1 «Caetano da
Maia era um português antigo e fiel que se
benzia ao nome de Robespierre, e que, na
sua apatia de fidalgo beato e doente,
tinha só um sentimento vivo - o horror, o
ódio ao Jacobino, a quem atribuía todos os
males, os da pátria e os seus, desde a
perda das colónias até às crises da sua
gota. Para extirpar da nação o Jacobino,
dera ele o seu amor ao senhor infante D.
Miguel, messias forte e restaurador
providencial... E ter justamente por filho
um jacobino, parecia-lhe uma provação
comparável só às de Job!» (p. 13)
2
«A gota cruel, cravando-o na poltrona, não
lhe deixou espancar o mação, com a sua
bengala da Índia, à lei de bom pai
português: mas decidiu expulsá-lo de sua
casa, sem mesada e sem benção, renegado
como um bastardo!» (pp. 13/14)
3
«As lágrimas da mamã amoleceram-no;
sobretudo as razões de uma cunhada de sua
mulher, que vivia com eles em Benfica,
senhora irlandesa de alta instrução,
Minerva respeitada e tutelar, que ensinara
inglês ao menino e o adorava como um bebé.
Caetano da Maia limitou-se a desterrar o
filho para a Quinta de Santa Olávia [...]»
(p. 14)
4
[...] «mas não cessou de chorar no seio
dos padres que vinham a Benfica a desgraça
de sua casa. E esses santos lá o
consolavam, afirmando-lhe que Deus, o
velho Deus de Ourique, não permitiria
jamais que um Maia pactuasse com Belzebu e
com a Revolução! E, à falta de Deus-Padre,
lá estava Nossa Senhora da Soledade,
padroeira da casa e madrinha do menino,
para fazer o milagre.
E
o milagre fez-se. Meses depois, o
jacobino, o Marat, voltava de Santa Olávia
um pouco contrito, enfastiado sobretudo
daquela solidão [...] Vinha pedir ao pai a
bênção, e alguns mil cruzados, para ir
para Inglaterra [...] O pai beijou-o, todo
e lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente,
vendo ali a evidente, a gloriosa
intercessão de Nossa Senhora da Soledade!»
(p. 14)
5 «
O antepassado, cujos olhos se enchiam
agora de uma luz de ternura diante das
suas rosas, e que ao canto do lume relia
com gosto o seu Guizot, fora, na opinião
de seu pai, algum tempo, o mais feroz
jacobino de Portugal! E todavia, o furor
revolucionário do pobre moço consistira em
ler Rousseau, Volney, Helvécio, e a
«Enciclopédia»; em atirar foguetes de
lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à
liberal e alta gravata azul, recitando
pelas lojas maçónicas odes abomináveis ao
Supremo Arquitecto do Universo.» (p. 13)
6
«E o milagre fez-se. Meses depois, o jacobino, o
Marat, voltava de Santa Olávia um pouco
contrito, enfastiado sobretudo daquela
solidão [...] Vinha pedir ao pai a bênção,
e alguns mil cruzados, para ir para
Inglaterra [...]» (p. 14)
7
«Afonso partiu. Era na Primavera - e a
Inglaterra toda verde, os seus parques de
luxo, os copiosos confortos, a harmonia
permanente dos seus nobres costumes,
aquela raça tão séria e tão forte -
encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu
ódio aos sorumbáticos padres da
Congregação, as horas ardentes passadas no
café dos Remolares a recitar Mirabeau, e a
república que quisera fundar, clássica e
voltairiana, com um triunvirato de Cipiões
e festas ao Ente Supremo. Durante os dias
da Abrilada estava ele nas corridas de
Epson, no alto de uma sege de posta, com
um grande nariz postiço, dando hurras
medonhos - bem indiferente aos seus irmãos
de Maçonaria, que a essas horas o senhor
infante espicaçava a chuço, pelas vielas
do Bairro Alto, no seu rijo cavalo de
Alter.» (pp. 14/15)
8
«Mas não esquecia a Inglaterra: - e
tornava-lha mais apetecida essa Lisboa
miguelista que ele via, desordenada como
uma Tunes barbaresca; essa rude conjuração
apostólica de frades e boleeiros, atroando
tabernas e capelas; essa plebe beata, suja
e feroz, rolando do lausperene para o
curro, e ansiando tumultuosamente pelo
príncipe que lhe encarnava tão bem os
vícios e as paixões...
Este
espectáculo indignava Afonso da Maia [...]
O que não tolerava era o mundo de Queluz,
bestial e sórdido.» (p.15)
9
«Tais palavras, apenas soltas, voavam a
Queluz. E quando se reuniram as Cortes
Gerais, a polícia invadiu Benfica, «a
procurar papéis e armas escondida».
Afonso
da Maia, com o seu filho nos braços e a
mulher tremendo ao lado - viu,
impassivelmente e sem uma palavra, a
busca, as gavetas arrombadas pela coronha
das escopetas, as mãos sujas do malsim
rebuscando os colchões do seu leito. [...]
e daí a semanas, com a mulher e com o
filho, Afonso da Maia partia para
Inglaterra e para o exílio.» (pp. 15/16)
10
«Ao princípio os emigrados liberais,
Palmela e a gente do «Belfast», ainda o
vieram desassossegar e consumir. A sua
alma recta não tardou a protestar vendo a
separação de castas, de jerarquias,
mantidas ali na terra estranha entre os
vencidos da mesma ideia - os fidalgos e os
desembargadores vivendo no luxo de Londres
à forra, a a plebe, o exército, depois dos
padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à
fome, à vérmina, à febre nos barracões de
Plymouth. Teve logo conflitos com os
chefes liberais; foi acusado de vintista e
demagogo; descreu por fim do liberalismo.
Isolou-se então - sem fechar todavia a sua
bolsa, donde saíam às cinquenta, às cem
moedas... Mas quando a primeira expedição
partiu, e pouco a pouco se foram vazando
os depósitos de emigrados, respirou enfim
- e, como ele disse, pela primeira vez lhe
soube bem o ar de Inglaterra!» (p. 16)
11
«Teve relações; estudou a nobre e rica
literatura inglesa; interessou-se, como
convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela
cultura, pela cria dos cavalos, pela
prática da caridade - e pensava com prazer
em ficar ali para sempre naquela paz e
naquela ordem.» (p. 17)
12
«Somente Afonso sentia que sua mulher não
era feliz. Pensativa e triste, tossia
sempre pelas salas. À noite sentava-se ao
fogão, suspirava e ficava calada...
Pobre
senhora! A nostalgia do país, da
parentela, das igrejas, ia-a minando.
Verdadeira lisboeta, pequenina e
trigueira, sem se queixar e sorrindo
palidamente, tinha vivido desde que
chegara num ódio surdo àquela terra de
hereges e ao seu idioma bárbaro: sempre
arrepiada, abafada em peles, olhando com
pavor os céus fuscos ou a neve nas
árvores, o seu coração não estivera nunca
ali, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos
bairros batidos do sol. A sua devoção (a
devoção dos Runas!) sempre grande,
exaltara-se, exacerbara-se àquela
hostilidade ambiente que ela sentia em
redor contra os «papistas». E só se
satisfazia à noite, indo refugiar-se no
sótão com as criadas portuguesas, para
rezar o terço agachada numa esteira -
gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias
em país protestante, o encanto de uma
conjuração católica!
Odiando
tudo o que era inglês, não consentira que
seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao
colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe
provou que era um colégio católico. Não
queria: aquele catolicismo sem romarias,
sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do
Senhor dos Passos, sem frades nas ruas -
não lhe parecia a religião. A alma do seu
Pedrinho não abandonaria ela à heresia; -
e para o educar mandou vir de Lisboa o
padre Vasques, capelão do conde de Runa.»
(pp. 17/18)
13
«O Vasques ensinava-lhe as declinações
latinas, sobretudo a cartilha: e a face de
Afonso da Maia cobria-se de tristeza
quando ao voltar de alguma caçada ou das
ruas de Londres, entre o forte rumor da
vida livre - ouvia no quarto dos estudos a
voz dormente do reverendo, perguntando
como do fundo de uma treva:
-
Quantos são os inimigos da alma?
E
o pequeno, mais dormente, lá ia
murmurando:
-
Três. Mundo, Diabo e Carne...
Pobre
Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali
o reverendo Vasques, obeso e sórdido,
arrotando do fundo da sua poltrona, com o
lenço do rapé sobre o joelho...
Às
vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto,
interrompia a doutrina, agarrava a mão do
Pedrinho - para o levar, correr com ele
sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na
grande luz do rio o pesadume crasso da
cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em
terror, a abafá-lo numa grande manta:
depois, lá fora, o menino acostumado ao
colo das criadas e aos recantos estofados,
tinha medo do vento e das árvores: e pouco
a pouco, num passo desconsolado, os dois
iam pisando em silêncio as folhas secas -
o filho todo acobardado das sombras do
bosque vivo, o pai vergando os ombros,
pensativo, triste daquela fraqueza do
filho...» (p. 18)
14
«Por esse tempo veio um grave desgosto à
casa: a tia Fanny morreu, de uma
pneumonia, nos frios de Março; e isto
enegreceu mais a melancolia de Maria
Eduarda, que a amava muito também - por
ser irlandesa e católica.
Para
a distrair, Afonso levou-a para a Itália,
para uma deliciosa villa ao pé de
Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o
pontual e generoso todas as manhãs,
banhando largamente os terraços, dourando
loureirais e mirtos. E depois, lá em
baixo, entre mármores, estava a coisa mais
preciosa e santa - o Papa!
Mas
a triste senhora continuava a choramingar.
O que realmente apetecia era Lisboa, as
suas novenas, os santos devotos do seu
bairro, as procissões passando num rumor
de pachorrenta penitência por tardes de
sol e de poeira...
Foi
necessário calmá-la, voltar a Benfica.»
(p. 19)
15
«[...] O padre Vasques, apoderando-se
daquela alma aterrada para quem Deus era
um amo feroz, tornara-se o grande homem da
casa. De resto Afonso encontrava em cada
momento pelos corredores outras figuras
canónicas, de capote e solidéu, em que
reconhecia antigos franciscanos, ou algum
magro capuchinho parasitando no bairro; a
casa tinha um bafio de sacristia; e dos
quartos da senhora vinha constantemente,
dolente e vago, um rumor de ladainha.
Todos
aqueles santos varões comiam, bebiam o seu
vinho do Porto na copa. As contas do
administrador apareciam sobrecarregadas
com mesadas piedosas que dava a senhora:
um frei Patrício surripiara-lhe duzentas
missas de cruzado por alma do senhor D.
José I...
Esta
carolice que o cercava ia lançando Afonso
num ateísmo rancoroso: quereria as igrejas
fechadas como os mosteiros, as imagens
escavacadas a machado, uma matança de
reverendos... Quando sentia na casa a voz
das rezas, fugia, ia para o fundo da
quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler
o seu Voltaire: ou então partia a
desabafar com o seu velho amigo, o coronel
Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz.
[...]
-
Esta educação faz atletas mas não faz
cristãos. Já o tenho dito...
-
Já o tem dito, abade, já! - exclamou
Afonso alegremente. - Diz-mo todas as
semanas... Quer você saber, Vilaça? O
nosso Custódio mata-me o bicho do ouvido
para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A
cartilha!...
Custódio
ficou um momento a olhar Afonso, com uma
face desconsolada e a caixa de rapé aberta
na mão; a irreligião daquele velho
fidalgo, senhor de quase toda a freguesia,
era uma das suas dores.» (pp. 19/20,
66/67)
16
«Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa
do whist, contava que vira Maria
Monforte e Pedro passeando a cavalo,
«ambos muito bem e muito distingués»,
Afonso,
depois de um silêncio, disse com ar
enfastiado:
-
Enfim, todos os rapazes têm as suas
amantes... Os costumes são assim, a vida é
assim, e seria absurdo querer reprimir
tais coisas. Mas essa mulher com um pai
desses, mesmo para amante acho má.
O
Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e
ajeitando os óculos de oiro exclamou com
espanto:
-
Amante! Mas a rapariga é solteira, meu
senhor, é uma menina honesta!...
Afonso
da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos
começaram a tremer-lhe; e voltando-se para
o administrador, numa voz que tremia um
pouco também:
-
O Vilaça decerto não supõe que meu filho
queira casar com essa criatura...
[...]
-
Meu pai - disse, esforçando-se por ser
claro e decidido - venho pedir-lhe licença
para casar com uma senhora que se chama
Maria Monforte.
Afonso
pousou o livro aberto sobre os joelhos, e
numa voz grave e lenta:
-
Não me tinhas falado disso... Creio que é
a filha de um assassino, de um negreiro, a
quem chamam também a «negreira»...
-
Meu pai!...
Afonso
ergueu-se diante dele, rígido e inexorável
como a encarnação mesma da honra
doméstica.
-
Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar
de vergonha.» (pp. 27/28, 30)
17
«Antes de partir, porém, escreveu ao pai.
Fora
um conselho, quase uma exigência de Maria.
[...]
Com
efeito, apenas desembarcou, correu num
trem a Benfica. Dois dias antes o pai
partira para Santa Olávia: isto
pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o
acerbamente.
Fez-se
então entre o pai e o filho uma grande
separação.» (pp. 33/34)
18
«Uma sombria tarde de Dezembro, de grande
chuva, Afonso da Maia estava no seu
escritório lendo, quando a porta se abriu
violentamente, e, alçando os olhos do
livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo
enlameado, desalinhado,, e na sua face
lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um
olhar de loucura. O velho ergueu-se
aterrado. E Pedro sem uma palavra
atirou-se aos braços do pai, rompeu a
chorar perdidamente.
-
Pedro! Que sucedeu, filho?
[...]
-
Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei
esta manhã... A Maria tinha fugido de casa
com a pequena... Partiu com um homem, um
italiano... E aqui estou!
Afonso
da Maia ficou diante do filho, quedo,
mudo, como uma figura de pedra; e a sua
bela face, onde todo o sangue subira,
enchia-se, pouco a pouco, de uma grande
cólera. Viu, num relance, o escândalo, a
cidade galhofando, as compaixões, o seu
nome pela lama. E era aquele filho que,
desprezando a sua autoridade, ligando-se a
essa criaturaz, estragara o sangue da
raça, cobria agora a sua casa de vexame. E
ali estava, ali jazia sem um grito, sem um
furor, um arranque brutal de homem traído!
Vinha atirar-se para um sofá, chorando
miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu
a passear pela sala, rígido e áspero,
cerrando os lábios para que não lhe
escapassem palavras de ira e de injúria
que lhe enchiam o peito em tumulto... -
Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado,
aquele soluçar de funda dor; via tremer
aquele pobre corpo desgraçado que ele
outrora embalara nos braços... Parou junto
de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça
entre as mãos, e beijou-o na testa, uma
vez, outra vez, como se ele fosse ainda
criança, restituindo-lhe ali e para sempre
a sua ternura inteira.» (pp. 44/45)
19
«O velho correu, logo; e daí a pouco
aparecia, erguendo nos braços o pequeno,
na sua longa capa branca de franjas e a
sua touca de rendas. Era gordo, de olhos
muito negros, com uma adorável bochecha
fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria,
grulhando, agitando o seu guizo de prata.
A ama não passou da porta tristonha, com
os olhos no tapete e uma trouxazinha na
mão.
Afonso
sentou-se lentamente na sua poltrona, e
acomodou o neto no colo. Os olhos
enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura;
parecia esquecer a agonia do filho, a
vergonha doméstica; agora só havia ali
aquela facezinha tenra, que se lhe babava
nos braços...»
20
«[...] o próprio encanto de Santa Olávia,
o fresco cantar das águas vivas por
tanques e repuxos, vinha agora com a
cadência saudosa de um choro. E Vilaça foi
encontrar Afonso na Livraria, com as
janelas cerradas ao lindo sol de Inverno,
caído para uma poltrona, a face cavada sob
os cabelos crescidos e brancos, as mãos
magras e ociosas sobre os joelhos.
O
procurador veio dizer para Lisboa que o
velho não durava um ano.»
21
«Afonso era um pouco baixo, maciço, de
ombros quadrados e fortes: e com a sua
face larga de nariz aquilino, a pele
corada, quase vermelha, o cabelo branco
todo cortado à escovinha, e barba de neve
e longa - lembrava, como dizia Carlos, um
varão esforçado das idades heróicas, um D.
Duarte de Meneses ou um Afonso de
Albuquerque.» (p. 12)
22
«Mas o Teixeira, muito grave, muito sério,
desiludiu o senhor administrador. Mimos e
mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho
dele, que tinha sido educado com uma vara
de ferro! Se ele fosse a contar ao sr.
Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já
dormia num quarto só, sem lamparina; e
todas as manhãs zás, para dentro de uma
tina de água fria, às vezes a gear lá
fora... E outras barbaridades. Se não se
soubesse a grande paixão do avô pela
criança, havia de se dizer que a queria
morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira,
chegara a pensá-lo... Mas não, parece que
era sistema inglês! Deixava-o correr,
cair, trepar às árvores, molhar-se,
apanhar soalheiras, como um folho de
caseiro. E depois o rigor com as comidas!
E depois o rigor com as comidas! Só a
certas horas e de certas coisas... E às
vezes a criancinha, com os olhos abertos,
a aguar! Muita, muita dureza.
[...]
-
Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre
inglês, o que lhe ensinou? A remar! A
remar, sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem
contar o trapézio, e as habilidades de
palhaço;
[...]
Afonso
apoiava-o, gravemente. O Brown estava na
verdade. O latim era um luxo de erudito...
Nada mais absurdo que começar a ensinar a
uma criança numa língua morta quem foi
Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos,
e outros negócios de uma nação extinta,
deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que
é a chuva que o molha, como se faz o pão
que come, e todas as outras coisas do
universo em que vive...» (pp. 57/58, 63)
23
«- Vossa Excelência sabe que apareceu a
Monforte?
[...]
-
Em Lisboa?
-
Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar,
esse rapaz que escreve, e que era muito de
Arroios... Esteve até em casa dela.
E
ficaram calados. Havia anos que entre eles
se não pronunciara o nome de Maria
Monforte. Ao princípio, quando se retirara
para Santa Olávia, a preocupação ardente
de Afonso da Maia fora tirar-lhe a filha
que ela levara.» (p. 78)
24
«E o Dâmaso apelou logo para o marquês.
Não era verdade, como ele estivera dizendo
ao sr. Afonso da Maia, que iam ser as
melhores corridas que se tinham feito em
Lisboa?
[...]
-
Pois não é verdade, sr. Afonso da Maia?
O
velho sorriu, amaciando o seu gato.
-
O verdadeiro patriotismo, talvez - disse
ele - seria, em lugar de corridas, fazer
uma boa tourada.
Dâmaso
levou as mãos à cabeça. Uma tourada! Então
o sr. Afonso da Maia preferia toiros a
corridas de cavalos? O sr. Afonso da Maia,
um inglês!...
-
Um simples beirão, ser. Salcede, um
simples beirão, e que faz gosto nisso; se
habitei a Inglaterra é que o meu rei, que
era então, me pôs fora do meu país... Pois
é verdade, tenho esse fraco português,
prefiro toiros. Cada raça possui o seu sport
próprio, e o nosso é o toiro: o toiro com
muito sol, ar de dia santo, água fresca, e
foguetes... Mas sabe o sr. Salcede qual é
a importância da tourada? É ser uma grande
escola de força, de coragem e de
destreza... Em Portugal não instituição
que tenha uma importância igual à tourada
de curiosos. E acredite uma coisa: é que
se nesta triste geração moderna ainda há
em Lisboa uns rapazes com certo músculo, a
espinha direita, e capazes de dar um bom
soco, deve-se isso ao toiro e à tourada de
curiosos...» (pp. 307/308)
25
«[...] Ele mesmo costumava dizer que era
simplesmente um egoísta: - mas nunca, como
agora na velhice, as generosidades do seu
coração tinham sido tão profundas e
largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe
por entre os dedos, esparsamente, numa
caridade enternecida. Cada vez amava mais
o que era pobre e o que é fraco. Em Santa
Olávia, as crianças corriam para ele, dos
portais, sentindo-o acariciador e
paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor
- e era dos que não pisam um formigueiro e
se compadecem da sede de uma planta.
[...]
Carlos,
rindo, arrastou-o [o marquês] pelo
corredor. E de repente, ao entrarem na
antecâmara, deram com Afonso falando a uma
mulher carregada de luto, que lhe beijava
a mão, meio de joelhos, sufocada de
lágrimas: e ao lado outra mulher, com os
olhos turvos de água também, embalava
dentro do xale uma criancinha que parecia
doente e gemia. Carlos parara embaraçado;
o marquês instintivamente levou a mão à
algibeira. Mas o velho, assim surpreendido
na sua caridade, foi logo empurrando as
duas mulheres para a escada: elas desciam,
encolhidas, abençoando-o, num murmúrio de
soluços; e ele, voltando-se para Carlos,
quase se desculpou numa voz que ainda
tremia:
-
Sempre estes peditórios... Caso bem triste
todavia... E o que é pior, é que por mais
que se dê nunca se dá bastante. Mundo
muito mal feito, marquês.» (pp. 12, 311)
26
«Afonso da Maia aprovou plenamente a
compra das colecções do Craft. «É um
valor», disse ele ao Vilaça, «e acabamos
de encher com boa arte Santa Olávia e o
Ramalhete.»» (p. 415)
27
«- [...] Que têm vocês feito?
-
Mil coisas! - acudiu Ega alegremente. -
Planos, ideias, títulos... Temos sobretudo
o projecto de uma revista, um aparelho de
educação superior, que vamos montar com
uma força de mil cavalos! ...
[...]
E Afonso escutava, encantado com aquelas
belas ambições e luta, querendo partilhar
da grande obra, como sócio capitalista...
Mas Ega entendia que o sr. Afonso da Maia
devia descer à arena, lançar também a
palavra do seu saber e da sua experiência.
Então o velho riu. O quê! compor prosa,
ele, que hesitava para traçar uma carta ao
feitor? De resto, o que teria a dizer ao
seu país, como fruto da sua experiência,
reduzia-se pobremente a três conselhos, em
três frases - aos políticos: «menos
liberalismo e mais carácter»; aos homens
de letras: «menos eloquência e mais
ideia»; aos cidadãos em geral: «menos
progresso e mais moral». (pp. 565/566)
28
«- Há uma coisa extraordinária, avô! O avô
talvez saiba... O avô deve saber alguma
coisa que nos tire desta aflição!... Aqui
está, em duas palavras. Eu conheço aí uma
senhora que chegou há tempos a Lisboa,
mora na Rua de S. Francisco. Agora, de
repente, descobre-se que é minha irmã
legítima!... Passou aí um homem que a
conhecia, que tinha uns papéis... Os
papéis aí estão. São cartas, uma
declaração de minha mãe... Enfim, uma
trapalhada, um montão de provas... Que
significa tudo isto? Essa minha irmã, a
que foi levada em pequena, não morreu?...
O avô deve saber!
Afonso
da Maia, que um tremor tomara, agarrou-se
um momento com força à bengala, caiu por
fim pesadamente numa poltrona, junto do
reposteiro. E ficou devorando o neto, o
Ega, com um olhar esgazeado e mudo.
[...]
O
velho levou muito tempo a procurar, a
tirar a luneta de entre o colete, com os
seus pobres dedos que tremiam; leu o papel
devagar, empalidecendo mais a cada linha,
respirando penosamente; ao findar deixou
cair sobre os joelhos as mãos, que ainda
agarravam o papel, ficou como esmagado e
sem força. As palavras por fim vieram-lhe
apagadas, morosas. Ele nada sabia... O que
a Monforte ali assegurava, ele não o podia
destruir... Essa senhora da Rua de S.
Francisco era talvez, na verdade, sua
neta... Não sabia mais...
[...]
-
Eu sabia dessa mulher!... Vive na Rua de
S. Francisco, passou todo o Verão nos
Olivais... É a amante dele!» (pp. 644/646)
29
«- O Carlos esteve lá?
Ega
balbuciou, atarantado, em mangas de
camisa. Não sabia... Estivera apenas um
momento nos Gouvarinhos... Era provável
que Carlos tivesse ido mais tarde com o
Taveira, para a ceia.
O
velho cerrara os olhos, como se
desfalecesse, estendendo a mão para se
apoiar. Ega correu para ele:
-
Não se aflija, sr. Afonso da Maia!
-
Que queres então que faça? Onde está ele?
Lá metido, com essa mulher... Escusas de
dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a
isso, mas quis acabar esta angústia... E
esteve lá ontem até de manhã, está lá a
dormir neste instante... E foi para este
horror que Deus me deixou viver até
agora!» (p. 663)
30
«Defronte do
Ramalhete os candeeiros ainda ardiam.
Abriu de leve porta.
Pé ante pé, subiu as escadas
ensurdecidas pelo veludo cor de
cereja. No patamar tacteava, procurava
a vela, quando, através do reposteiro
entreaberto, avistou uma claridade que
se movia no fundo do quarto. Nervoso,
recuou, parou no recanto. O clarão
chegava, crescendo; passos lentos,
pesados, pisavam surdamente o tapete;
a luz surgiu -
e com ela o avô em mangas e camisa,
lívido, mudo, grande, espectral.
Carlos não se moveu, sufocado; e os
dois olhos do velho, vermelhos,
esgazeados, cheios de horror, caíram
sobre ele, ficaram sobre ele,
varando-o até às profundidades da
alma, lendo lá o seu segredo. Depois,
sem uma palavra, com a cabeça branca a
tremer, Afonso atravessou o patamar,
onde a luz sobre o veludo espalhava um
tom de sangue -
e os seus passos perderam-se no
interior da casa, lentos, abafados,
cada vez mais sumidos, como se fossem
os derradeiros que devesse dar na
vida! » (pp. 667/668)
31 «O Sol
ia alto, um barulho passou, o Baptista
rompeu pelo quarto:
- Ó sr. D. Carlos, ó meu menino!
O avô achou-se mal no jardim, não dá
acordo!...
Carlos pulou do leito [...]
Arrebatadamente, Carlos
levantara-lhe a face, já rígida, cor de
cera, com os olhos cerrados, um fio de
sangue aos cantos da longa barba de neve.
Depois caiu de joelhos no chão húmido,
sacudia-lhe as mãos, murmurando: "Ó avô! ó
avô!" Correu ao tanque, borrifou-o de
água:
- Chamem alguém! Chamem alguém!
Outra vez lhe palpava o
coração... Mas estava morto. Estava morto,
já frio, aquele corpo que, mais velho que
o século, resistira tão formidavelmente,
como um grande roble, aos anos e aos
vendavais. Ali morrera solitariamente, já
o Sol ia alto, naquela tosca mesa de pedra
onde deixara pender a cabeça cansada.»
(pp. 668/669)
32
«Odiando tudo o que
era inglês, não consentira que seu filho,
o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de
Richmond. Debalde Afonso lhe provou que
era um colégio católico. Não queria:
aquele catolicismo sem romarias, sem
fogueiras pelo S. João, sem imagens do
Senhor dos Passos, sem frades nas ruas -
não lhe parecia a religião. A alma do seu
Pedrinho não abandonaria ela à heresia; -
e para o educar mandou vir de Lisboa o
padre Vasques, capelão do conde de Runa.
O Vasques ensinava-lhe as
declinações latinas, sobretudo a cartilha
[...]
-
Quantos são os inimigos da alma?
E
o pequeno, mais dormente, lá ia
murmurando:
-
Três. Mundo, Diabo e Carne...
Pobre
Pedrinho!» (pp.17/18)
33
«Às vezes Afonso,
indignado, vinha ao quarto, interrompia a
doutrina, agarrava a mão do Pedrinho -
para o levar, correr com ele sob as
árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande
luz do rio o pesadume crasso da cartilha.
Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a
abafá-lo numa grande manta: depois, lá
fora, o menino acostumado ao colo das
criadas e aos recantos estofados, tinha
medo do vento e das árvores: e pouco a
pouco, num passo desconsolado, os dois iam
pisando em silêncio as folhas secas - o
filho todo acobardado das sombras do
bosque vivo, o pai vergando os ombros,
pensativo, triste daquela fraqueza do
filho...» (p.18)
34
«O Pedrinho no entanto estava quase um
homem. Ficara pequenino e nervoso como
Maria Eduarda, tendo pouco da força dos
Maias;» (p. 20)
35
«a sua linda face oval de um trigueiro
cálido, dois olhos maravilhosos e
irresistíveis, prontos sempre a
humedecer-se, faziam-no assemelhar a um
belo árabe.» (p. 20)
36
«Desenvolvera-se lentamente, sem
curiosidades, indiferente a brinquedos, a
animais, a flores, a livros. Nenhum desejo
forte parecera jamais vibrar naquela alma
meio adormecida e passiva» (p. 20)
37
«Era em tudo um fraco; e esse abatimento
contínuo de todo o seu ser resolvia-se a
espaços em crises de melancolia negra, que
o traziam dias e dias mudo, murcho,
amarelo, com as olheiras fundas e já
velho.» (p. 20)
38
«O seu único sentimento vivo, intenso, até
aí, fora a paixão pela mãe.» (p. 20)
39
«O menino continuou em Benfica, dando os
seus lentos passeios a cavalo, de criado
de farda atrás, começando já a ir beber a
sua genebra aos botequins de Lisboa...
Depois foi despontando naquela organização
uma grande tendência amorosa: aos dezanove
anos teve o seu bastardozinho.» (p. 20)
40
«Quando a mãe morreu, numa agonia terrível
de devota debatendo-se dias nos pavores do
Inferno, Pedro teve na sua dor os
arrebatamentos de uma loucura. Fizera a
promessa histérica, se ela escapasse, de
dormir durante um ano sobre as lajes do
pátio: e levado o caixão, saídos os
padres, caiu numa angústia soturna,
obtusa, sem lágrimas, de que não queria
emergir, estirado de bruços sobre a cama
numa obstinação de penitente.» (p. 21)
41
«Esta dor exagerada e mórbida cessou por
fim; e sucedeu-lhe, quase sem transição,
um período de vida dissipada e turbulenta,
estroinice banal, em que Pedro, levado por
um romance torpe, procurava afogar em
lupanares e botequins as saudades da
mamã.» (p. 21)
42
«Nesses períodos tornava-se também devoto:
lia «Vida de Santos», visitava o
lausperene: eram desses bruscos
abatimentos de alma que outrora levavam os
fracos aos mosteiros.»
43
«E havia agora uma ideia que, a seu pesar,
às vezes o [Afonso] torturava: descobrira
a grande parecença de Pedro com um avô de
sua mulher, um Runa, de quem existia um
retrato em Benfica: este homem
extraordinário, com que na casa se metia
medo às crianças, enlouquecera - e
julgando-se Judas enforcara-se numa
figueira...» (p. 22)
44
«Mas um dia, excessos e crises findaram.
Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu,
vindo de repente numa troca de olhares
fatal e deslumbradora, uma dessas paixões
que assaltam uma existência, a assolam
como um furacão, arrancando a vontade, a
razão, os respeitos humanos e
empurrando-os de roldão aos abismos.» (p.
22)
45
«- Meu pai - disse, esforçando-se por ser
claro e decidido - venho pedir-lhe licença
para casar com uma senhora que se chama
Maria Monforte.
Afonso
pousou o livro aberto sobre os joelhos, e
numa voz grave e lenta:
-
Não me tinhas falado disso... Creio que é
a filha de um assassino, de um negreiro, a
quem chamam também a «negreira»...
-
Meu pai!...
[...]
Dois
dias depois Vilaça entrou em Benfica, com
as lágrimas nos olhos, contando que o
menino casara nessa madrugada - e segundo
lhe dissera o Sérgio, procurador do
Monforte, ia partir com a noiva para
Itália.» (p. 30)
46
«E quando ela apareceu grávida. ansiou por
a tirar daquele Paris batalhador e
fascinante, vir abrigá-la na pacata Lisboa
adormecida ao sol.
Antes
de partir, porém, escreveu ao pai.
Fora
um conselho, quase uma exigência de Maria.
[...]
E
foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao
papá.» (p. 33)
47
«Com efeito, apenas desembarcou, correu
num trem a Benfica. Dois dias antes o pai
partira para Santa Olávia: isto
pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o
acerbamente.
Fez-se
então entre o pai e o filho uma grande
separação. Quando lhe nasceu uma filha
Pedro não lho participou - dizendo
dramaticamente ao Vilaça « que já não
tinha pai!»» (p. 34)
48
«Uma sombria tarde de Dezembro, de grande
chuva, Afonso da Maia estava no seu
escritório lendo, quando a porta se abriu
violentamente, e, alçando os olhos do
livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo
enlameado, desalinhado, e na sua face
lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um
olhar de loucura. O velho ergueu-se
aterrado. E Pedro sem uma palavra
atirou-se aos braços do pai, rompeu a
chorar perdidamente.
-
Pedro! Que sucedeu, filho?
[...]
-
Sossega filho, que foi?
Pedro
então caiu para o canapé, como cai um
corpo morto; e levantando para o pai um
rosto devastado, envelhecido, disse,
palavra a palavra, numa voz surda:
-
Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei
esta manhã... A Maria tinha fugido de casa
com a pequena... Partiu com um homem, um
italiano... E aqui estou!» (pp. 44/45)
49
«A madrugada clareava, Afonso ia
adormecendo - quando de repente um tiro
atroou a casa. Precipitou-se do leito,
despido, e gritando: um criado acudia
também com uma lanterna. Do quarto de
Pedro, ainda entreaberto, vinha um cheiro
de pólvora; e aos pés da cama, caído de
bruços, numa poça de sangue que se
ensopava no tapete, Afonso encontrou seu
filho morto, apertando uma pistola na
mão.» (p. 52)
50
«- E o pequeno, onde está o pequeno? -
exclamou Afonso.
Pedro
pareceu recordar-se:
-
Está lá dentro com a ama, trouxe-o na
sege.
O
velho correu, logo; e daí a pouco
aparecia, erguendo nos braços o pequeno,
na sua longa capa branca de franjas e a
sua touca de rendas. Era gordo, de olhos
muito negros, com uma adorável bochecha
fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria,
grulhando, agitando o seu guizo de prata.»
(p. 46)
51
«- Está uma linda criança! Faz gosto! E
parece-se com o pai. Os mesmos olhos,
olhos dos Maias, o cabelo encaracolado...
Mas há-de ser muito mais homem!» (p. 54)
52
«- Olhe que Vossa Senhoria tem só dez
minutos... O menino não gosta de esperar.
[...]
-
Então o nosso Carlinhos não gosta de
esperar, hem? Já se sabe, é ele quem
governa... Mimos e mais mimos,
naturalmente...
Mas
o Teixeira, muito grave, desiludiu o
senhor administrador. Mimos e mais mimos,
dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que
tinha sido educado com uma vara de ferro!
Se ele fosse a contar ao sr. Vilaça! Não
tinha a criança cinco anos já dormia num
quarto só, sem lamparina; e todas as
manhãs, zás, para dentro de uma tina de
água fria, às vezes a gear lá fora... E
outras barbaridades. Se não se soubesse a
grande paixão do avô pela criança, havia
de se dizer que a queria morta. Deus lhe
perdoe, ele, Teixeira, chegara a
pensá-lo... Mas não, parece que era
sistema inglês! Deixava-o correr, cair,
treoar às árvores, molhar-se, apanhar
soalheiras, como um filho de caseiro. E
depois o rigor com as comidas! Só a certas
horas e de certas coisas... E às vezes a
criancinha, com os olhos abertos, a aguar!
Muita, muita dureza!
E
o Teixeira acrescentou:
-
Enfim era a vontade de Deus, saiu forte.
Mas que nós aprovássemos a educação que
tem levado, isso nunca aprovámos, nem eu,
nem a Gertrudes.
[...]
-
Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre
inglês, o que lhe ensinou? A remar! A
remar, sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem
contar o trapézio, e as habilidades de
palhaço; eu nisso nem gosto de falar...
Que eu sou o primeiro a dizê-lo: o Brown é
boa pessoa, calado, asseado, excelente
músico. Mas é o que eu tenho repetido à
Gertrudes: pode ser muito bom para inglês,
não é para ensinar um fidalgo português...
Não é.
[...]
-
Vilaça, Vilaça - advertiu o abade, de
garfo no ar e um sorriso de santa malícia
- não se deve falar em latim aqui ao nosso
nobre amigo... Não admite, acha que é
antigo... Ele, antigo é...
[...]
-
Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se
começar por lá... É a base; é a basezinha!
-
Não! latim mais tarde! - esclamou o Brown,
com um gesto possante. - Prrimeiro forrça!
Músculo...
E
repetiu, duas vezes, agitando os
formidáveis punhos:
-
Prrimeiro músculo, músculo!...
Afonso
apoiava-o gravemente. O Brown estava na
verdade. O latim era um luxo de erudito...
Nada mais absurdo que começar a ensinar a
uma criança numa língua morta quem foi
Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos,
e outros negócios de uma nação extinta,
deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que
é a chuva que o molha, como se faz o pão
que come, e todas as outras coisas do
universo em que vive...
-
Mas enfim os clássicos - arriscou
timidamente o abade.
-
Qual clássicos! O primeiro dever do homem
é viver.
E
para isso é necessário ser são, e ser
forte. Toda a educação sensata consiste
nisto: criar a saúde, a força e os
hábitos, desenvolver exclusivamente o
animal, armá-lo de uma grande
superioridade física. Tal qual como se não
tivesse alma. A alma vem depois... A alma
é outro luxo. é um luxo de gente
grande...» (pp. 57/58, 62/63)
53
«O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um
desgosto horroroso... Foi já há meses.
Havia uma procissão e o Eusebiozinho ia de
anjo... [...] Em primeiro lugar ia-o
matando porque embirra com anjos... Mas o
pior não foi isso. Imagine você o nosso
terror, quando nos aparece o Eusebiozinho
aos berros pela titi, todo desfrisado, sem
uma asa, com a outra a bater-lhe os
calcanhares dependurada de um barbante, a
coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e
os galões de ouro, os tules, as
lentejoulas, toda a vestimenta celeste em
frangalhos!... Enfim, um anjo depenado e
sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.» (p.
77)
54
«Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no
corredor pelo vovô, precipitou-se no
quarto, esguedelhado,, escarlate como uma
romã. - O Brown tinha achado uma
corujazinha pequena! Queria que o vovô
viesse ver, andara buscá-lo por toda a
casa... Era de morrer a rir... Muito
pequena, muito feia, toda pelada, e com
dois olhos de gente grande! E sabiam onde
havia o ninho...
-
Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é
necessário ir pô-la no ninho, por causa da
coruja velha que se pode afligir... O
Brown está-lhe a dar azeite. Ó Vilaça, vem
ver! Ó vovô, pelo amor de Deus! Tem uma
cara tão engraçada! Mas depressa, que a
coruja velha pode dar pela falta!...
E
impaciente com a lentidão risonha do vovô,
tanta indiferença pela inquietação da
coruja velha, abalou atirando com a porta.
-
Que bom coração! - exclamou o Vilaça
comovido. - A pensar nas saudades da
coruja... A mãe dele é que não tem
saudades! Sempre o disse, é uma fera!» (p.
82)
55
«Carlos ia formar-se em Medicina. [...]
A
«vocação» revelara-se bruscamente um dia
que ele descobriu no sótão, entre rumas de
velhos alfarrábios, um rolo manchado e
antiquado de estampas anatómicas; tinha
passado dias asa recortá-las, pregando
pelas paredes do quarto fígados, liaças de
intestinos, cabeças de perfil « com o
recheio à mostra».
[...]
Em
Coimbra, estudante do Liceu, Carlos
deixava os seus compêndios de lógica e
retórica, para se ocupar de anatomia...»
(pp. 87/88)
56
«E o que justamente seduzia Carlos na
medicina era essa vida «a sério», prática
e útil, as escadas de doentes galgadas à
pressa no fogo de uma vasta clínica, as
existências que se salvam com um golpe de
bisturi, as noites veladas à beira de um
leito, entre o terror de uma família,
dando grandes batalhas à morte. [...]
Matriculou-se
realmente com entusiasmo.» (p. 89)
57
«Matriculou-se realmente com entusiasmo.
Para esses longos anos de quieto estudo o
avô preparara-lhe uma linda casa em Celas,
isolada, com graças de cottage
inglês, ornada de persianas verdes, toda
fresca entre árvores. Um amigo de Carlos
(um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de
«Paços de Celas», por causa dos luxos
então raros na Academia, um tapete na
sala, poltronas de marroquim, panóplias de
armas, e um escudeiro de libré.» (p. 89)
58
«Ao princípio este esplendor tornou Carlos
venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos
democratas; quando se soube, porém, que o
dono destes confortos lia Proudhon,
Augusto Comte, Herbert Spencer, e
considerava também o país uma «choldra
ignóbil» - os mais rígidos revolucionários
começaram a vir aos Paços de Celas tão
familiarmente como ao quarto do Trovão, o
poeta boémio, o duro socialista, que tinha
apenas por mobília uma enxerga e uma
Bíblia.
[...]
Os
Paços de Celas, sob a sua aparência
preguiçosa e campestre, tornaram-se uma
fornalha de actividades» (pp. 89/90)
59
«Carlos passava as férias grandes em
Lisboa, às vezes em Paris ou Londres; mas
por Natais e Páscoas vinha sempre a Santa
Olávia, que o avô, mais só, se entretinha
a embelezar com amor.» (p. 91)
60
«Carlos escarnecia estes idílios futricas;
mas também ele terminou por se enredar num
episódio romântico com a mulher de um
empregado do Governo Civil, uma
lisboetazinha, que o seduziu pela graça de
um corpo de boneca e por uns lindos olhos
verdes. A ela o que a fanatizara fora o
luxo, o groom, a égua inglesa de
Carlos. Trocaram-se cartas; e ele viveu
semanas banhado na poesia áspera e
tumultuosa do primeiro amor adúltero.» (p.
93)
61
«Um dia, Carlos andava tomando o sol da
feira, quando o empregado do Governo Civil
passou junto dele com o filhinho pela mão.
Pela primeira vez via tão de perto o
marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado
e macilento. Mas o pequerrucho era
adorável, muito gordo, parecendo mais
roliço por aquele dia de Janeiro sob os
agasalhos de lã azul, tremelicando nas
pobres perninhas roxas de frio, e rindo na
clara luz - rindo todo ele, pelos olhos,
pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas
das faces. O pai amparava-o; e o encanto,
o cuidado com que o rapaz ia assim guiando
os passos do seu filho, impressionou
Carlos. Era no momento em que lia Michelet
- e enchia-lhe a alma a veneração
literária da santidade doméstica.
Sentiu-se canalha em andar ali de cima do
seu dog.cart, a preparar friamente
a vergonha, e as lágrimas daquele pobre
pai tão inofensivo no seu paletó coçado!
Nunca mais respondeu às cartas em que
Hermengarda lhe chamava «seu ideal».» (p.
93)
62
«Em Agosto, no acto da formatura de
Carlos, houve uma alegre festa em Celas.
[...]
-
Aí temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab
Maia, começando a sua gloriosa carreira,
preparado para salvar a humanidade enferma
- ou acabar de a matar, segundo as
circunstâncias!
[...]
E
então Carlos Eduardo partira para a sua
longa viagem pela Europa.» (p. 95)
63
«Depois começaram a chegar, dirigidas ao
Ramalhete, caixas sucessivas de livros,
outras de instrumentos e aparelhos, toda
uma biblioteca e todo um laboratório [...]
(p. 96)
64
«Era decerto um formoso e magnífico moço,
alto, bem feito, de ombros largos, com uma
testa de mármore sob os anéis dos cabelos
pretos, e os olhos dos Maias, aqueles
irresistíveis olhos do pai, de um negro
líquido, ternos como os dele e mais
graves. Trazia a barba toda, muito fina,
castanho-escura, rente na face, aguçada no
queixo - o que lhe dava, com o bonito
bigode arqueado aos cantos da boca, uma
fisionomia de belo cavaleiro da
Renascença.» (p. 96)
65
« - E onde vais tu acomodar este museu?
Carlos
pensara em arranjar um vasto laboratório
ali perto no bairro, com fornos para
trabalhos químicos, uma sala disposta para
estudos anatómicos e fisiológicos, a sua
biblioteca, os seus aparelhos, uma
concentração metódica de todos os
instrumentos de estudo...
[...]
Carlos
trazia realmente resoluções sinceras de
trabalho [...] desejava ser útil. Mas as
suas flutuações flutuavam, intensas e
vagas [...]» (pp. 97/98)
66
«- E o consultório, meu senhor, não é
aqui, nem acolá; é no Rossio, ali em pleno
Rossio!
[...]
Carlos
mobilou-o com luxo. Numa antecâmara,
guarnecida de banquetas de marroquim,
devia estacionar, à francesa, um criado de
libré. A sala de espera dos doentes
alegrava com o seu papel verde de ramagens
prateadas, as plantas em vasos de Ruão,
quadros de muita cor, e ricas poltronas
cercando a jardineira coberta de colecções
de «Charivari», de vistas estereoscópicas,
de álbuns de actrizes seminuas, para tirar
inteiramente o ar triste de consultório,
até um piano mostrava o seu teclado
branco.
[...]
O
seu gabinete, no consultório, dormia numa
paz tépida entre espessos veludos escuros,
na penumbra que faziam os estores de seda
verde corridos. Na sala, porém, as três
janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo
ali parecia festivo; as poltronas em torno
da jardineira estendiam os seus braços,
amáveis e convidativos; o teclado branco
do piano ria e esperava, tendo abertas por
cima as »Canções» de Gounot; mas não
aparecia jamais um doente. E carlos -
exactamente como o criado que, na
ociosidade da antecâmara, dormitava sob o
«Diário de Notícias», acaçapado na
banqueta - acendia um cogarro «Laferme»,
tomava uma revista, e estendia-se no divã.
A prosa, porém, dos artigos estava como
embebida do tédio moroso do gabinete: bem
depressa bocejava, deixava cair o volume.»
(pp. 98/99, 102/103)
67
«Ocupava-se então mais do laboratório, que
decidira instalar no armazém às
Necessidades. Todas as manhãs, antes de
almoço, ia visitar as obras. Entrava-se
por um grande pátio, onde uma bela sombra
cobria um poço, e uma trepadeira se
mirrava nos ganchos de ferro que a
prendiam ao muro. Carlos já decidira
transformar aquele espaço em fresco
jardinete inglês; e a aporta do casarão
encantava-o, ogival e nobre, resto de
fachada de ermida, fazendo um acesso
venerável para o seu santuário de ciência.
[...]
O
laboratório de Carlos estava pronto - e
muito convidativo, com o seu soalho novo,
fornos de tijolo fresco, uma vasta mesa de
mármore, um amplo divã de crina para o
repouso depois das grandes descobertas, e
em redor, por sobre as peanhas e
prateleiras, um rico brilho de metais e
cristais; mas as semanas passavam, e todo
esse belo material de experimentação, sob
a luz branca da clarabóia, jazia virgem e
ocioso. Só pela manhã um servente ia
ganhar o seu tostão diário, dando lá uma
volta preguiçosa com um espanador na mão.
Carlos
realmente não tinha tempo de se ocupar do
laboratório [...]» (pp.
99/100, 128)
68
«Caramba! - exclamava Ega [...] - Caramba!
Tu vens esplêndido desses Londres, dessas
civilizações superiores. Estás com um ar
Renascença, um ar Valois... Não há nada
como a barba toda!» (p. 104)
69
«Era a primeira doente grave de Carlos,
uma rapariga de origem alsaciana, casada
com o Marcelino, padeiro, muito conhecida
no bairro pelos seus belos cabelos, loiros
e penteados sempre em tranças soltas.
Tinha estado à morte com uma pneumonia; e
apesar de melhor, como a padaria ficava
defronte, Carlos ainda às vezes à noite
atravessava a rua para a ir ver,
tranquilizar o Marcelino, que, defronte do
leito e de gabão pelos ombros, sufocava
soluços de amante, escrevinhando no livro
de contas.» (p. 114)
70
«Começava a ser conhecido como médico.
Tinha visitas no consultório -
ordinariamente bacharéis, seus
contemporâneos, que sabendo-o rico o
consideravam gratuito, e lá entravam
murchos e com má cara, a contar a velha e
mal disfarçada história de ternuras
funestas. Salvara de um garrotilho a filha
de um brasileiro, ao Aterro - e ganhara aí
a sua primeira libra, a primeira que pelo
seu trabalho ganhava um homem da sua
família. [...] carlos já falava a sério da
sua carreira. Escrevera, com laboriosos
requintes de estilista, dois artigos para
a «Gazeta Médica», e pensava em fazer um
livro de ideias gerais que se devia chamar
«Medicina Antiga e Moderna». De resto
ocupava-se sempre dos seus cavalos, do seu
luxo, do seu bricabraque. [...]
atraía-o singularmente a antiga ideia do
Ega, a criação de uma revista, que
dirigisse o gosto, pesasse na política,
regulasse a sociedade, fosse a força
pensante de Lisboa...» (p. 129)
71
«Carlos, no entanto, fumando
preguiçosamente, continuava a falar na
Gouvarinho e nessa brusca saciedade que o
invadira, mal trocara com ela três
palavras numa sala. E não era a primeira
vez que tinha desses falsos arranques de
desejo, vindo quase com as formas de amor,
ameaçando absorver, pelo menos por algum
tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em
tédio, em «seca».»
(p. 151)
[...]
«Insensivelmente,
irresistivelmente, Carlos achou-se com os
lábios nos lábios dela. [...]
Daí
a um momento estavam ambos de pé: Carlos,
junto do busto, coçando a barba, com o ar
embaraçado, e já vagamente arrependido
[...] (p. 297)
[...]
«Mas
Carlos vinha de lá enervado, amolecido,
sentindo já na alma os primeiros bocejos
da saciedade. [...] ele ia pensando como
se poderia desembaraçar da sua tenacidade,
do seu ardor, do seu peso... É que a
condessa ia-se tornando absurda com aquela
determinação ansiosa e audaz de invadir
toda a sua vida, tomar nela o lugar mais
largo e mais profundo - como se o primeiro
beijo trocado tivesse unido não só os
lábios de ambos um momento, mas os seus
destinos também e para sempre.» (p. 301/302)
[...]
«A
Gouvarinho, num tom amargo, queixava-se
[em carta] que, já por duas vezes, Carlos
faltara ao rendez-vous em casa da
titi, sem lhe ter sequer escrito uma
palavra; ela vira nisto uma ofensa, uma
brutalidade; e vinha agora intimá-lo, «em
nome de todos os sacrifícios que por ele
fizera», a que aparecesse na Rua de S.
Marçal, domingo ao meio-dia, para terem
uma explicação definitiva antes de ela
partir para Sintra.
-
Excelente ocasião de acabar! - exclamou
Ega [...]
-
É o que vou fazer - disse Carlos,
começando a calçar as luvas. - Jesus! Que
mulher maçadora!» (p. 421)
[...]
«É
um cocheiro de praça - murmurou Baptista.
- Diz que está ali uma senhora dentro de
uma carruagem que lhe quer falar.
-
Que senhora?
[...]
Que
alívio! Era a Gouvarinho! Então, na sua
indignação, Carlos foi brutal.
-
Que diabo de tolice é esta? Que quer?» (p.
441)
[...]
«Teve
então horror à Gouvarinho; brutalmente,
sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.
-
Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas
relações estão acabadas, não temos mais
nada que nos dizer!
[...]
Pois
bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para
a brasileira! [...]
Ele
voltou-se, com os punhos fechados, como
para a espancar; e na tipóia escura, onde
já havia um vago cheiro de verbena, os
olhos de ambos, sem se verem, dardejavam o
ódio que os enchia... Carlos bateu
raivosamente no vidro.
[...]
O
calhambeque parou. Carlos pulou para fora,
fechou de estalo a portinhola; e sem uma
palavra, sem erguer o chapéu, virou
costas, abalou a grandes passadas para o
Ramalhete, trémulo ainda, cheio de ideias
de rancor, sob a paz da noite estrelada.»
(p. 446)
72
«Ega, horrorizado, apertava as mãos na
cabeça - quando do outro lado Carlos
declarou que o mais intolerável no realismo eram os
seus grandes ares científicos, a sua
pretensiosa estética deduzida de uma
filosofia alheia, e a invocação de Claude
Bernard, do experimentalismo, do
positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a
propósito de uma lavadeira que dorme com
um carpinteiro!» (p. 164)
73
«Era realmente sincero. Desde que Carlos
habitava Lisboa, tivera ali, naquele moço
gordo e bochechudo, sem o saber, uma
adoração muda e profunda; o próprio verniz
dos seus sapatos, a cor das suas luvas
eram para o Dâmaso motivo de veneração, e
tão importantes como princípios.
Considerava Carlos um tipo supremo de
chique, do seu querido chique, um Brummel,
um D' Orsay, um Morny - uma «destas coisas
que só se vêem lá fora», como ele dizia
arregalando os olhos.» (p. 177)
74
«Carlos saía pouco de casa. Trabalhava no
seu livro. Aquela revoada de clientela que
lhe dera esperanças de uma carreira cheia,
activa, tinha passado miseravelmente, sem
se fixar; restavam-lhe três doentes no
bairro; e sentia agora que as suas
carruagens, os cavalos, o Ramalhete, os
hábitos de luxo, o condenavam
irremediavelmente ao diletantismo. Já o
fino dr. Teodósio lhe dissera um dia,
francamente: «Você é muito elegante para
médico! As suas doentes, fatalmente,
fazem-lhe olho! Quem é o burguês que lhe
vai confiar a esposa dentro de uma
alcova?... Você aterra o pater-famílias!»
O laboratório mesmo prejudicara-o. Os
colegas diziam que o Maia, rico,
inteligente, ávido de inovações, de
modernismos, fazia sobre os doentes
experiências fatais. Tinha-se troçado
muito a sua ideia, apresentada na «Gazeta
Médica», a prevenção das epidemias pela
inoculação dos vírus. Consideravam-no um
fantasista.» (p. 187)
75
«Então em volta de Carlos foi uma
desconsolação, um longo murmúrio de
lassidão. Todos perdiam; ele apanhava a poule,
ganhava as apostas, empolgava tudo. Que
sorte! Que chance! [...]
-
Ah, monsieur - exclamou a vasta ministra
da Baviera, furiosa - mefiez-vous... Vous
connaissez de proverbe: heureux au jeu...»
(p. 336)
76
«Ora na Europa o homem requintado já não
ri - sorri regeladamente, lividamente. Só
nós aqui, neste canto do mundo bárbaro,
conservamos ainda esse dom supremo, essa
coisa bendita e consoladora - a barrigada
de riso!...
-
Que diabo estás tu a olhar?
Era
o consultório, o antigo consultório de
Carlos - onde agora, pela tabuleta,
parecia existir um pequeno atelier
de modista. Então bruscamente os dois
amigos recaíram nas recordações do
passado. Que estúpidas horas Carlos ali
arrastara, com a «Revista dos Dois
Mundos», na espera vã dos doentes, cheio
ainda de fé nas alegrias do trabalho!...
[...]
-
Em que tudo ficou!
-
Em que tudo ficou! Mas rimos bastante!
Lembras-te daquela noite em que o pobre
marquês queria levar ao consultório a
Paca, para utilizar enfim o divã, móvel de
serralho?...» (p. 700)
77
«Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
-
Falhámos a vida, menino!
[...]
-
E que somos nós? - exclamou Ega. - Que
temos nós sido desde o colégio, desde o
exame de latim? Românticos: isto é,
indivíduos inferiores que se governam na
vida pelo sentimento, e não pela razão...
Mas
Carlos queria realmente saber se, no
fundo, eram mais felizes esses que se
dirigiam só pela razão, não se desviando
nunca dela, torturando-se para se manter
na sua linha inflexível, secos, hirtos,
lógicos, sem emoção até ao fim...
-
Creio que não - disse o Ega.» (pp.
713/714)
78
«Riram ambos. Depois Carlos, outra vez
sério, deu a sua teoria da vida, a teoria
definitiva que ele deduzira da experiência
e que agora o governava. Era o fatalismo
muçulmano. Nada desejar e nada recear...
Não se abandonar a uma esperança - nem a
um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem
e o que foge, com a tranquilidade com que
se acolhem as naturais mudanças de dias
agrestes e de dias suaves. E, nesta
placidez, deixar esse pedaço de matéria
organizada que se chama o Eu ir-se
deteriorando e decompondo até reentrar e
se perder no infinito Universo...
Sobretudo não ter apetites. E, mais que
tudo, não ter contrariedades.»
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