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Personagens
da Aparição
* Existencialismo,
segundo Sartre
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Autobiografia
de
Vergílio
Ferreira
Vejo o meu pai, no limite da minha
infância, dobrar a porta do pátio, com um baú
de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se
voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na
minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo
ter o olhar espantado e ofendido por ele
partir. Mas alguns meses depois o corredor da
casa da minha avó amontoa-se de gente, na
despedida de minha mãe e da minha irmã mais
velha que partiam também. Do alto dos degraus
de uma sala contígua, descubro um mar de
cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda,
na memória que me ficou. Depois, não sei como,
vejo-me correndo atrás da charrete que as
levava. O cavalo corria mais do que eu e a
poeira que se ia erguendo tornava ainda a
distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de
dentro da charrete e cada vez de mais longe.
Até que deixei de correr. Dessa vez houve
choro pela noite adiante - tia Quina contava,
conta ainda. Mas não conta de choro algum dos
meus dois irmãos que ficavam também. Deve-me
ter vibrado pela vida fora esse choro que não
lembro. É dos livros, suponho. Depois a
infância recomeçou. Três irmãos, duas tias e
avó maternas, depois a vida recomeçou. Mas
toda essa infância me parece atravessar apenas
um longo inverno. É um inverno soturno de
chuvas e de vento, de neves na montanha, de
histórias de terror, contadas à luz da candeia
no negrume da cozinha, assombrada de
tempestade. Até que um dia um tio de minha
mãe, que era padre na aldeia, se pôs o
problema de eu não ser talvez estúpido. E
imediatamente se empolgou para me consagrar ao
Altíssimo. E para me ir desbravando a alma,
juntamente com a doutrina, atacou-me a memória
com o latinório todo da missa. Aprendi-o sem
falhas, ia eu nos seis anos. E quando aos sete
o fui ver esticado na cama, a face toda negra,
e me obrigaram a beijar-lhe a mão morta, já
tinha o destino talhado para o Senhor. Minhas
tias apoderaram-se logo de mim, negligenciando
um pouco os meus irmãos, e sufocaram-me de
religião. Na instrução primária cumpri. Deus
mostrava à evidência que me chamava ao seu
serviço. Era forte em contas, mais atrapalhado
em História, de qualquer modo, os desígnios de
Deus eram evidentes. E assim, para se cumprir
a sua vontade, parti. Ficava à distância de um
dia de comboio, o Seminário. Saio na estação
ao anoitecer, há uma multidão de seminaristas
à minha volta, todos vestidos de preto. Estou
entre eles, não conheço ninguém. Avançamos
pelo escuro estrada fora, no tropear confuso
de uma enorme massa negra. O Seminário
espera-nos numa curva da estrada. É um casarão
enorme, olho-o do fundo do meu pavor. Há
outono à minha volta, respiro-o agora em todo
esse passado morto, nos castanheiros a
desfolharem-se na cerca, no espaço dos salões,
nos longos corredores ermos, nos ângulos
cruzados pelos espetros perfeitos. Mas seis
anos depois, levantado de heroísmo, saí. Fiz o
liceu, entrei na Universidade. Mas não o fiz
assim em três palavras como o faço aqui. Meu
irmão corpo. Como foi difícil acomodarmo-nos
um ao outro. A vida que me coube não a pude
utilizar toda. Numa fração dela acumulei assim
aquilo com que se realiza - o sonho, o
trabalho, a alegria.
E eis que se me levantam os sete
anos de Coimbra. Sombrios, longos, penosos.
Mas o que acede desse tempo à evocação tem
apenas o halo de uma balada. Ruas da Alta, e a
Torre, e o plácido rio do alto da
Universidade, e os mestres que eu julgava um
prodígio da Natureza, quando cheguei à cidade,
e fiquei a julgar também, a vários deles,
quando saí, mas com outro sinal, e a praxe
estúpida, e os namoros estúpidos, e a
descoberta, enfim, da literatura, que só então
descobri, embora trabalhasse há muito o verso
com obstinação, e as tertúlias, as rixas, o
próprio futebol, as próprias desgraças físicas
- tudo me ressoa agora a uma toada de legenda.
Da festa juvenil, como da festa literária eu
só conhecia as margens do rumor que
transbordava da alegria dos outros. Isso
basta, porém, a que a legenda se me levante e
o seu eco me ondeie ao espaço da evocação.
Assim Coimbra, só no ressoar do seu nome tem
já um timbre de guitarra. Música de miséria,
não é nela que eu a ouço, mas no passado que a
transcende e é da memória inatingível, da
memória absoluta. Coimbra da saudade difícil,
Coimbra de sempre e de nunca. Comigo a levei,
longo tempo me acompanhou, presente,
obsessiva. Mas havia tanta coisa ainda à minha
espera. Faro do ar marinho, da laguna das
águas mortas, Bragança das invernias, Évora,
Lisboa. Professor sou-o por fatalidade. Mas
alguma coisa se me impõe na avidez dos alunos
que me escutam, na necessidade de responder à
sua descoberta do Mundo - e assim me invento o
professor que não sou, e eles imaginam em
verdade o que é em mim só ficção. Mas dos
centros de irradiação da minha atividade,
apenas Évora transbordou de emoção para a
lembrança. E como a Coimbra, é de novo a
música, agora o coral dos camponeses, que a
levanta ao espaço da minha comoção. Ouço-o
ainda agora, a esse coro de amargura, raiado à
infinidade da planície. Évora do silêncio com
sinos nas manhãs de domingo, estradas
abandonadas à vertigem da distância, ó cidade
irreal, cidade única, memória perdida de mim.
Sou do Alentejo como da serra onde nasci, a
mesma voz de uma e outra ressoa em mim a
espaço, a angústia e solidão.
E a minha biografia deve ter
findado aqui. Lisboa é um sítio onde se está,
não um lugar onde se vive. Mesmo que se lá
viva há 18 anos como eu. Eu o disse, aliás, a
alguém, na iminência de vir: quando for para
Lisboa, levo a província comigo e instalo-me
nela. E assim se fez. Os livros que aqui
escrevi são afinal da província donde sou.
Terrorismo do trânsito, das relações pessoais,
da luta em febre pela glória por que se luta
ou do ódio surdo pela que calhou aos outros,
terrorismo das distâncias, das relações
humanas ao telefone, das cartas que nos
escrevemos para de uma rua a outra ao pé, da
cultura tratada a uísque nos salões do
mundanismo, da individualidade perdida, da
vida massificada. Vejo-me numa enfermaria do
hospital, acordando estranhamente de não sei
que tempo de inconsciência, com vários médicos
conversando entre si e sobre mim. Pergunto de
que se trata, porque estou ali. «Foste
atropelado» - diz-me o meu filho, que é um dos
médicos. Tenho fratura do crânio, várias
contusões pelo corpo. Lisboa, selvagem, cidade
bonita na claridade dos prédios, no rio das
descobertas, no aéreo das colinas, meu veneno
e minha sedução. Fui atropelado. Mas é talvez
justo que o fosse. Porque eu não sou daqui.
maio, 1977
Godinho, Helder e Ferreira, Serafim
(organização), Vergílio Ferreira -
fotobiografia, Bertrand Editora,
outubro de 1993.
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