mesmo tempo, que quando acabar a sua história se hão de contar por dezenas os filhos assim arranjados, coitada da rainha, que seria dela se não fosse o seu confessor António Stieff, jesuíta, por lhe ensinar resignação, e os sonhos em que lhe aparece o infante D. Francisco com marinheiros mortos pendurados dos arções das mulas […]»

Cap. IX, p. 91

  • «Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas fica com as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são, ainda o ano passado teve uma francesa um filho da sua lavra, se agora o vissem as amantes reclusas e libertas não reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e infatigável cobridor.»

Cap. X, p. 112

  • «Vai D. João V para Azeitão […] assim fica o infante D. Francisco sozinho em Lisboa, fazendo corte, e já começa a urdir a trama e a teia, deitando contas à morte do irmão e à sua própria vida […] eu poderia, como irmão que vem a seguir, portanto de família chegada, cunhado de vossa majestade e mui dedicado servidor de vossa beleza e virtude, eu poderia, ouso dizer, subir ao trono e, de caminho, ao vosso leito, casando nós em boa e canónica forma, que por méritos de homem posso garantir que não sou menos que meu irmão, ora essa, Ora essa, que conversa tão imprópria de cunhados, el-rei ainda está vivo e, pelo poder das minhas preces, se deus mas ouve, não morrerá […] Porém, vossa majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem […]

Cap. X, pp. 112/114

  • «Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há de ser a primeira consideração […] Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes […], e se desta pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se com o ouro das minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos […]»

Cap. XVIII, p. 228

  • «Então diz-me lá como estamos de deve e haver. […] Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer que estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos […]»

Cap. XXI, p. 283

  • «Quanto pode um rei. Está sentado em seu trono, alivia-se consoante a necessidade, na peniqueira ou no ventre das madres, e daí, daqui ou dacolá, se o requerem os interesses do Estado, cujo ele é, despacha ordens para que de Penamacor venham os homens válidos, ou nem tanto, a trabalhar neste meu convento de Mafra, levantado porque o reclamavam os franciscanos desde mil seiscentos e vinte e quatro, e por enfim ter ocupado a rainha duma filha, que nem rainha de Portugal vai ser, mas de Espanha, por interesses dinásticos e particulares.»

Cap. XXI, p. 293

  • «Porém, ainda se encontram famílias felizes. A real de Espanha é uma. A de Portugal é outra. Casam-se filhos daquela com filhos desta, da banda deles vem Mariana Vitória, da banda nossa vai Maria Bárbara, os noivos são o José de cá e o Fernando de lá, respetivamente, como se costuma dizer. Não são combinações do pé para a mão, os casamentos estão feitos desde mil setecentos e vinte e cinco. Maria Bárbara tem dezassete anos feitos, cara de lua cheia, bexigosa como foi dito, mas é uma boa rapariga, musical a quanto pode chegar uma princesa, pelo menos não caíram em cesto roto as lições do seu mestre Domenico Scarlatti, que com ela seguirá para Madrid, donde não volta. […] virá Mariana Vitória, uma garotinha de onze anos, que, apesar de pouca idade, já tem uma dolorosa experiência de vida, basta dizer que esteve para casar-se com Luís XV de França e foi por ele repudiada, palavra que parece excessiva e nada diplomática, mas que outra se há de usar se uma criança, na tenra idade de quatro anos, vai viver para a corte francesa a fim de se educar para o dito casamento, e dois anos depois é mandada para casa porque de repente deu a febre ao prometido, ou aos interesses de quem o orientava, de ter rapidamente herdeiros a coroa, necessidade que a pobrezinha, por inabilitação fisiológica, não poderia satisfazer antes de decorridos uns oito anos. Veio devolvida a coitada, magrinha e delicada, um pisco a comer, com o mal inventado pretexto de visitar os pais, rei Filipe, rainha Isabel, e pronto, ficou em Madrid, à espera de que lhe arranjassem noivo menos apressado, calhou ser o nosso José, agora com quinze anos, a fazer.»

Cap. XXII, pp. 297/298

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CLERO
  • «Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. […] Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem, falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrábido. Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá.»

Cap. I, pp. 13/14

  • «Outro exemplo, mais do proveito da alma, se o corpo tão repleto está, será dado hoje aqui. Começou a sair a procissão, vêm os dominicanos à frente, trazendo a bandeira de S. Domingos, e os inquisidores depois, todos em comprida fila, até aparecerem os sentenciados, foi já dito que cento e quatro, trazem círios na mão, ao lado os acompanhantes, e tudo são rezas e murmúrios, por diferença de gorro e sambenito se conhece quem vai morrer e quem não […] o sambenito amarelo com a cruz de Santo André a vermelho para os que não mereceram a morte, o outro com as chamas viradas para baixo, dito fogo revolto, se confessando as culpas a evitaram, e a samarra cinzenta, lúgubre cor, com o retrato do condenado cercado de diabos e labaredas, o que, passado a linguagem, significa que aquelas duas mulheres vão arder não tarda.»

Cap. V, pp. 51/52

  • «e foi o caso que certo clérigo, costumeiro em andar por casas de mulheres de bem fazer e ainda melhor deixar que lhes façam, satisfazendo os apetites do estômago e desenfadando os da carne, e sempre pontualmente dizendo sua missa, quando lá lhe parecia alçava levando os bens que lhe estavam à mão, e tantas fez que um dia a ofendida, a quem muito mais se tirara do que o tudo que dera, tirou ela ordem de prisão, e indo os oficiais e agarradores a cumpri-la por ordem do corregedor do bairro, a uma casa onde o clérigo já estava vivendo com outras inocentes mulheres, entraram, mas tão desatentos à obrigação que não deram com ele, que estava metido numa cama, e foram a outra onde lhes pareceu que estaria, assim dando vaza para que o padre saltasse, nu em pelo, e, disparando escada abaixo, a murro e pontapé limpou o caminho, ficaram gemendo os quadrilheiros pretos, mas conforme puderam, cainçando, correram atrás do padre pugilista e garanhão, que já lá ia pela Rua dos Espingardeiros, e eram isto oito horas da manhã, começava bem o dia, gargalhadas pelas portas e janelas, ver o clérigo a correr como lebre, com os pretos atrás, e ele de verga tesa, e bem apeirado, benza-o Deus, que um homem tão dotado o lugar dele não é servir nos altares mas na cama de serviço às mulheres, e com este espetáculo padeceram grande abalo as senhoras moradoras, coitadas, assim desprevenidas, como desprevenidas e isentas estariam as que se achavam rezando na igreja da Conceição Velha e viram entrar o padre resfolgando, em figura de inocente Adão, mas tão carregado de culpas, sacudindo badalo e guisos, à uma apareceu, às duas se escondeu, às três nunca mais foi visto, que nesse passe de mágica deu a diligência dos padres que o recolheram e deram fuga pelos telhados, já vestido, nem isto é sucesso que cause estranheza, se em cestos içam os franciscanos de Xabregas mulheres para dentro das celas e com elas se gozam, por seu próprio pé subia este padre a casa das mulheres que lhe apeteciam o sacramento […]»

Cap. VIII, pp. 83/84

  • «É contudo um tempo de contrariedades. Agora sairão as freiras de Santa Mónica em extrema indignação, insubordinando-se contra as ordens de el-rei, de que só pudessem falar nos conventos a seus pais, filhos, irmãos e parentes até segundo grau, com o que pretende sua majestade pôr cobro ao escândalo de que são causa os freiráticos, nobres e não nobres, que frequentam as esposas do Senhor e as deixam grávidas no tempo de uma ave-maria, que o faça D. João V, só lhe fica bem, mas não um joão-qualquer ou um josé-ninguém. Acudiu o provincial da Graça, querendo reduzi-las ao sossego e ao acatamento da real vontade, sob pena de excomunhão se a quebrassem, mas elas num rompante se amotinaram, trezentas mulheres catolicamente enfurecidas por assim as cortarem do mundo, primeira vez o fizeram, segunda vez tornam, agora se verá como forçam portas frágeis mãos femininas, e já saem as freiras, trazem consigo violentamente a madre prioresa, vêm com sua cruz alçada, em procissão pela rua fora […]

  • quem vai à guerra empadas leva, e ao cabo desta manifestação chegou contraordem do paço, que tudo voltava à moralidade primeira, posto o que recolheram vitoriosas as freiras a Santa Mónica entoando jubilosos cânticos, ainda por cima consoladas com a absolvição do provincial que a mandou por portador, não em pessoa, porque bem podia apanhá-lo uma bala perdida, que isto de freiras amotinadas é a pior das batalhas.»

Cap. IX, pp. 93/94

  • «É então que começa a sair a procissão. […] e agora sim, agora começa o cortejo do patriarca, vêm primeiramente seis fidalgos parentes dele com tochas acesas, depois o beneficiado assistente com o báculo, mais um capelão com a naveta do incenso, atrás dos acólitos gingando turíbulos de prata lavrada, e dois mestres de cerimónias também levando tochas, Ah, gente pecadora, homens e mulheres que em danação teimais viver essas vossas transitórias vidas, fornicando, comendo, bebendo mais que a conta, faltando aos sacramentos e ao dízimo, que do inferno ousais falar com descaro e sem pavor, vós homens, que podendo ser apalpais o rabo às mulheres na igreja, vós mulheres, que só por derradeira vergonha não apalpais na igreja as partes dos homens, olhai o que está passando, o pálio de oito varas, e eu, patriarca, debaixo dele, com a sagrada custódia na mão, ajoelhai, ajoelhai, pecadores agora mesmo vos devíeis capar para não fornicardes mais, agora mesmo devíeis atar os queixos para não sujardes mais a vossa alma com a comilança e a bebedice, agora mesmo devíeis virar e despejar os vossos bolsos porque no paraíso não se requerem escudos, no inferno também não, no purgatório pagam-se as dívidas com rezas, aqui sim é que eles são precisos, para o ouro da custódia, para sustentar a prata toda esta gente […] assim é que o mundo está bem […] dai a César o que é de deus, a Deus o que é de César»

Cap. IX, pp. 149, 154/155

  • «Mas o padre anda inquieto, […] por isso Blimunda pergunta, em voz muito baixa, é noite, a forja está apagada, a máquina ainda ali continua, mas parece ausente, Padre Bartolomeu Lourenço, de que é que tem medo, e o padre, assim interpelado diretamente, estremece, levanta-se agitado, vai até à porta, olha para fora, e, tendo voltado, responde em voz baixa, Do santo Ofício. […]

  • O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abegoaria, vinha pálido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado que já fosse apodrecendo, Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me… »

    Cap. XVI, pp. 191, 193

  • «Blimunda acordou. […] Blimunda soube que era o frade do caminho. […] O frade tateou os pés de Blimunda, afastou-lhe devagarinho as pernas, para um lado, para o outro, excita-o terrivelmente a imobilidade da mulher, porventura está acordada e lhe apetece o homem, já as saias foram atiradas para cima, já o hábito arregaçado, a mão avança a reconhecer o caminho, estremeceu a mulher, mas não faz outro movimento, jubiloso o frade empurra o membro para a invisível fenda, jubiloso sente que os braços da mulher se fecham nas suas costas, há grandes alegrias na vida de um dominicano.»

Cap. XXIV, pp. 344/345

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Universo dos Dominados (Epopeia do Trabalho)

GUERRA
  • «Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros, na grande entrada de onze mil homens que fizemos em outubro do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos e debandada dos vivos, acossados pelos cavalos que os espanhóis fizeram sair de Badajoz.»

Cap. IV, p. 35

  • «A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas, cobrando, enfim, a dívida de quem nada lhes devia e sofria desespero igual. [...] Sete-Sóis, mutilado, caminhava para Lisboa pela estrada real, credor de uma mão esquerda que ficara parte em Espanha e parte em Portugal, por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe Francês, português nenhum […]»

Cap. IV, p. 36

  • «Um homem nunca sabe quando a guerra acaba. Diz, Olha, acabou, e de repente não se acabou, recomeça, e vem diferente, a puta, ainda ontem eram floreios de espada e hoje são arrombações de pelouro, ainda ontem se derrubavam muralhas e hoje se desmoronam cidades, ainda ontem se exterminavam países e hoje se rebentam mundos, ainda ontem morrer um era uma tragédia e hoje é banalidade evaporar-se um milhão, não será bem o caso de Mafra […]»

Cap. XXI, p. 286

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FOME
  • «Mas não, por isso mesmo falecendo mais facilmente, quem morra por ter comido pouco durante toda a vida, ou o que dela resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz, mais a alface que deu a alcunha aos moradores, e a carne quando faz anos sua majestade. […] Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro, não havendo portanto mediano termo entre a papada pletórica e o pescoço engelhado, entre o nariz rubicundo e o outro héctico, entre a nádega dançarina e a escorrida, entre a pança repleta e a barriga agarrada às costas.»

Cap. XXI, p. 286

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IRMANDADE DAS ESMOLAS
  • «Com pouco dinheiro no bolsilho , umas só moedas de cobre que soavam bem menos que os ferros do alforge, desembarcado numa cidade que mal conhecia, tinha Baltasar de resolver que passos daria a seguir, se a Mafra onde não poderia a sua única mão pegar numa enxada que requer duas, se ao paço onde talvez lhe dessem uma esmola por conta do sangue perdido. Alguém lhe tinha dito isto em Évora, mas também lhe foram dizendo que era necessário pedir muito e por muito tempo, com muito empenho de padrinhos, e apesar disso muitas vezes se apagava a voz e acabava a vida antes que se visse a cor ao dinheiro. Na falta, aí estavam as irmandades para a esmola e as portarias dos conventos que proviam ao caldo e ao tassalho do pão. E um homem a quem falte a mão canhota não tem muito de que se queixar se ainda lhe ficou a destra para pedir a quem passa.»

Cap. IV, p. 41

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PROSTITUIÇÃO
  • «E os outros, que fazem os outros. Esses rondam por estas ruas sempre lamacentas das águas despejadas, vão a certos becos onde as casas são também de tábuas, talvez construídas pela previdência da vedoria, que não ignora o que são precisões de homem, talvez pela usura de um empreiteiro de bordéis, quem fez a casa vendeu, quem a comprou alugou, quem alugou alugou-se, mais afortunado foi o burro que Baltasar e Blimunda levaram, a ele puseram-lhe lírios-de-água na cabeça, a estas mulheres, por trás das suas meias-portas, ninguém leva flores, apenas um sexo impaciente que às escuras entrou e saiu, quantas vezes trazendo consigo o princípio da podridão, o gálico, e então gemem os pobres tão desgraçados como as desgraçadas que os contaminaram, escorre o pus pelas pernas abaixo em intérmino fluxo, não é doença que os cirurgiões admitam nas enfermarias, o remédio, se o for, é aplicar nas partes o sumo da consólida, milagrosa e já referida planta que dá para tudo e não cura nada. Vieram para aqui rapagões que hoje, passados três ou quatro anos, estão podres dos pés à cabeça. Vieram limpas mulheres que mal acabaram de morrer tiveram de ser enterradas fundo porque se desfaziam em trampa e envenenavam o ar. No dia seguinte a casa tem nova inquilina. A enxerga é a mesma, os trapos nem foram lavados, um homem bate à porta e entra, não há perguntas a fazer nem respostas a dar, o preço é conhecido, desaperta-se ele, ela levanta as saias, gemeu ele o seu gozo, ela não precisa fingir, estamos entre gente séria.»

Cap. XX, pp. 273/274

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CRIMINALIDADE
  • «Sete-Sóis tem, por assim dizer, carta de privilégio, e, duplamente armado de espigão e espada, mete-se ao caminho, na penumbra das árvores. Matará adiante um homem, de dois que o quiseram roubar, mesmo tendo-lhes gritado que não levava dinheiros, porém, vindo nós de uma guerra onde vimos morrer tanta gente, não é este caso que mereça relato singular, salvo ter Sete-Sóis trocado depois o espigão pelo gancho para mais facilmente arrastar o morto para fora do caminho, assim ficando experimentados os préstimos de ambos os ferros. O salteador safo seguiu-o ainda por meia légua entre os pinheiros, por fim desistiu, e só de longe lhe lançou palavras de insulto e maldição, porém, como quem não acreditava que umas empecessem e outras ofendessem.»

Cap. IV, pp. 37/38

  • «Enquanto não adormeceram, falaram de crimes acontecidos. Não dos seus próprios, cada qual sabe de si, Deus saberá de todos, mas do gente principal, sem castigo quase sempre quando conhecidos os autores, e sem escrúpulo extremo da justiça nas averiguações se fora misterioso o ato. Ladrãozito, briguento, matador de a real e meio, se não havia perigo de soltar este a língua para denunciar o mandante, esses malhavam com os ossos no Limoeiro, e ainda assim tinham as sopas garantidas, tanto como a merda e o mijo em que viviam. […] E outro disse, Isto é terra de muito crime, morre-se mais que na guerra…»

Cap. IV, pp. 44/45

  • « O frade tateou os pés de Blimunda, afastou-lhe devagarinho as pernas, para um lado, para o outro, excita-o terrivelmente a imobilidade da mulher, porventura está acordada e lhe apetece o homem, já as saias foram atiradas para cima, já o hábito arregaçado, a mão avança a reconhecer o caminho, estremeceu a mulher, mas não faz outro movimento, jubiloso o frade empurra o membro para a invisível fenda, jubiloso sente que os braços da mulher se fecham nas suas costas, há grandes alegrias na vida de um dominicano. Empurrado pelas duas mãos, o espigão enterra-se entre as costelas, aflora por um instante o coração, depois continua o seu trajeto, há vinte anos que este ferro procurava esta segunda morte.»

Cap. XXIV, pp. 344/345

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20 MIL OPERÁRIOS SOFREDORES
  • « O sino da igreja de Santo André, no fundo do vale, deu as trindades. Por sobre a Ilha da Madeira, nas ruas e terreiros, dentro das tabernas e casas de acomodação, ouve-se um murmúrio contínuo, como o do mar ao longe. Estariam vinte mil homens dizendo a oração da tarde, estariam contando uns aos outros as suas vidas, vá lá averiguar-se.»

Cap. XVIII, p. 238

  • « Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam eles carpinteiros, pedreiros ou braçais, retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar, não lhes valendo considerações de família, dependência ou anterior obrigação, porque nada está acima da vontade real […]»

Cap. XXI, p. 291

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ALTO DA VELA
  • «El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há de ser levantado o convento. Ficará neste alto a que chamam da Vela […]»

Cap. VIII, p. 86

  • «Manhã cedo, saíram Baltasar e Álvaro Diogo, mais o rapaz […] e, como Mafra está no fundo duma cova, têm aqueles de subir por carreiros que já não são os de antigamente, cobriu-os o entulho que do alto da Vela vem sendo despejado. Olhando cá de baixo, o que de paredes se vê não promete nenhuma torre de Babel, e, chegando mais ao sopé da vertente, de todo a construção se esconde, sete anos há que andam nisto […]»

Cap. XVII, p. 211

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ILHA DA MADEIRA
  • «Sabia já Baltasar que o sítio onde se encontrava era conhecido pelo nome de Ilha da Madeira, e bem posto lhe fora, porque, tirando umas poucas casas de pedra e cal, todo o mais era de tabuado, mas construído para durar. Havia oficinas de ferreiros, bem que podia Baltasar ter mencionado a sua experiência de forja, nem tudo lembra, e outras artes de que nada sabia, mais tarde se juntarão as dos latoeiros, dos vidraceiros, dos pintores, e quantas mais. Muitas das casas de madeira tinham sobrados, em baixo acomodavam as bestas e os bois, em cima as pessoas de muita ou alguma distinção, os mestres da obra, os matriculadores e outros senhores da vedoria-geral, e oficiais da guerra que governavam os soldados. A esta hora da manhã estavam saindo das lojas os bois e as mulas, outros teriam sido levados mais cedo, o chão empapava-se de urina e excrementos […]

  • Nestas grandes barracas de madeira dormem os homens, não comporta cada uma menos de duzentos, e, aqui onde está, não pode Baltasar contar os barracões todos, chegou a cinquenta e sete e perdeu-se […]»

Cap. XVII, p. 214/215

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ESFORÇOS HERCÚLEOS
  • «Tão grande fora o sofrimento durante este arrastado dia, que todos diziam, Amanhã não pode ser pior, e no entanto sabiam que iria ser pior mil vezes. […] não podem as galés ser piores do que isto. […] Assim, a plataforma ia descer a pulso. Não havia outra maneira. […]

  • Seiscentos homens agarrados desesperadamente aos doze calabres que tinham sido fixados na traseira da plataforma, seiscentos homens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-lhes aos poucos a tesura dos músculos, seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser, agora sim, ontem aquilo foi uma brincadeira de rapazes […]

  • Um dos homens que trabalham aos calços é Francisco Marques. Provou já a sua destreza, uma curva má, duas péssimas, três piores que todas, quatro só se fôssemos doidos, e por cada uma delas vinte movimentos, tem consciência de que está a fazer bem o trabalho, por acaso agora nem pensa na mulher, a cada coisa seu tempo, toda a atenção se fixa na roda que vai começar a mover-se, que será preciso travar, não tão cedo que torne inútil o esforço que lá atrás estão fazendo os companheiros, não tão tarde que ganhe o carro velocidade e se escape ao calço. Como agora aconteceu. Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com o antebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim lembrando-se da mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debaixo do carro esmagado […]»

Cap. XIX, pp. 256/259

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NARRATIVAS VALORIZANDO A SIMPLICIDADE E A DIGNIDADE HUMANAS

  • « Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido em palácio, mais os filhos, que eram um infante e uma infanta, assim deste tamanho, e então diz-se que o rei  gostava muito de ser rei, mas a rainha é que não sabia se gostava, ou não, de ser o que era, porque nunca lhe tinham ensinado a ser outra coisa, por isso não podia escolher e dizer, gosto mais de ser rainha, ainda se ela fosse como o rei, que esse gostava de ser o que era porque outra coisa também lhe não tinham ensinado, mas a rainha era diferente, se fosse igual não haveria história, então aconteceu que lá no reino […]»

Cap. XIX, p. 251

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Universos Alternativos

CONSTRUÇÃO DA PASSAROLA
  • «Então é isto, e o padre Bartolomeu Lourenço respondeu, Há de ser isto, e, abrindo uma arca, tirou um papel que desenrolou, onde se via o desenho de uma ave, a passarola seria, isso era Baltasar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam capazes de voar. Quando, limitou-se a perguntar, Ainda não sei, respondeu o padre, falta-me quem me ajude, sozinho não posso tudo, e há trabalhos para que a minha força não é suficiente. Calou-se outra vez, e depois, Queres tu vir ajudar-me, perguntou. Baltasar deu um passo atrás, estupefacto, Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão, Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres […]»

Cap. VI, pp. 67/68

  • «Enferrujam-se os arames e os ferros, cobrem-se os panos de mofo, destrança-se o vime ressequido, obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína. Baltasar deu duas voltas à máquina voadora, nada contente de ver o que via, com o gancho do braço esquerdo puxou violentamente o esqueleto metálico, ferro contra ferro, a provar-lhe a resistência, e era pouca, Parece-me que melhor será desmanchar tudo e começar outra vez, Desmanchar, sim, respondeu Blimunda, mas, sem que venha o padre Bartolomeu Lourenço, não vale a pena pegares no trabalho […]

  • Em menos de uma semana deixou a máquina de ser máquina ou seu projeto, quanto ali se mostrava poderia servir para mil diferentes coisas […] Enquanto o padre Bartolomeu Lourenço não chega, construímos aqui a forja […]»

Cap. XIII, p. 141

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EDIFICAÇÃO DO CONVENTO
  • «Baltasar deu-lhe a volta por inteiro, com o vagar de quem observa a casa onde passará a viver, lá vão aqueles com os carros de mão, outros subindo aos andaimes, uns levando a cal e a areia, outros, aos pares, transportando as pedras a pau e corda pelas rampas suaves, e os mestres-de-obra vigiando de bastão em punho, e os olheiros com o olho na diligência do operário e na perfeição do serviço…/…»

  • «Ali tombado está um carro de mão, quer Baltasar experimentar se lhe aprende facilmente o jeito, não custa nada, e se com uma goiva cavar uma meia-lua na parte inferior do varal esquerdo, então poderá medir meças a qualquer par de mãos.»

Cap. XVII, pp. 215/216

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HISTÓRIA DE AMOR
  • «Entraram no quintal. O luar já era cor de leite. […] Havia ali uma velha barraca coberta de bunho apodrecido […] para dentro da barraca o levou Blimunda […] só Gabriel aqui virá ter encontros depois de mudadas estas vidas, tão perto isso já vem e ninguém o adivinha. Talvez alguém, talvez Blimunda, não por ter puxado Baltasar para a barraca, […] mas por uma ânsia que lhe aperta o coração, pela violência com que abraça Baltasar, pela sofreguidão do beijo, pobres bocas, perdida está a frescura, perdidos estão alguns dentes, partidos outros, afinal o amor existe sobre todas as coisas.

  • Contra o costume, dormiram ali.»

Cap. XXIII, pp. 331/332

  • «Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. […]

  • Encontrou-o. […]São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.»

Cap. XXV, pp. 353, 356/357

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