FL Farol das Letras


| Início | Mapa do Sítio | Autor |

Luís de Camões


[Esboço biográfico] *  [ Os Lusíadas (Edição do Instituto Camões)] *  [Sonetos]



10 de junho, dia de Camões, de Portugal e das Comunidades

Notícias de Gondomar, 30 de maio de 1998

Por Manuel Maria

10 de junho. No anterior regime, comemorava-se o dia da raça! Como se a nação portuguesa, depois de terem passado pela península tantos povos, mesmo antes da fundação da nacionalidade, e da diáspora iniciada com as descobertas, com a inevitável miscigenação, pudesse constituir, por si, uma raça.

Dia de Portugal. Lembro-me de, após o 25 de abril, ter surgido uma vaga com o intuito de mudar o Dia de Portugal para aquele que é hoje comemorado como o Dia da Liberdade. Creio mesmo ter sido a hipótese discutida na Assembleia da República. Confesso que, então, a minha juventude não me permitia discernir, com a conveniência que tal requer, a importância da escolha dos símbolos de um povo. E, no caso concreto, o símbolo era o dia representativo da nacionalidade. Hoje, porém, não duvido de que, por muito importante que seja a conquista da liberdade - e é-o sem quaisquer laivos de dúvida - todo o símbolo, e mais ainda o que está em causa, deve ser erguido à dimensão do mito e congregar, em torno de si, a maioria dos cidadãos, na impossibilidade da sua totalidade. Raros serão os que, hoje, contestam a figura de Camões, para o que muito tem contribuído a escola, nomeadamente, os programas da disciplina de Português, apesar dos inúmeros que, mesmo assim, ainda desconhecem as diversas vicissitudes por que passou e as inúmeras incompreensões e injustiças de que foi vítima, com ou sem lenda.

Não é digno de respeito o que não respeita os seus, mas menos digno ainda é o que não respeita os seus maiores. E Camões, mesmo existindo, nos bastou e, por não ser um mito, não se tornou menos mito, nem menos símbolo, pelo que, mais do que nenhum outro, nos criou.1

E contudo... Até a tença que obteve de D. Sebastião era irregularmente paga!

«Irás ao Paço. Irás pedir que a tença / Seja paga na data combinada. / Este país te mata lentamente / País que tu chamaste e não responde / País que tu nomeias e não nasce. / / Em tua perdição se conjuraram / Calúnias desamor inveja ardente / E sempre os inimigos sobejaram / A quem ousou mais ser que a outra gente. / E aqueles que invocaste não te viram / Porque estavam curvados e dobrados / Pela paciência cuja mão de cinza / Tinha apagado os olhos no seu rosto. / / Irás ao paço irás pacientemente / Pois não te pedem canto mas paciência. / / Este país te mata lentamente.»2

Dia de Camões. Do Poeta, cujo canto é um hino de altruísmo sublime e de desinteressado amor pátrio digno apenas dos eleitos, como o testemunham as palavras eloquentes da Dedicatória a D. Sebastião: «Vereis amor da pátria, não movido / De prémio vil: mas alto e quase eterno; / Que não é prémio vil ser conhecido / Por um pregão do ninho meu paterno. / Ouvi: vereis o nome engrandecido / Daqueles de quem sois senhor superno, / E julgareis qual é mais excelente, / Se ser do mundo Rei, se de tal gente.»3

Poeta e soldado, cujo ideal não o dispensava de ter «Numa mão sempre a pena e noutra a espada», ao cantar «Aqueles que por obras valorosas / Se vão da lei da Morte libertando», também ele se libertava da mesma lei da Morte: uma imortalidade cimentada nos valores da humildade.

Possuidor indesmentível de um estilo grandíloquo, não necessariamente por inspiração das ninfas, nunca a pena escorreu para a tentação do auto-elogio, reservando o discurso panegírico aos heróis do seu Canto. Mas também estes pareciam querer merecer a honra do criador, como se depreende das palavras de Vasco da Gama, quando, a solicitação do rei de Melinde, se prontifica a contar a História de Portugal: « - Mandas-me, ó Rei, que conte declarando / De minha gente a grão genealogia; / Não me mandas contar estranha história, / Mas mandas-me louvar dos meus a glória. / / Que outrem possa louvar esforço alheio, / Cousa é que se costuma e se deseja; / Mas louvar os meus próprios, arreceio / Que louvor tão suspeito mal me esteja»4. Poderíamos afirmar que, aqui, o Gama funciona por metonímia: o receio do Capitão era o receio do Poeta. E este sabia-o bem. Por isso, entrega ao Argonauta a expressão do seu amor pela Pátria, quando, diante do mesmo rei, ao localizar o Reino Lusitano na Península Ibérica, exclama: «Esta é a ditosa Pátria minha amada / À qual se o Céu me dá que eu sem perigo / Torne, com esta empresa já acabada5, / Acabe-se esta luz ali comigo.»

Não o moveram fingidos gostos, esperanças presumidas ou promessas vãs, como aqueles a quem se dirigiam as palavras do Vaticinador do Restelo, que o Poeta quis que tivesse a autoridade moral de um velho ancião, com um aspeto digno de veneração e «cum saber só de experiências feito»: «- Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos Fama! / [...] / Chamam-te ilustre, chamam-te subida, / Sendo digna de infames vitupérios.»6

Esta era a voz do chamado «bom senso». Como em qualquer decisão política de monta com que nos deparamos no dia-a-dia, também, na época, havia os favoráveis e os da oposição, e, como sempre, depois de tomadas as decisões, só a História se encarregará de as julgar, pelo menos à luz dos que têm poder para a fazer e interpretar.

Aparentemente, parecem em contradição a atitude atribuída ao Velho do Restelo e a atribuída a Vénus, ao conceder o prémio aos Argonautas Lusos na Ínsula Divina, mas só não compreenderá quem não entender a essência do ser dividido que é o humano, mais ainda se se trata de um génio. Por outro lado, não nos devemos esquecer das palavras de Thétis a Vasco da Gama: «Só para fazer versos deleitosos / Servimos7».

Seja como for, também me incluo nos que advogam que as palavras do Velho do Restelo não são mais do que o parecer e a argumentação dos que menos tinham a ganhar com as viagens, ou seja, o povo. Sim, porque - parece ser uma máxima intemporal - embora todos iguais, há sempre uns mais iguais do que outros... Sim, porque, aos mais iguais, o que interessava era o ouro, o vil metal de que fala o Poeta: «Este rende munidas fortalezas; / Faz traidores e falsos os amigos; / Este a mais nobres faz fazer vilezas, / E entrega Capitães aos inimigos; / Este corrompe virginais purezas, / Sem temer de honra ou fama alguns perigos; / Este deprava às vezes as ciências, / Os juízos cegando e as consciências. / / Este interpreta mais que subtilmente / Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa os perjúrios entre a gente, / E mil vezes tiranos torna os Reis. / Até os que só a Deus omnipotente / Se dedicam, mil vezes ouvireis / Que corrompe este encantador, e ilude, / Mas não sem cor, contudo, de virtude.»8

E, de resto, lembre-se, a propósito, o Auto da Índia, do mestre Gil Vicente.

Com mágoa profunda, Camões lamenta que, para além do infortúnio do seu fado, ainda tivesse de suportar a falta de reconhecimento ou a indiferença dos que deveriam ter para com ele deferimento. Era a medrança dos indignos em detrimento dos de merecimento (como ainda hoje em muitos casos!): «E ainda, Ninfas minhas, não bastava / Que tamanhas misérias me cercassem, / Senão que aqueles que eu cantando andava / Tal prémio de meus versos me tornassem: / A troco dos descansos que esperava, / Das capelas de louro que me honrassem, / Trabalhos nunca usados me inventaram, / Com que em tão duro estado me deitaram!»9

Qual voz duma consciência coletiva, seu canto zurziu o ócio, a cobiça, a ambição e a tirania : «Por isso, ó vós que as famas estimais, / Se quiserdes no mundo ser tamanhos, / Despertai já do sono do ócio ignavo, / Que o ânimo, de livre, faz escravo. / / E ponde na cobiça um freio duro, / E na ambição também, que indignamente / Tomais mil vezes, e no torpe e escuro / Vício da tirania infame e urgente; / Porque essas honras vãs, esse ouro puro; / Verdadeiro valor não dão à gente. / Melhor é merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem os merecer.»10

A maior mágoa, porém, a que macerava a sua alma de poeta épico, era a consciência da inércia e ausência de vitalidade em que mergulhava a Pátria, nada condizente com o seu canto: «Não mais, Musa, não mais, que a lira / Tenho destemperada e a voz enrouquecida / E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e endurecida. / O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a Pátria, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De ua austera, apagada e vil tristeza.»11

Era já o desconcerto da própria Pátria no seu mundo desconcertado: «Os bons vi sempre passar / No mundo graves tormentos; / E, para mais me espantar, / Os maus vi sempre nadar / Em mar de contentamentos. / Cuidando alcançar assim / O bem tão mal ordenado, / Fui mau, mas fui castigado. / Assim que, só para mim / Anda o mundo concertado.»12

Dia das Comunidades. Mas no sentido que lhe daria a alma do Poeta. Nunca no daqueles que, a coberto de vãs palavras de circunstância, apenas se lembram dos seus votos em época de eleições ou, então, de forma não menos vil, apenas se preocupam com as suas remessas para o equilíbrio da balança de pagamentos.

É urgente que o desconcerto do mundo deixe de ser uma fatalidade! Afinal, o homem pode comandar o seu destino!



1  Confrontar Fernando Pessoa, Mensagem, Ulisses;
2
  Sophia de Mello Breiner, Grades;
3  Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I, estr. 10;
4  ibidem, Canto III, estr. 3/4;
5  a descoberta do caminho marítimo para a Índia (ibidem, Canto III, estr. 21);
6  ibidem, Canto IV, estr. 95/96;
7  ibidem, Canto X, estr. 82;
8  ibidem, Canto VIII, estr. 98/99;
9  ibidem, Canto VII, estr. 81;
10  ibidem, Canto IX, estr. 92/93;
11  ibidem, Canto X, estr. 145;
12  Camões, Lírica, Esparsa sobre o desconcerto do mundo.



© 2001- - Manuel Maria, associado da SPA.