-
Carlos vê a
mulher do Hotel Central1 - consequentemente
«interessa-se» por Dâmaso, interroga-o2;
-
Carlos
sonha com ela3;
-
Carlos
interessa-se por Castro Gomes4;
-
Nova
«aparição»5;
-
Visão
rápida no Aterro6;
-
Taveira
fala dos Castro Gomes - Carlos
interroga-o7;
-
Carlos
decide ir a Sintra - procura em vão8;
-
Por
intermédio de Dâmaso, vai ver Rosa -
primeiro contacto com o ambiente em
que «ela» vive9;
-
Carlos
insiste com Dâmaso na obtenção de
informações10;
-
Nova
visão rápida no Aterro11;
-
Dâmaso
fala dos Castro Gomes12;
-
Carlos
faz projectos sobre o possível
encontro nas corridas13;
-
Carlos
e Maria Eduarda encontram-se
fugazmente, perto do Aterro14;
-
Carlos
elabora o plano da visita aos Olivais15;
-
Carlos
descobre que «ela» se dirige a casa de
Cruges16;
-
Carlos
espera em vão nas corridas - procura e
encontra Dâmaso, descobre a morada
«dela»17;
-
Carlos
passeia na Rua de S. Francisco18;
-
Carlos
recebe o bilhete de Maria Eduarda19;
-
Carlos
vai à Rua de S. Francisco20;
-
Carlos
encontra-se com Maria Eduarda -
reflecte sobre o encontro21;
-
Carlos
percorre a Rua de S. Francisco22;
-
Carlos
inicia a série de visitas23;
-
Carlos
encontra-se com Dâmaso, em casa de
Maria Eduarda - fornece explicações a
Dâmaso24;
-
Ega
interroga Carlos25;
-
A
condessa de Gouvarinho refere-se "à
brasileira"26;
-
Carlos
reflecte acerca da «tagarelice de
Dâmaso» - dá explicações à condessa27;
-
Carlos
visita Maria Eduarda e fala-lhe do
seu amor - correspondência de Maria
Eduarda28;
-
Carlos
revela o plano da ida para os Olivais29;
-
Carlos
conta tudo a Ega30;
-
Carlos
prepara a ida aos Olivais31;
-
Carlos
passeia na Rua de S. Francisco32;
-
Visita
aos Olivais - iniciam-se as relações
amorosas entre Carlos e Maria
Eduarda33;
-
Carlos
pensa em Maria Eduarda34;
-
A
condessa de Gouvarinho refere-se «à
brasileira»35;
-
Taveira
refere a Carlos as ameaças de Dâmaso36;
-
Carlos
faz projectos em relação a Maria
Eduarda - preocupa-se com o avô37;
-
Carlos
e Maria Eduarda encontram-se
diariamente na Toca38;
-
Maria
Eduarda visita o Ramalhete39;
-
Carlos
faz planos40;
-
Castro
Gomes visita Carlos - reacções41;
-
Carlos
vai aos Olivais42;
-
Carlos
encontra-se com Maria Eduarda - nova
fase na vida de ambos (a hipótese de
casamento)43;
-
Maria
Eduarda dá explicações sobre a vida
passada44;
-
Carlos
fala a Ega45;
-
Ega
encontra-se com Maria Eduarda46;
-
Cruges
visita a «Toca»47;
-
O
marquês é apresentado a Maria Eduarda48;
-
Inicia-se
a série de reuniões de amigos na
«Toca»49;
-
Carlos
dá lições a Rosa50;
-
Surge
a questão do artigo na «Corneta do
Diabo»51;
-
Carlos,
pela primeira vez, questiona o
casamento com Maria52;
(a)
-
Carlos
e Maria Eduarda regressam a Lisboa53;
-
Carlos,
Maria Eduarda e Ega conversam sobre o
sarau54;
-
Guimarães
entrega a Ega o cofre de Maria
Monforte55;
-
Carlos
conhece a verdade - revolta-se56;
-
Carlos
vai à Rua de S. Francisco57;
-
Carlos
tem relações com Maria Eduarda -
o incesto58;
-
Carlos
tem medo - hipótese do suicídio59;
-
Morre
Afonso da Maia
- Carlos reconhece e aceita «o
castigo»60;
-
Carlos
decide
afastar-se61;
-
Maria
Eduarda, por intermédio de Ega,
conhece a verdade62;
-
Maria
Eduarda
parte63;
-
Carlos
refere a Ega a notícia do casamento de
Maria Eduarda64;
-
Carlos
recorda «a semana terrível»65.
-
Obs.:
As
frases ou expressões a negrito
correspondem, de acordo com os
autores, aos momentos dinâmicos da
narrativa.
-
(a)
Sequência encaixada pelo autor desta
página por a considerar relevante.
Gandra, Maria António
/ Oliveira, Luís Amaro de, Caderno Para
Uma Direcção de Leitura de OS MAIAS,
Porto Editora, Ldª, Porto, 1987
topo
Extractos
da
obra
1
«Entravam então no peristilo do Hotel Central - e
nesse momento um coupé da Companhia,
chegando a largo trote do lado da Rua do Arsenal,
veio estacar à porta.
Um esplêndido preto, já
grisalho, de casaca e calção, correu logo à
portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de
barba muito negra, passou-lhe para os braços uma
deliciosa cadelinha escocesa, de pêlos
esguedelhados, finos como seda e cor de prata;
depois apeando-se, indolente e poseur,
ofereceu a mão a uma senhora alta, loira, com um
meio véu muito apertado e muito escuro que
realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea.
Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante
deles, com um passo soberano de deusa,
maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si
como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro,
e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de
veludo branco de Génova, e um momento sobre as
lajes do peristilo brilhou o verniz das suas
botinas.» (pp. 156-157);
2
«O sr. Dâmaso Salcede, que não despregava os olhos
de Carlos, acudiu logo:
- Bem sei! Os Castro
Gomes... Conheço-os muito... Vim com eles de
Bordéus... Uma gente muito chique que vive em
Paris.
Carlos voltou-se,
reparou mais nele, perguntou-lhe, afável e
interessando-se:
- O sr. Salcede chegou
agora de Bordéus?» (pp. 157-158);
3
«Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar
acabara; e ele continuava na chaise-longue,
como amolecido nestas recordações, e cedendo já,
num meio adormecimento, à fadiga do longo
jantar... E então, pouco a pouco, diante das suas
pálpebras cerradas, uma visão surgiu, tomou cor,
encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde
morria numa paz elísia. O peristilo do Hotel
Central alargava-se, claro ainda. [...]
Eram três horas quando
se deitou. E apenas adormecera na escuridão dos
cortinados de seda, outra vez um belo dia de
Inverno morria sem uma aragem, banhado de
cor-de-rosa: o banal peristilo do hotel
alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro
preto voltava, com a cadelinha nos braços; uma
mulher passava, com um casaco de veludo branco de
Génova, mais alta que uma criatura humana,
caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno
que remonta ao Olimpo [...]» (pp. 184-185);
4
«- Outro debute? - perguntou Carlos.
- Não, é a besta do
Castro Gomes!
A "Gazeta Ilustrada"
anunciava que "o sr. Castro Gomes, o cavalheiro
brasileiro que no Porto fora vítima da sua
dedicação por ocasião da desgraça ocorrida na
Praça Nova, e de que o nosso correspondente J. T.
nos deu uma descrição tão opulenta de colorido
realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado
no Hotel Central. Os nossos parabéns ao arrojado gentleman".
- Ora está Sua
Excelência restabelecida! - exclamou Dâmaso,
atirando para o lado o jornal. - Pois deixa estar
que, agora, é a ocasião de lhe dizer na cara o que
penso... Aquele Pulha!
- Tu exageras - murmurou
Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e
relia a notícia.» (pp. 193-194);
5
«Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do
Aterro [actual Av. 24 de
Julho] aproximava-se,
caminhando depressa, uma senhora - que ele
reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de
uma deusa pisando a Terra [...]» (p.
202);
6
«Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera
alguns passos entre a s árvores, viu-a logo. Mas
não vinha só; ao seu lado o marido, esticado,
[...] Ao passar, deu um olhar surpreendido a
Carlos - como descobrindo enfim entre os bárbaros
um ser de linha civilizada, e disse-lhe algumas
palavras baixo, a ela.» (p. 204);
7
«Taveira vira-o na véspera, num grande landau
da Companhia, com uma esplêndida mulher, muito
elegante e que parecia estrangeira...
- Ora essa! - gritou
Carlos. - E com um cadelinha escocesa?
- Exactamente, uma
cadelinha escocesa, uma griffon cor de
prata... Quem são?
- E um rapaz magro, de
barba muito preta, com um ar inglesado?
- Justamente... Muito
correcto, um ar sport... Que gente é?» (p.
212);
8
«- Iam pelo Chiado abaixo; anteontem, às duas
horas... Estou convencido que iam para Sintra.
[...] (p. 214)
Carlos ficou ainda um
momento olhando o jogo, com uma cigarette
apagada nos dedos, o mesmo ar distraído: de
repente, pareceu tomar uma decisão, atravessou o
corredor, entrou na sala de música. Steinbroken
fora ao escritório ver Afonso da Maia, e a partida
de whist; e Cruges só, entre duas velas do
piano, com os olhos errantes pelo tecto,
improvisava para si, melancolicamente.
- Dize cá, Cruges -
perguntou-lhe Carlos - queres vir amanhã a Sintra?
[...] (p. 216)
Correu à Lawrence por um
caminho diferente, ávido de uma certeza: - e aí, o
criado que lhe apareceu disse-lhe que o sr.
Salcede e os senhores Castro Gomes tinham partido
na véspera para Mafra...»
(p. 243);
9
«- Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que
venhas daí, que venhas ver um doente... Eu te
explicarei... É aquela gente brasileira. Mas, pelo
amor de Deus, vem depressa, menino!
Carlos erguera-se,
pálido:
- É ela?
- Não é a pequena,
esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos,
veste-te, que a responsabilidade é minha!
- É um bebé, não é?
- Qual bebé!... É uma
pequena crescida, de seis anos... Anda daí! [...]
(p. 257)
Carlos ficou só, na
intimidade daquele gabinete de toilette,
que nessa manhã ainda não fora arrumado. [...]
Mas o olhar de Carlos
prendia-se sobretudo a um sofá onde ficara
estendido, com as duas mangas abertas, à maneira
de dois braços que se oferecem, o casaco branco de
veludo lavrado de Génova com que ele a vira, a
primeira vez, apear-se à porta do hotel.» (pp. 260-261);
10
«- Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal,
quero o romance... Tu disseste que tinhas
um romance. Não te largo. És meu. Venha o
romance. Eu sei que os tens sempre bons.
Quero o romance!
Pouco a pouco Dâmaso
sorria, as bochechas esbraseavam-se-lhe de
satisfação.
- Vai-se fazendo pela
vida - disse a estoirar de jactância.
- Vocês estiveram em
Sintra?...
- Estivemos, mas isso
não foi divertido... O romance é outro!
Desprendeu-se do braço
de Carlos, fez um sinal ao cocheiro para que os
seguisse, e regalou-se pelo Aterro fora de contar
o seu romance.
- A coisa é esta... O
marido daqui a dias vai para o Brasil, tem lá
negócios. E ela fica! Fica com as criadas e com a
pequena, à espera, dois ou três meses.» (pp. 265-266);
11
«Carlos ao outro dia não saiu de casa, esperando
um recado, faiscando de impaciência. Nenhum recado
veio. E, duas tardes depois, ao descer para o
Aterro - o primeiro encontro que teve, às Janelas
Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta,
com a mulher ao lado, e a cadelinha no colo.
Ela passou, sem o ver. E
logo ali Carlos decidiu findar aquela tortura,
pedir muito simplesmente ao Dâmaso que o
apresentasse ao Castro Gomes, antes de ele partir
para o Brasil...» (p.
291);
12
«Na tarde em que ele se vestia para lá ir, Dâmaso
apareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que
o enchia de desgosto e de ferro. O telhudo do
Castro Gomes mudara de ideia, já não ia ao Brasil!
Ficava ali, no Central, até meado do Verão! De
sorte que estava tudo estragado... [...]
Queixou-se então do
Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida
daquele homem era misteriosa... Que diabo estava
ele a fazer em Lisboa? Ali havia dificuldades de
dinheiro... E eles não se davam bem. Na véspera
houvera decerto questão. Quando ele entrara, ela
estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e ele,
nervoso, a passear pela sala, a retorcer a
barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada
quarto de hora... [...]
Queixou-se também dela.
[...] Enfim, gente muito esquisita.» (p. 292);
13
«No domingo, pois, daí a cinco dias, eram as
corridas... E "ela" estaria lá, ele ia conhecê-la,
enfim!» (p. 304);
14
«Adiante do Grémio, encostado ao passeio, estava
um coupé da Companhia, com um trintanário
de luvas brancas, esperando junto ao portal.
Carlos olhou, casualmente; e viu, debruçado à
portinhola, um rosto de criança [...] Reconheceu-a
logo. Era Rosa, era Rosicler [...] No fundo do coupé,
forrado de negro, destacava um perfil claro de
estátua, um tom ondeado de cabelo loiro. Carlos
tirou profundamente o chapéu, tão perturbado, que
os seus passos hesitaram. "Ela" abaixou a cabeça,
de leve; alguma coisa de luminoso, um confuso
rubor de emoção, espalhou-se-lhe no rosto.» (p. 305);
15
«Depois ia refazendo o plano da visita aos
Olivais, mais largo agora, mais brilhante. Porque
não iria ela também ver as curiosidades de Craft?
Que tarde encantadora, que festa, que lindo
idílio!» (pp. 306-307);
16
«- Como é que ela conhece o Cruges? - perguntou de
repente o marquês, com um tom desconfiado,
desembaraçando-se do cache-nez.
Carlos olhou para ele,
como mal acordado.
- Ela quem? Aquela
senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem
você razão!... Aquela era a casa do Cruges!... a
carruagem estava parada à porta do Cruges!...» (p. 307);
17
«A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não
estava também aquela que os olhos de Carlos
procuravam, inquietamente e sem esperança. [...]
Eram quase três horas, e
agora decerto "ela" já não vinha: e a condessa de
Gouvarinho não aparecia também... [...] (pp.
317-319);
Carlos descia da
tribuna, sem ter descoberto o Dâmaso - quando deu
justamente de frente com ele, dirigindo-se para a
escada, afogueado, flamante, na sua famosa
sobrecasaca branca.
- Onde diabo tens tu
estado, criatura? [...]
- Lá partiu [Castro
Gomes], e ela já está instalada. Até já antes de
ontem a fui visitar, mas não estava em casa...
Sabes do que tenho medo? É que ela, nestes
primeiros tempos, por causa da vizinhança, como
está só, não queira que eu lá vá muito... Que te
parece?
- Talvez... E onde mora
ela?
Em quatro palavras,
Dâmaso explicou a instalação de madame.
Era muito engraçado, morava no prédio do Cruges!»
(pp. 337-338);
18
«Daí a pouco, a trote largo no faetonte, Carlos
descia o Chiado, dava a volta para a Rua de S.
Francisco. Ia numa perturbação deliciosa e
singular, com aquela certeza de que ela estava só
na casa do Cruges...» (p. 341);
19
«No peristilo, o velho guarda-portão esperava,
descoberto, com uma carta na mão para Carlos.
[...]
Era uma letra inglesa de
mulher, num envelope largo, lacrado com um sinete
de armas. Carlos ali mesmo abriu-a, e, logo à
primeira linha, teve um movimento tão vivo, de tão
bela surpresa, iluminando-se-lhe tanto o rosto,
que Craft do lado perguntou sorrindo:
- Aventura? Herança?
Carlos vermelho, meteu a
carta no bolso, e murmurou:
- Um bilhete apenas, um
doente...
Era apenas um doente,
era apenas um bilhete, mas começava assim: "Madame
Castro Gomes apresenta os sus respeitos ao sr.
Carlos da Maia, e roga-lhe o obséquio..." Depois,
em duas breves palavras, pedia-lhe para ir ver na
manhã seguinte, o mais cedo possível, uma pessoa
de família, que se achava incomodada.» (p. 343);
20
«Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo,
veio a pé do Ramalhete até à Rua de S. Francisco,
a casa de Madame Gomes.»
(p. 345);
21
«Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.
Foi como uma inesperada
aparição - e vergou profundamente os ombros, menos
a saudá-la que a esconder a tumultuosa onda de
sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. [...]
Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se
embaraçadamente à borda do sofá de repes. E depois
de um instante de silêncio, que lhe pareceu
profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda
ergueu-se, uma voz rica e lenta, de um tom de ouro
que acariciava.
Através do seu enleio,
Carlos percebia vagamente que ela lhe agradecia os
cuidados que tivera com Rosa.»
(p. 348);
22
«Carlos, só, dentro do coupé, voltando à
Baixa, sentia uma alegria triunfante com aquela
partida da condessa, e a inesperada jornada do
Dâmaso. Era como uma dispersão providencial de
todos os importunos: e assim se fazia em torno da
Rua de S. Francisco uma solidão - com todos os
seus encantos, e todas as suas cumplicidades.
No Cais do Sodré deixou
a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial, veio
passar diante das janelas na Rua de S. Francisco.
[...] Duas vezes percorreu a Rua de S. Francisco;
e recolheu para casa, sob a noite estrelada,
devagar, ruminando a doçura daquele grande amor.»
(pp. 364-365);
23
«Então todos os dias, durante semanas, teve essa
hora deliciosa, esplêndida, perfeita, "a visita à
inglesa".» (p. 365);
24
«Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda,
acariciando "Niniche", que se lhe viera sentar nos
joelhos, quando Romão entreabriu discretamente o
reposteiro, e baixando a voz, com um ar
embaraçado, um ar de cumplicidade, murmurou:
- É o sr. Dâmaso!...
Ela olhou Romão,
surpreendida daqueles modos, e quase
escandalizada.
- Pois bem, mande
entrar!
E Dâmaso rompeu pela
sala, carregado de luto [...]
(p. 373);
Nessa noite, depois de
jantar, Carlos, só no seu quarto, fumava,
enterrado numa poltrona, relendo uma carta do Ega
recebida nessa manhã - quando apareceu o Dâmaso.
E, sem pousar mesmo o chapéu, logo da porta,
exclamou, com o mesmo espanto da manhã:
- Então dize-me cá! Como
diabo te vou eu encontrar hoje com a
brasileira?... Como a conheceste tu? Como foi
isso?
Sem mover a cabeça do
espaldar da poltrona, cruzando as mãos sobre os
joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora
cheio de bom humor, disse, com uma doce repreensão
paternal:
- Pois então tu vais
expor a uma senhora as tuas opiniões lúbricas
sobre as lavradeiras de Penafiel! [...]
Carlos, imperturbável,
cerrando os olhos como para se recordar, começou,
num tom lento e solene de recitativo.» (pp. 377-378);
25
«Na segunda-feira seguinte chuviscava quando
Carlos e Ega, no coupé fechado, partiram
para o jantar dos Gouvarinhos. [...]
De repente o Ega, que
fumava em silêncio, abotoado no seu paletó de
Verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho
e sério:
- Dize-me uma coisa, se
não é segredo sacrossanto... Quem é essa
brasileira com quem tu agora passas todas as tuas
manhãs?
Carlos ficou um instante
aturdido, com os olhos no Ega.
- Quem te falou nisso?
- Foi o Dâmaso que mo
disse. Isto é, o Dâmaso que mo rugiu...» (pp. 386-387);
26
«- Esperei meia hora; mas compreendi logo que
estaria entretido com a brasileira... (p. 389);
[...]
- Veja a senhora
condessa! Eu nem tive mesmo ideia de ir à Rússia.
Há assim uma infinidade de coisas que se dizem e
que não são exactas... E se se faz uma alusão
irónica a elas, ninguém compreende a alusão, nem a
ironia...
A condessa não respondeu
logo, dando com o olhar uma ordem muda ao
escudeiro. Depois, com um sorriso pálido:
- No fundo de tudo que
se diz há sempre um facto, ou um bocado de facto
que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim
basta-me...» (p. 391);
27
«- Que tolice foi essa da brasileira?...
Quem lhe disse isso?
Ela confessou-lhe logo
que fora o Dâmaso... O Dâmaso viera contar-lhe o
entusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs
inteiras que lá passava, todos os dias, à mesma
hora... Enfim, o Dâmaso fizera-lhe claramente
entrever uma liaison.
Carlos encolheu os
ombros. Como podia ela acreditar no Dâmaso? Devia
conhecer-lhe bem a tagarelice, a imbecilidade...»
(p. 395);
28
«Calou-se; mas os seus belos olhos ficaram um
instante pousados nos de Carlos, como esquecidos,
e deixando fugir irresistivelmente um pouco do
segredo que ela retinha no seu coração.
Ele murmurou:
- Por mais que eu
fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse
outra vez assim.
Uma onda de sangue
cobriu toda a face de Maria Eduarda.
- Não diga isso...
- E que necessidade há
que eu lho diga? Pois não sabe perfeitamente que a
adoro, que a adoro, que a adoro!
[...]
- Escute! Sabe bem o que
eu sinto por si, mas escute... Antes que seja
tarde, há uma coisa que lhe quero dizer...
[...] Só via que ela
tremia, só via que ela o amava... E, com a
gravidade forte de um acto de posse, tomou-lhe
lentamente as mãos, que ela lhe abandonou submissa
de repente, já sem força, e vencida. E
beijava-lhas ora uma, ora outra, e as palmas, e os
dedos, devagar, murmurando apenas:
- Meu amor! meu amor!
meu amor!
Maria Eduarda caíra
pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as
mãos, erguendo para ele os olhos cheios de paixão,
enevoados de lágrimas, balbuciou ainda,
debilmente, numa derradeira suplicação:
- Há uma coisa que eu
lhe queria dizer!...» (pp. 408-409);
29
«- Você quer-me vender tudo isto, Craft?
O outro respondeu, sem
pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:
- A la disposicion de
usted... [...]
Com que alegria, ao
deixar os Olivais, correu à Rua de S. Francisco, a
anunciar a Maria Eduarda que lhe arranjara enfim
definitivamente uma linda casa de campo! [...]
E assim se achava ela de
repente com uma vivenda pitoresca, mobilada num
belo estilo, deliciosamente saudável...» (pp.
412-413);
30
«E contou-lhe tudo miudamente, difusamente, desde
o primeiro encontro, à entrada do Hotel Central,
no dia do jantar ao Cohen.
Ega escutava-o, sem uma
palavra, enterrado no fundo do sofá. Supusera um
romancezinho, desses que nascem e morrem entre um
beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como
Carlos falava daquele grande amor, ele sentia-o
profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para
mal tornando-se daí por diante, para sempre, o seu
irreparável destino.» (p. 417);
31
«Mas eram quase onze horas, e ele tinha de ir aos
Olivais. No dia seguinte, sábado, dia belo entre
todos e solene para o seu coração, Maria Eduarda
devia enfim visitar a quinta do Craft [...] Nessa
manhã ele mandara aos Olivais dois criados para
arejar as salas, espanejar, encher tudo de flores.
Agora ia lá, como um devoto, ver se estava bem
enfeitado o sacrário da sua deusa...» (p. 422);
32
«Qual maçada! E até, para o escutarem melhor,
penetraram na Rua de S. Francisco, mais
silenciosa.» (p. 427);
33
«Ao outro dia, por uma radiante manhã de Julho,
Carlos saltava do coupé, com um molho de
chaves, diante do portão da quinta do Craft. Maria
Eduarda devia chegar às dez horas, só, na sua
carruagem da Companhia. [...]
Só o meter a chave
devagar e com uma inútil cautela na fechadura
daquela morada discreta, foi para Carlos um
prazer. (p. 429);
[...]
Um largo brilho de
relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram
na alcova. [...] Fora um trovão rolou lento e
surdo. Mas Maria já não o ouvia, caída nos braços
de Carlos. Nunca o desejara, nunca o adorara
tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender
mais longe que a carne, traspassá-lo, querer
sorver-lhe a vontade e a alma - e toda a noite,
entre esses brocados radiantes, com os cabelos
soltos, divina na sua nudez, ela lhe apareceu
realmente como a deusa que ele sempre imaginara,
que o arrebatava enfim, apertado ao seu seio
imortal, e com ele pairava numa celebração de
amor, muito alto, sobre nuvens de oiro...» (p.
459);
34
«E de repente, enquanto a condessa balbuciava,
como tonta, pendurada do seu pescoço - ele viu
surgir na alma, viva e resplandecente, a imagem de
Maria Eduarda, tranquila àquela hora na sua sala
de repes vermelho, fazendo serão, confiando nele,
pensando nele, relembrando as felicidades da
véspera, quando a Toca, cheia dos seus amores,
dormia, branca entre as árvores... Teve então
horror à Gouvarinho; brutalmente, sem piedade,
repeliu-a para o canto do coupé.» (pp.
445-446);
35
«- Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para
a brasileira! Eu conheço-a, é uma aventureira que
tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague
as modistas!...» (p. 446);
36
«[Taveira] Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo
falou-lhe logo no Dâmaso. [...] Terrível, aquele
Dâmaso! [...]
- Em todo o caso é uma
rês traiçoeira, e deves ter cautela com ele...»
(pp. 448-449);
37
«Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi
pensando em seu pai e nesse passado, assim
rememorado e estranhamente ressurgido pela
presença daquele patriarca, antigo alquilador, que
fizera com ele tantas troças! E isto trazia
conjuntamente outra ideia, que nestes últimos dias
já o atravessara, pertinaz e torturante,
dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um
sombrio arrepio de dor... Carlos pensava no avô.
Estava agora decidido
que Maria Eduarda e ele partiriam para Itália, nos
fins de Outubro. Castro Gomes, na sua última carta
do Brasil, seca e pretensiosa, falava "em aparecer
por Lisboa, com as elegâncias do frio, lá para
meado de Novembro"; - e era necessário antes disso
que estivessem já longe [...] Somente havia nisto
um espinho - o avô!» (p. 451);
38
«Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria
teve medo, entraram na alcova. [...] Fora um
trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já não o
ouvia, caída nos braços de Carlos. Nunca o
desejara, nunca o adorara tanto! Os seus beijos
ansiosos pareciam tender mais longe que a carne,
traspassá-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma
- e toda a noite, entre esses brocados radiantes,
com os cabelos soltos, divina na sua nudez, ela
lhe apareceu realmente como a deusa que ele sempre
imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seu
seio imortal, e com ele pairava numa celebração de
amor, muito alto, sobre nuvens de oiro...» (p.
459);
39
«Foi no sábado. Carlos veio muito cedo para o
Ramalhete: e o seu coração batia com a deliciosa
perturbação de um primeiro encontro, quando sentiu
parar a carruagem de Maria e os seus vestidos
escuros roçarem o veludo cor de cereja que forrava
a escada discreta dos seus quartos. O beijo que
trocaram, na antecâmara, teve a profunda doçura de
um primeiro beijo.» (p. 467);
40
«Era um truque simples. Consistia em partir ele só
para Madrid, no começo de uma certa "viagem de
estudo", para que já preparara o avô em Santa
Olávia. Maria ficava na Toca, durante um mês.
Depois tomava o paquete para Bordéus: e era aí que
Carlos se reunia com ela, a começarem essa
existência de felicidade e romance que as flores
de Itália deviam perfumar... Na Primavera ele
voltava a Lisboa, deixando Maria instalada no seu
ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avô
aquela ligação, a que o prendia a honra, e que o
forçaria agora a viver regularmente longos meses
numa outra terra que se tornara pátria do seu
coração.» (p. 476);
41
«Não era o correio. Era apenas um bilhete que o
Baptista trazia numa salva: e vinha tão perturbado
que anunciou "um sujeito, ali fora, na antecâmara,
numa carruagem à espera..."
Carlos olhou o bilhete,
empalideceu terrivelmente. [...]
Era Castro Gomes! (p. 477);
[...]
- Eu recebi no Rio de
Janeiro, antes de partir, este escrito anónimo...
[...] E desejo também afirmar-lhe que todo o
conteúdo dele me deixou perfeitamente
indiferente... Aqui o tem. [...]
Um homem que teve a
honra de apertar a mão de Vossa Excelência -
eu dispensava a honra... - que teve a honra de
apertar a mão a Vossa Excelência e de apreciar o
seu cavalheirismo, julga dever preveni-lo que
sua mulher é, à vista de toda a Lisboa, a amante
de um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo
da Maia, que vive numa casa às Janelas Verdes,
chamada o Ramalhete. [...]
- O meu caso é este, sr.
Carlos da Maia. Há pessoas em Lisboa que me não
conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que
existe algures, em Paris, no Brasil, ou no
Inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher
bonita, e que a mulher desse Castro Gomes tem em
Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo
por ser falso. [...] É por isso que aqui venho,
muito francamente, de gentleman para gentleman,
dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros,
que aquela senhora não é minha mulher. [...]
O que importa agora é
que eu lhe retiro solenemente o nome que lhe
emprestara; e ala fica apenas com o seu, que é
Madame Mac Gren. [...]
A pequerruchinha que ali
anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente
há três anos... Vinha dos braços de um qualquer,
passou para os meus... Posso pois dizer, sem
injúria, que era uma mulher que eu pagava.
Completara com esta
palavra a humilhação do outro. Estava
deliciosamente desforrado. [...]
[Carlos] Unira a sua
alma arrebatadamente a outra alma nobre e
perfeita, longe nas alturas, entre nuvens de oiro;
de repente uma voz passava, cheia de rr;
as duas almas rolavam, batiam num charco; e ele
achava-se tendo nos braços uma mulher que não
conhecia, e que se chamava Mac Gren.
Mac Gren! Era a Mac
Gren!
Ergueu-se, com os punhos
fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa...» (pp.
479-483);
42
«Daí a pouco rodava pela estrada dos Olivais. Já
se acendera o gás. E inquieto, no estreito
assento, acendendo nervosamente cigarettes
que não fumava, sofria já a perturbação daquele
encontro difícil e doloroso...» (pp. 491-492);
43
«Carlos entrou.
Lá estava, ainda de
capa, esperando de pé, pálida, com toda a alma
concentrada nos olhos que refulgiam entre as
lágrimas. E correu para ele, arrebatou-lhe as
mãos, sem poder falar, soluçando, tremendo toda.
Na sua terrível
perturbação, Carlos achava só esta palavra,
melancolicamente estúpida:
- Não sei porque chora,
não sei, não há razão para chorar...
Ela pôde enfim
balbuciar:
- Escuta-me, pelo amor
de Deus! não digas nada, deixa-me contar-te...
[...]
A culpa não fora dela!
não fora dela! Ele devia ter perguntado àquele
homem que sabia toda a sua vida... Fora sua mãe...
era horroroso dizê-lo, mas fora por causa dela que
conhecera e que fugira com o primeiro homem, o
outro, um irlandês... [...]
- Mas porque não me
disseste, porque não me disseste? Para que foi
essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo
modo! Para que mentiste tu? [...]
- Mas eu queria dizer-to
- murmurou muito baixo [...] Eu disse-te logo: "Há
uma coisa que te quero contar..." Tu nem me
deixaste acabar. [cf. p. 409 (excerto 28)]
Atirou-se para o chão,
como uma criatura vencida e finda, escondendo a
face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo
da sala, voltando bruscamente até junto dela,
tinha só a mesma recriminação, "a mentira, a
mentira", pertinaz e de cada dia...
Só os soluços dela lhe
respondiam. [...]
- Que queres tu? Tive
medo que o teu amor mudasse, que fosse de outro
modo... [...]
- Não, mentiste em tudo!
Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu
nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te
poderia acreditar... [...]
- E eu? - exclamou ela,
caminhando para ele, dominando-o, magnífica e com
um esplendor de verdade na face. - E eu? porque
hei-de eu acreditar nessa grande paixão que me
juravas? O que é que tu amavas então em mim? Dize
lá! Era a mulher de outro, o nome, o requinte do
adultério, as toilettes?... [...]
- Maria, queres casar
comigo?» (pp. 496-502);
44
«Nascera em Viena: mas pouco se recordava dos
tempos de criança, quase nada sabia do papá, a não
ser a sua grande nobreza e a sua grande beleza.
[...] Enfim a mamã metera-a num convento ao pé de
Tours [...]
A mamã ao princípio
vinha vê-la todos os meses [...]»
(pp. 506...);
45
«Daí a dias Carlos e Ega vinham numa vitória, pela
estrada dos Olivais, em caminho da Toca.
Toda essa manhã, no
Ramalhete, Carlos estivera enfim contando ao Ega o
impulso de paixão que o lançara de novo e para
sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na
confiança absoluta que o prendia ao Ega,
revelara-lhe mesmo miudamente a história dela,
dolorosa e justificadora.» (p.
515);
46
«Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o
primeiro encontro com Maria Eduarda. Incomodava-o
esse enleio, esse rubor que ela não poderia
ocultar - certa que, como confidente de Carlos,
ele conhecia a sua vida, as suas misérias, as suas
relações com Castro Gomes. Por isso hesitara em
vir à Toca. Mas também, não aparecer mais a Maria
Eduarda, seria marcar, com um relevo quase
ofensivo, o desejo caridoso de não molestar o seu
pudor... Por isso decidira "dar o mergulho de uma
vez". Quem, senão ele, deveria ser o mais
apressado em estender a mão à noiva de Carlos?...»
(p. 515);
47
«Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir...
E no entanto Maria e ele não poderiam isolar-se
ali todo um longo Inverno, sem o calor sociável de
alguns amigos em redor. Por isso uma manhã,
encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria
e outrora lhe dava notícias da "lady
inglesa", pediu-lhe para vir jantar à Toca no
domingo.
O maestro apareceu numa
tipóia, à tardinha, de laço branco e de casaca: e
os fatos claros de campo com que encontrou Carlos
e Ega, começaram logo a enchê-lo de mal-estar.
Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o
atarantava, o emudecia...» (p. 524);
48
«Nesse mesmo momento sentiram um trote de cavalo
na estrada - e apareceu o marquês.
Foi uma surpresa para
Carlos, que o não vira durante esse Verão. O
marquês parou logo, tirando profundamente, ao ver
Maria, o seu largo chapéu desabado.» (p. 525);
49
«Estas reuniões alegres foram ao princípio, como
dizia o Ega, dominicais: mas o Outono
arrefecia, bem depressa se despiriam as árvores da
Toca, e Carlos acumulou-as duas vezes por semana,
nos velhos dias feriados da Universidade, domingos
e quintas.» (p. 526);
50
«Às vezes Carlos dava lições a Rosa - ora de
história, contando-lha familiarmente como um conto
de fadas, ora de geografia, interessando-a pelas
terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos
rios que correm entre as ruínas dos santuários.
Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda,
cheia de religião, escutava aquele ser bem-amado
ensinando sua filha.» (p. 529);
51
«Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a carta
do Ega. Era da véspera, com a data: "À noite, à
pressa." E dizia: "Lê, nesse trapo que te mando,
esse superior pedaço de prosa que lembra Tácito.
Mas não te assustes; eu suprimi, mediante pecúnia,
toda a tiragem, com excepção de dois números mais
que foram, um para a Toca, outro (oh! lógica
suprema dos hábitos constitucionais!) para o Paço,
para o Chefe do Estado!... Mas esse mesmo não
chegará ao seu destino. Em todo o caso desconfio
de que esgoto saiu esse enxurro e precisamos
providenciar! Vem já! Espero-te às duas. E, como
Iago dizia a Cássio, mete dinheiro na bolsa."
Inquieto, Carlos
descintou o jornal. Chamava-se a "Corneta do
Diabo": e na impressão, no papel, na abundância
dos itálicos, no tipo gasto, todo ele revelava
imundície e malandrice. Logo na primeira página
duas cruzes a lápis marcavam um artigo que Carlos,
num relance, viu salpicado com o seu nome. E leu
isto: "Ora viva, sô Maia! Então já se não vai ao
consultório, nem se vêem os doentes do bairro, sô
janota? - Esta piada era botada no Chiado, à
porta da Havanesa, ao Maia, ao Maia dos cavalos
ingleses, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota
por aí de catita; e o pai Paulino que
tem olho e que passava nessa ocasião ouviu a
seguinte cornetada: - É que o sô
Maia acha que é mais quente viver nas
fraldas de uma brasileira casada, que nem
é brasileira nem é casada, e a quem o papalvo pôs
casa, aí para os lados dos Olivais, para estar
ao fresco! Sempre os há neste mundo!...
Pensa o homem que botou conquista; e cá a
rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhe
quer não são os lindos olhos, são as lindas louras...
O simplório, que aí pilecas bifes, que nem
que fosse o marquês, o verdadeiro marquês,
imaginava que se estava abiscoitando com uma
senhora do chique, e do boulevard de
Paris, e casada, e titular!... E no fim (não, esta
é para a gente deixar estourar o bandulho a rir!)
no fim descobre-se que a tipa era uma cocotte
safada, que trouxe para aí um brasileiro já
farto dela para a passar cá aos belos
lusitanos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre
palerma! Ainda assim o sô Maia só apanhou os
restos de outro, porque a tipa, já antes de ele se
enfeitar, tinha pandegado à larga, aí para
a Rua de S. Francisco, com um rapaz da fina, que
se safou também, porque cá como nós só aprecia
a bela espanhola. Mas não obsta a que o sô
Maia seja traste! - Pois se assim é, dissemos nós,
cautelinha, porque o Diabo cá tem a sua Corneta
preparada para cornetear por esse mundo as
façanhas do Maia das conquistas. Ora viva,
sô Maia!"» (pp. 530-531);
52
«Ergueu-se, abalado. E então ali, sob essas
árvores desfolhadas, onde durante o Verão, quando
elas se enchiam de sombra e de murmúrio, ele
passeara com Maria, esposa eleita da sua vida -
Carlos perguntou, pela primeira vez a si mesmo, se
a honra doméstica, a honra social, a pureza dos
homens de quem descendia, a dignidade dos homens
que dele descendessem, lhe permitiam em verdade
casar com ela...» (p.
533);
53
«Ia bater uma hora quando a caleche do "Torto"
começou a rolar na estrada, ainda encharcada da
chuva da noite. Logo adiante da vila, na descida,
cruzaram com um coupé que trepava num
trote esfalfado. Maria julgou avistar nele de
relance o chapéu branco e o monóculo de Ega...
Pararam. E era com efeito o Ega [...]» (p. 535); «Carlos apareceu nessa noite,
já tarde, transido de frio, com um monte de
bagagens - porque abandonara definitivamente os
Olivais. Maria Eduarda regressava também a Lisboa,
para o primeiro andar da Rua de S. Francisco
[...]» (p. 564);
54
«E Ega voltou a falar dos inundados do Ribatejo e
do sarau literário e artístico que, em benefício
deles, se "ia cometer" no salão da Trindade... Era
uma vasta solenidade oficial. Tenores do
Parlamento, rouxinóis da literatura, pianistas
ornados com o hábito de Sant' Iago, todo o pessoal
canoro e sentimental do constitucionalismo "ia
entrar em fogo". Os reis assistiam, já se teciam
grinaldas de camélias para pendurar na sala. Ele,
apesar de demagogo, fora convidado para ler um
episódio das "Memórias de Um Átomo": recusara-se,
por modéstia, por não encontrar, nas "Memórias",
nada tão suficientemente palerma que agradasse à
capital. Mas lembrara o Cruges; e o maestro ia
ribombar ou arrulhar uma das suas "meditações".
Além disso, havia uma poesia social pelo Alencar.
Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia...» (pp. 536-537);
55
«Passavam à porta do Hotel Aliança quando Ega
sentiu alguém que se apressava, chamar atrás: "Ó
ser Ega! Vossa Excelência faz favor, sr. Ega?..."
- Parou, reconheceu o chapéu recurvo, as barbas do
sr. Guimarães.
- Vossa Excelência
desculpe! - exclamou o demagogo esbaforido. - Mas
vi-o descer, queria-lhe dar duas palavras, e como
me vou embora amanhã...
- Perfeitamente... Ó
Cruges, vai andando, já te apanho! [...]
- Aqui está o que é...
Vossa Excelência sabe, ou talvez não saiba, que eu
fui em Paris íntimo da mãe do sr. Carlos da
Maia... Vossa Excelência tem pressa, e não vem
agora a propósito essa história. Basta dizer que
aqui há anos ela entregou-me, para eu guardar, um
cofre que, segundo dizia, continha papéis
importantes.... Depois, naturalmente, ambos
tivemos muitas outras coisas em que pensar, os
anos correram, ela morreu. Numa palavra, porque
Vossa Excelência está com pressa: eu conservo
ainda em meu poder esse depósito, e trouxe-o por
acaso quando vim agora a Portugal por negócios da
herança de meu irmão... Ora hoje justamente, ali
no teatro, comecei a reflectir que o melhor era
entregá-lo à família...
O Cruges mexeu-se
impacientemente:
- Ainda te demoras?
Um instante! - gritou
Ega, já interessado por aqueles papéis e pelo
cofre. - Vai andando.
Então o sr. Guimarães, à
pressa, resumiu o pedido. Como sabia a intimidade
do sr. João da Ega e de Carlos da Maia,
lembrara-se de lhe entregar o cofrezinho para que
ele o restituísse à família...
- Perfeitamente! -
Acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no
Ramalhete. [...]
- Muito agradecido a
Vossa Excelência! Eu junto-lhe então um bilhete e
Vossa Excelência entrega-o da minha parte ao
Carlos da Maia, ou à irmã.
Ega teve um momento de
espanto:
- À irmã?... A que irmã?
[...]
- A que irmã!? À irmã
dele, à única que tem, à Maria! [...]
- Eu parece-me - dizia o
Ega sorrindo, mas nervoso - que nós estamos aqui a
enrodilhar-nos num equívoco... Eu conheço o Maia
desde pequeno, vivo até agora em casa dele, posso
afiançar-lhe que não tem irmã nenhuma...
[...] O sr. Guimarães
imaginava que não era segredo, que todas essas
coisas da irmã estavam esquecidas, desde que
houvera reconciliação...
- Como vi, ainda não há
muitos dias, o sr. Carlos da Maia com a irmã e com
Vossa Excelência, na mesma carruagem, no Cais do
Sodré...
- O que! Aquela senhora!
A que ia na carruagem?
- Sim! - exclamou o sr.
Guimarães irritado, farto enfim dessa confusão em
que se debatiam. - Aquela mesma, a Maria
Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia, como
quiser, que eu conheci de pequena, com quem andei
muitas vezes ao colo, que fugiu com o Mac Gren,
que esteve depois com a besta do Castro Gomes...
Essa mesma! [...] (pp.
614-616);
- É uma caixita pequena
que a Monforte me deu, na véspera de partir para
Londres com a filha. Era no tempo da guerra... Já
a Maria vivia com o irlandês, tinha mesmo uma
pequena, a Rosa. Depois veio a Comuna [...] De
sorte que fui ficando com os papéis. [...] E agora
aí estão, às ordens da família.
- Se isso não fosse
incómodo para Vossa Excelência - acudiu o Ega - eu
passava agora pelo seu hotel e levava-os logo
comigo...
- Incómodo nenhum! [...]
E como estavam no
Pelourinho, rogou ao Ega que esperasse um momento,
enquanto ele corria a cima buscar os papéis da
Monforte. [...] E de tudo isto ressaltava esta
certeza monstruosa: - Carlos amante da irmã! [...]
(pp. 619-621);
Então Ega, já
impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa,
alastrou os papéis. E entre cartas, outras contas,
bilhetes de visita, um grande sobrescrito destacou
com esta linha a tinta azul: "Pertence a minha
filha Maria Eduarda." [...]
Ega leu-o alto, devagar.
Dizia:
Como a Maria teve a
pequena e anda muito fraca, e eu também me não
sinto nada boa com umas pontadas, parece-me
prudente, para o que possa vir a suceder, fazer
aqui uma declaração que te pertence a ti, minha
querida filha,, e que só sabe o padre Talloux
(Mr. l'abbé Talloux, coadjuteur à Saint-Roche)
porque lho disse há dois anos, quando tive a
pneumonia. E é o seguinte: Declaro que a minha
filha Maria Eduarda, que costuma assinar Maria
Calzaski, por supor ser esse o nome de seu pai,
é portuguesa e filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me
separei voluntariamente, trazendo-a comigo para
Viena, depois para Paris, e que agora vive em
companhia de Patrick Mac Gren, em Fontainebleau,
com quem vai casar. E o pai de meu marido era
meu sogro Afonso da Maia, viúvo,
que vivia em Benfica e também em Santa Olávia,
ao pé do rio Douro. O que tudo se pode verificar
em Lisboa, pois devem lá estar os papéis; e os
meus erros, de que vejo agora as consequências,
não devem impedir que tu, minha querida filha,
tenhas posição e fortuna que te pertencem. E por
isso aqui declaro tudo isto que assino, no caso
que o não possa fazer diante de um tabelião, o
que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo,
se eu vier a morrer, o que Deus não permita,
peço perdão a minha filha. E assino com o meu
nome de casada - Maria Monforte da Maia.
Ega ficou a olhar para o
Vilaça.» (pp. 635-636);
56
«- Vá, acaba lá! - exclamou Carlos, recaindo no
assento, mais pálido.
E Ega, miudamente,
contou a longa, terrível conversa com o Guimarães,
desde o momento em que o homem, por acaso, já ao
despedir-se, já ao estender-lhe a mão, falara da
"irmã do Maia". Depois entregara-lhe os papéis da
Monforte à porta do Hotel Paris, no Pelourinho...
- E aqui está, não sei
mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas não
coragem de te dizer. Fui ao Vilaça... Fui ao
Vilaça com a esperança sobretudo de ele saber
algum facto, ter algum documento que atirasse por
terra toda esta história do Guimarães... Não tinha
nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como
eu!
No curto silêncio que
caiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo
do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se
arrebatadamente, numa revolta de todo o ser:
- E tu acreditas que
isso seja possível? Acreditas que suceda a um
homem como eu, como tu, numa rua de Lisboa?
Encontro uma mulher, olho para ela, conheço-a
durmo com ela e, entre todas as mulheres do mundo,
essa justamente há-de ser minha irmã! É
impossível... Não há Guimarães, não há papéis, não
há documentos que me convençam!» (pp.
642-643);
57
«Então Carlos, que passeava pensativamente
fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e
sumiu-se por trás do reposteiro.
Ia à Rua de S.
Francisco. [...]
Fora nessa tarde, só no
seu quarto, que Carlos decidira ir falar a Maria
Eduarda - por um motivo supremo de dignidade e de
razão, que ele descobrira e que repetia a si
mesmo, incessantemente, para se justificar. Nem
ela nem ele eram duas crianças frouxas,
necessitando que a crise mais temerosa da sua vida
lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo
Vilaça [...] Por isso ele, só ele, devia ir à Rua
de S. Francisco. [...]
E pouco a pouco, aquela
fachada muda donde apenas saía, a um canto, uma
claridade lânguida de alcova adormecida, foi-o
estranhamente penetrando de inquietação e
desconfiança. [...] Não entrou [...] Depois parou
diante da larga barra de claridade que saía do
portão do Grémio; e foi para lá [...]
Apenas acabou o
conhaque, saiu. Agora, caminhando rente das casas,
não via aquela fachada, que o perturbava, com a
sua claridade de alcova morrendo nos vidros. O
portão ficara cerrado, o gás ardia no patamar. E
subiu, sentindo mais, pela escada de pedra, as
pancadas do coração que o pousar dos seus passos.
Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora,
um pouco cansada, se fora encostar sobre a roupa
[...] (pp. 652-655);
58
«Ele tenteava, procurando na brancura da roupa:
encontrou um joelho, a que percebia a forma e o
calor suave, através da seda leve: e ali esqueceu
a mão, aberta e frouxa, como morta, num
entorpecimento onde toda a vontade e toda a
consciência se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a
sensação daquela pele quente e macia, onde a sua
palma pousava. Um suspiro, um pequenino suspiro de
criança, fugiu dos lábios de Maria, morreu na
sombra. Carlos sentiu a quentura do desejo que
vinha dela, que o entontecia, terrível como o bafo
ardente de um abismo, escancarado na terra a seus
pés. Ainda balbuciou: "Não, não..." Mas ela
estendeu os braços, envolveu-lhe o pescoço,
puxando-o para si, num murmúrio que era como a
continuação do suspiro, e em que o nome de
"querido" sussurrava e tremia. Sem resistência,
como um corpo morto que um sopro impele, ele
caiu-lhe sobre o seio. Os seus lábios secos
acharam-se colados, num beijo aberto que os
humedecia. E de repente, Carlos enlaçou-a
furiosamente, esmagando-a e sugando-a, numa paixão
e num desespero que fez tremer todo o leito. [...]
Alta noite, Ega acordou
com uma grande sede. Saltara da cama,
esvaziara a garrafa no toucador, quando julgou
sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta
bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos
lençóis. mas espertara inteiramente, com uma ideia
estranha, insensata, que o assaltara sem motivo, o
agitava, lhe fazia palpitar o coração no grande
silêncio da noite. Ouviu assim dar três horas. A
porta de novo batera, depois uma janela: era
decerto vento que se erguera. Não podia porém
readormecer, às voltas, num terrível mal-estar,
com aquela ideia cravada na imaginação que o
torturava. Então, desesperado, pulou da cama,
enfiou um paletó, e em pontas de chinelas, com a
mão diante da luz, desceu surdamente ao quarto de
Carlos. Na antessala parou, tremendo, com o ouvido
contra o reposteiro, na esperança de perceber
algum calmo rumor de respiração. O silêncio era
pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava
feita e vazia, Carlos saíra.
[...] E agora não
duvidava. Carlos fora findar a noite à Rua de S.
Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só uma ideia
surgia através do seu horror - fugir, safar-se
para Celorico, não ser testemunha daquela
incomparável infâmia!...» (pp.
658-662);
59
«Nessa madrugada, às quatro horas, em plena
escuridão, Carlos cerrara de manso o portão da Rua
de S. Francisco. E, mais pungente, apoderava-se
dele, na frialdade da rua, o medo que já o roçara,
ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de
Maria adormecida - o medo de voltar ao Ramalhete!
Era esse medo que já na véspera o trouxera todo o
dia por fora no dog-cart, findando por
jantar lugubremente com o Cruges, escondido num
gabinete do Augusto. Era medo do avô, medo do Ega,
medo do Vilaça; medo daquela sineta do jantar que
os chamava, os juntava; medo do seu quarto, onde a
cada momento qualquer deles podia erguer o
reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e
no seu segredo... Tinha agora a certeza que
eles sabiam tudo. E mesmo que nessa noite
fugisse para Santa Olávia, pondo entre si e
Maria uma separação tão alta como o muro de um
claustro, nunca mais do espírito daqueles homens,
que eram os seus amigos melhores, sairia a memória
e a dor da infâmia em que ele se despenhara. A sua
vida moral estava estragada... Então, para que
partiria - abandonando a paixão, sem que por isso
encontrasse a paz? Não seria mais lógico calcar
desesperadamente todas as leis humanas e divinas,
arrebatar para longe Maria na sua inocência, e
para todo o sempre abismar-se nesse crime que se
tornara a sua sombria partilha na Terra?
Já assim pensara na
véspera. Já assim pensara... Mas antevira então
outro horror, um supremo castigo, a esperá-lo na
solidão onde se sepultasse. Já lhe percebera mesmo
a aproximação; já noutra noite recebera dele um
arrepio; já nessa noite, deitado junto de Maria,
que adormecera cansada, o pressentira,
apoderando-se dele, com um primeiro frio de
agonia.
Era, surgindo do fundo
do seu ser, ainda ténue mas já perceptível, uma
saciedade, uma repugnância por ela, desde que a
sabia do seu sangue!... Uma repugnância material,
carnal, à flor da pele, que passava como um
arrepio. Fora primeiramente aquele aroma que a
envolvia, flutuava entre os cortinados, lhe ficava
a ele na pele e no fato, o excitava tanto outrora,
o impacientava tanto agora - que ainda na véspera
se encharcara em água-de-colónia, para o dissipar.
Fora depois aquele corpo dela, adorado sempre como
um mármore ideal, que de repente lhe aparecera,
como era na sua realidade, forte de mais,
musculoso, de grossos membros de amazona bárbara,
com todas as belezas copiosas do animal de prazer.
Nos seus cabelos de um lustre tão macio, sentia
agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus
movimentos na cama, ainda nessa noite o tinham
assustado como se fossem os de uma fera, lenta e
ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os
seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os
seus rijos peitos túmidos de seiva, ainda decerto
lhe punham nas veias uma chama que era toda
bestial. Mas, apenas o último suspiro lhe morria
nos lábios, aí começava insensivelmente a recuar
para a borda do colchão, com um susto estranho: e
imóvel, encolhido na roupa, perdido no fundo de
uma infinita tristeza, esquecia-se pensando numa
outra vida que podia ter, longe dali, numa casa
simples, toda aberta ao sol, com sua mulher,
legitimamente sua, flor de graça doméstica,
pequenina, tímida, pudica, que não soltasse
aqueles gritos lascivos e não usasse aquele aroma
tão quente! E desgraçadamente agora já não
duvidava... Se partisse com ela, seria para bem
cedo se debater no indizível horror de um nojo
físico. E que lhe restaria então, morta a paixão
que fora a desculpa do crime, ligado para sempre a
uma mulher que o enojava - e que era... Só lhe
restava matar-se! [...]
Defronte
do Ramalhete os candeeiros ainda ardiam. Abriu
de leve porta. Pé
ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo
veludo cor de cereja. No patamar tacteava,
procurava a vela, quando, através do reposteiro
entreaberto, avistou uma claridade que se movia
no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no
recanto. O clarão chegava, crescendo; passos
lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete; a
luz surgiu - e com ela o
avô em mangas e camisa, lívido, mudo, grande,
espectral. Carlos não se moveu, sufocado; e os
dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados,
cheios de horror, caíram sobre ele, ficaram
sobre ele, varando-o até às profundidades da
alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma
palavra, com a cabeça branca a tremer, Afonso atravessou o
patamar, onde a luz sobre o veludo espalhava um
tom de sangue - e os seus
passos perderam-se no interior da casa, lentos,
abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem
os derradeiros que devesse dar na vida!
Carlos
entrou no quarto às escuras, tropeçou num sofá.
E ali se deixou cair, com a cabeça enterrada nos
braços, sem pensar, sem sentir, vendo o velho
lívido passar, repassar diante dele como um
longo fantasma, com a luz avermelhada na mão.
Pouco a pouco foi-o tomando um cansaço, uma
inércia, uma infinita lassidão da vontade, onde
um desejo apenas transparecia, se alongava - o desejo de
interminavelmente repousar algures numa mudez
e numa grande e numa grande treva... Assim
escorregou ao pensamento da morte. Ela seria a
perfeita cura, o asilo seguro. Porque não iria
ao seu encontro? Alguns graus de láudano nessa
noite e penetrava na absoluta paz...
Ficou
muito tempo embebendo-se nesta ideia, que lhe
dava alívio e consolo, como se, escorraçado por
uma tormenta ruidosa, visse diante dos passos
abrir-se uma porta, donde saísse calor e
silêncio. Um rumor, o chilrear de um pássaro na
janela, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se,
despiu-se muito devagar, numa imensa moleza. E
mergulhou na cama, enterrou a cabeça no
travesseiro para recair na doçura daquela
inércia, que era um antegosto da morte, e não
sentir mais nas horas que lhe restavam nenhuma
luz, nenhuma coisa da Terra» (pp. 665-668);
60
«O Sol ia alto, um barulho passou, o Baptista
rompeu pelo quarto:
- Ó sr. D. Carlos, ó meu
menino! O avô achou-se mal no jardim, não dá
acordo!...
Carlos pulou do leito
[...]
Arrebatadamente,
Carlos levantara-lhe a face, já rígida, cor de
cera, com os olhos cerrados, um fio de sangue aos
cantos da longa barba de neve. Depois caiu de
joelhos no chão húmido, sacudia-lhe as mãos,
murmurando: "Ó avô! ó avô!" Correu ao tanque,
borrifou-o de água:
- Chamem alguém! Chamem
alguém!
Outra vez lhe palpava o
coração... Mas estava morto. Estava morto, já
frio, aquele corpo que, mais velho que o século,
resistira tão formidavelmente, como um grande
roble, aos anos e aos vendavais. Ali morrera
solitariamente, já o Sol ia alto, naquela tosca
mesa de pedra onde deixara pender a cabeça
cansada. [...]
Carlos murmurou,
devagar, como para si mesmo, com os olhos postos
no chão:
- Não! É estranho, não
me faço mais desgraçado! Aceito isto como um
castigo... Quero que seja um castigo... E
sinto-me só muito pequeno, muito humilde diante de
quem assim me castiga. Esta manhã pensava em
matar-me. E agora não! é o meu castigo viver,
esmagado para sempre... O que me custa é que ele
não me tivesse dito adeus!» (pp. 668-672);
61
«Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa
missão à Rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se
uns dias com ele a Santa Olávia. Mais tarde era
necessário trasladar para lá o corpo do avô...
- E passado isso, vou
viajar... Vou à América, vou ao Japão, vou fazer
esta coisa estúpida e sempre eficaz que se chama
"distrair"...» (p. 678);
62
«Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo
de findar.
- Vossa Excelência
conhece a letra de sua mãe, não é verdade?... Pois
bem! Eu trago aqui uma declaração dela a seu
respeito... Esse Guimarães é quem tinha este
documento, com outros papéis que ela lhe entregou
em 71, nas vésperas da guerra... Ele conservou-os
até agora, e queria restituir-lhos, mas não sabia
onde Vossa Excelência vivia. Viu-a há dias numa
carruagem, comigo e com Carlos... Foi ao pé do
Aterro, Vossa Excelência deve lembrar-se, defronte
do alfaiate, quando vínhamos da Toca... Pois bem!
O Guimarães veio imediatamente ao procurador dos
Maias, deu-lhe esses papéis, para que os
entregasse a Vossa Excelência... E nas primeiras
palavras que disse, imagine o assombro de todos,
quando se entreviu que Vossa Excelência era
parenta de Carlos, e parenta muito chegada.
Atabalhoara esta
história de pé, quase de um fôlego, com bruscos
gestos de nervoso. Ela mal compreendia, lívida,
num indefinido terror. Só pôde murmurar muito
debilmente: "Mas..." E de novo emudeceu,
assombrada, devorando os movimentos do Ega, que,
debruçado sobre o sofá, desembrulhava a tremer a
caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou para
ela com um papel na mão, atropelando as palavras
numa debandada:
- A mãe de Vossa
Excelência nunca lho disse... Havia um motivo
muito grave... Ela tinha fugido de Lisboa, fugido
ao marido... Digo isto assim brutalmente,
perdoe-me Vossa Excelência, mas não é o momento de
atenuar as coisas... Aqui está! Vossa Excelência
conhece a letra de sua mãe. É dela esta letra, não
é verdade?
- É! - Exclamou Maria,
indo arrebatar o papel.
- Perdão! - gritou Ega,
retirando-lho violentamente. - Eu sou um estranho!
E Vossa Excelência não se pode inteirar de tudo
isto enquanto eu não sair daqui.
Fora uma inspiração
providencial [...]
Foi só na Rua do Ouro
que começou a serenar, tirando o chapéu,
respirando largamente. E ia então repetindo a si
mesmo todas as consolações que se poderiam dar a
Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu pecado
fora inconsciente; o tempo acalma a dor [...] (pp.
683-684);
63
«E fumavam junto do lume, na sala Luís XV, quando
o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo,
numa carruagem, procurava o sr. Ega. Foi um
terror. Imaginaram logo Maria, alguma resolução
desesperada. Vilaça ainda teve a esperança de ela
trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse,
salvasse da "bolada"... Ega desceu a tremer. Era
Melanie numa tipóia de praça, abafada numa grande
ulster, com uma carta de madame.
À luz da lanterna, Ega
abriu o envelope, que trazia apenas um cartão
branco, com estas palavras a lápis: "Decidi partir
amanhã para Paris." [...]
No dia seguinte, na
estação de Santa Apolónia, Ega, que viera cedo com
o Vilaça, acabava de despachar a sua bagagem para
o Douro, quando avistou Maria, que entrava
trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta numa
grande peliça escura, com um véu dobrado, espesso
como uma máscara: e a mesma gaze de luto escondia
o rostozinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre
a touca. [...] Ega correu para Maria Eduarda,
conduziu-a pelo braço, em silêncio, ao
vagão-salão, que tinha todas as cortinas cerradas.
Junto do estribo ela tirou devagar a luva. E muda,
estendeu-lhe a mão.
- Ainda nos vemos no
Entroncamento - murmurou Ega. - Eu sigo também
para o Norte.
Alguns sujeitos pararam,
com curiosidade, ao ver sumir-se naquela carruagem
de luxo, fechada, misteriosa, uma senhora que
parecia tão bela, de ar tão triste, coberta de
negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves,
o d' "A Tarde" e do Tribunal de Contas, rompeu de
entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com
sofreguidão:
- Quem é?
Ega arrastou-o pela
Plataforma, para lhe deixar cair no ouvido, já
muito adiante, tragicamente:
- Cleópatra!
O político, furioso,
ficou rosnando: "Que asno!..." Ega abalara. Junto
do seu compartimento, Vilaça esperava, ainda
deslumbrado com aquela figura de Maria Eduarda,
tão melancólica e nobre. Nunca a vira antes. E
parecia-lhe uma rainha de romance. [...]
No Entroncamento, Ega
veio bater nos vidros do salão, que se conservava
fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia.
Miss Sara lia a um canto, com a cabeça numa
almofada. E "Niniche" assustada ladrou.
- Quer tomar alguma
coisa, minha senhora?
- Não, obrigada...
Ficaram calados,
enquanto Ega, com o pé no estribo, tirava
lentamente a charuteira. Na estação mal alumiada
passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um
guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a
máquina resfolegava na sombra. E dois sujeitos
rondavam em frente do salão, com olhares curiosos
e já lânguidos para aquela magnífica mulher, tão
grave e sombria, envolta na sua peliça negra.
- Vaia para o Porto? -
murmurou ela.
- Para Santa Olávia...
- Ah!
Então Ega balbuciou com
os beiços a tremer:
- Adeus!
Ela apertou-lhe a mão
com muita força, em silêncio, sufocada.
Ega atravessou, devagar,
por entre soldados de capote enrolado a tiracolo,
que corriam a beber à cantina. à porta do bufete
voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé,
moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim
que ele, pela derradeira vez na vida, viu Maria
Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à
portinhola daquele vagão que para sempre a
levava.» (pp. 685-687);
64
«Então, naquela mudez de soledade e de abandono,
Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar:
- Mas tu desse casamento
não tinhas a menor indicação, a menor suspeita?
- Nenhuma... Soube-o de
repente pela carta dela em Sevilha.
E era esta a formidável
nova anunciada por Carlos, a nova que ele logo
contara de madrugada ao Ega, depois dos primeiros
abraços, em Santa Apolónia. Maria Eduarda ia
casar.
Assim o anunciara ela a
Carlos numa carta muito simples, que ele recebera
na quinta dos Vila Medina. Ia casar. E não parecia
ser uma resolução tomada arrebatadamente, sob um
impulso do coração; mas antes um propósito lento,
longamente amadurecido. Ela aludia nessa carta a
ter "pensado muito, reflectido muito..." De resto
o noivo devia ir perto dos cinquenta anos. E
Carlos, portanto, via ali a união de dois seres
desiludidos da vida, maltratados por ela, cansados
ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um
no outro qualidades sérias de coração e de
espírito, punham em comum o seu resto de calor, de
alegria e de coragem, para afrontar juntos a
velhice...
- Que idade tem ela?
Carlos pensava que ela
devia ter quarenta e um ou quarenta e dois anos.
Ela dizia na carta "sou apenas mais nova que o meu
noivo seis anos e três meses". Ele chamava-se Mr.
de Trelain. E era evidentemente um homem de
espírito largo, desembaraçado de prejuízos, de uma
benevolência quase misericordiosa, porque quisera
Maria, conhecendo os seus erros.
- Sabe tudo? - exclamou
Ega, que saltara do parapeito.
- Tudo, não. Ela diz que
Mr. de Trelain conhecia do seu passado "todos
aqueles erros em que ela caíra inconscientemente".
Isto dá a entender que não sabe tudo... [...]» (pp. 710-711);
65
«Carlos, no entanto, fora examinar, junto da
janela, um quadro que pousava no chão, para ali
esquecido e voltado para a parede. Era o retrato
do pai, de Pedro da Maia, com as suas
luvas de camurça na mão, os grandes olhos árabes
na face triste e pálida que o tempo amarelara
mais. Colocou-o em cima de uma cómoda. E
atirando-lhe uma leve sacudidela com o lenço:
- Não há nada que me
faça mais pena, do que não ter um retrato do
avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar
para Paris. [...]
Ega ergueu-se, atirou um
gesto desolado:
- Falhámos a vida,
menino!
- Creio que sim... [...]
O quarto escurecia no
crepúsculo frio e melancólico de Inverno. Carlos
pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas
forradas de veludo cor de cereja, onde ainda
pendia, com um ar baço de ferrugem, a panóplia de
velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um
longo olhar ao sombrio casarão, que naquela
primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado
de residência eclesiástica, com as suas paredes
severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as
grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo,
para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de
ruína.
Uma comoção passou-lhe
na alma, murmurou, travando o braço a Ega:
- É curioso! Só vivi
dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar
metida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só
ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo
que dá sabor e relevo à vida - a paixão.
Muitas outras coisas dão
valor à vida... Isso é uma velha ideia de
romântico, meu Ega!
- E que somos nós? -
Exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o
colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto
é, indivíduos inferiores que se governam na vida
pelo sentimento, e não pela razão...
Mas Carlos queria
realmente saber se, no fundo, eram mais felizes
esses que se dirigiam só pela razão, não se
desviando nunca dela, torturando-se para se manter
na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos,
sem emoção até ao fim...
- Creio que não - disse
o Ega. - Por fora, à vista, são desconsoladores. E
por dentro, para eles mesmos, são talvez
desconsolados. O que prova que neste lindo mundo
ou tem de se ser insensato ou sem sabor...
- Resumo: não vale a
pena viver...
- Depende inteiramente
do estômago! - atalhou Ega.
Riram ambos. Depois
Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida
[...]» (pp. 713-715).
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