
|
Esboço
biográfico
Luís Vaz de Camões. É o nome do
mais célebre dos escritores portugueses. Tendo vivido
quase isolado dos seus pares, nenhuns deles em sua
vida se lhe refere e só depois da morte mereceu de um
ou outro raro amigo uma breve alusão, que, na ausência
geral delas, atinge valor de preciosa. É, todavia,
possível, completando os documentos que lhe respeitam,
a ele ou à família, com seus escritos, tentar um
esboço biográfico sem grande perigo de erros
fundamentais, se bem deixando lacunas e sombras que já
agora não há grande esperança de eliminar.
Impossível determinar a terra natal do
poeta. Lisboa? Coimbra? A sua formação cultural, essa
decorreu porventura em Coimbra, cidade em que o tio
crúzio D. Bento de Camões era chanceler da
Universidade e à qual o poeta se refere na Canção «Vão
as serenas águas...» Aliás, a cultura que a obra
demonstra é mais fácil compreendê-la admitindo-a como
preparada em alguns anos de calma escolaridade, do que
supondo-a adquirida na dissipação boémia da mocidade,
em Lisboa, ou na acidentada existência de soldado ou
funcionário no Oriente. A sua estada em Ceuta, de que
fala o seu primeiro biógrafo Pedro de Mariz,
documenta-se com a elegia «Aquela que de amor
descomedido», e à perda em combate de um dos olhos se
refere a Canção «Vinde cá, meu tão certo secretário».
Fora para Ceuta desterrado por «uns amores
que, segundo dizem, tomou no Paço»? Não se sabe. O
biógrafo Mariz repete o diz-se e não é
possível assentar certeza sobre os versos das
composições em que o Poeta fala de desterros, porque
jamais esta palavra é interpretável apenas no sentido
de degredo imposto como castigo e não afastamento de
iniciativa própria.
De regresso a Lisboa, decorre-lhe a vida na
frequentação do Paço, onde, então como antes,
encontrou as relações a que os seus versos se referem,
e entre elas a do filho dos Condes de Linhares, a cuja
morte dedica uma Écloga, e a de D. Francisca de
Aragão, a quem glosa um mote e escreve uma carta. Se,
nos intervalos, em companhia dos marialvas do tempo,
andas nas ruelas da Lisboa noturna, envolvido na
boémia arruaceira que consta das Cartas II e III, numa
destas cartas dá o Poeta evidência à distância a que
de tal existência fica o seu ideal de vida. Diz ele ao
amigo, que da boémia se fora para as suas terras de
perto de Coimbra, que trocaria com ele a situação,
«ainda com tornas», invejoso de passar o tempo «em
braços com os Sonetos de Petrarca, Arcádia
de Sannazaro, Éclogas de Virgílio». Não seria
sem responsabilidade nesta desordem a Lisboa
quinhentista, cais do Mundo, onde se aguardavam
perigosas viagens de duras e longas abstinências,
aonde se regressava depois de havê-las sofrido e se
sentia o natural anseio de desforra dos sentidos
moços, em áspera fome de prazeres.
Em tarde de procissão do Corpo de Deus, em
consequência da rixa com Gonçalo Borges, que «tinha
cárrego dos arreios do Rei», é preso no tronco da
cidade. Uma carta de perdão publicada por Juromenha
informa-nos de que o ferido, que ficou sem aleijão nem
deformidade, perdoou ao agressor «toda a justiça,
dano, corregimento». O Rei, por seu turno, lhe perdoa,
por essas razões e ainda porque «o suplicante é um
mancebo e pobre e me vai este ano (1553) servir à
Índia...»
O ir servir o Rei à Índia não é
condição imposta, até porque seria excessiva, dado que
o agredido lhe perdoava: é espontânea resolução do
Poeta, para mais facilmente obter o perdão, mas talvez
ainda mais para se libertar da vida que o não contenta
e que, em carta enviada da Índia, o faz escrever:
«Enfim, Senhor, não sei com que me pague saber tão bem
fugir a quantos laços me armavam os acontecimentos,
como com me vir para esta» (terra), declaração que põe
bem de manifesto a voluntariedade da largada.
Na Índia o Poeta não foi feliz. Goa
dececionou-o, «Babilónia onde mana / matéria a quanto
mal o mundo cria». Seus versos referem-se a excursões
militares e, numa delas, no Cabo Guardafu, escreve uma
das suas mais belas Canções, Junto dum seco, fero
e estéril monte..., impressionante pela verdade
do estado subjetivo e dos traços rápidos mas precisos
do cenário. São ainda as suas composições que nos
informam dos momentos de grato convívio, como aquele
em que, tendo oferecido uma ceia a fidalgos seus
amigos − João Lopes Leitão, Vasco de Ataíde, D.
Francisco de Almeida e Heitor da Silveira −
encontraram estes nos pratos graciosos versos por
iguarias. Envolve-o simpatia e prestígio que o
habilitam a pedir ao Vice-Rei, Conde de Redondo, a
quem glosa versos que ele lhe manda, proteção para
Heitor da Silveira e para o livro Colóquio dos
Simples e Drogas, do Dr. Garcia de Orta, que
publica a ode a isso destinada em sua primeira edição,
e a solicitar do herói de Malaca, D. Leonis Pereira,
benevolência igual para a obra de Magalhães Gândavo História
de Santa Cruz. Colabora nas festas de
investidura de Francisco Barreto no cargo de
Governador da Índia (1555) com o Auto de Filodemo.
Em alvará de 1585, confere Filipe I à mãe do Poeta −
Ana de Sá − a tença do filho, falecido, atendendo aos
serviços de «Simão Vaz de Camões e aos de Luís de
Camões, seu filho, cavaleiro da minha casa, e a não
entrar na feitoria de Chaul, de que era provido...»
A nomeação do Poeta implica certo reconhecimento dos
seus méritos, e o não provimento no cargo converge
no mesmo significado com quanto nos fala nos seus
infortúnios, por exemplo, as trovas ao Conde de
Redondo, para que o livre do embargo por dívida a um
certo Fios-Secos de alcunha; as Oitavas
ao Vice-Rei D. Constantino de Bragança, em que alude
à «pobreza avorrecida, / por hospícios alheios
degradado»; e a do Canto X dos Lusíadas,
alusiva ao injusto mando de que foi vítima e
ao naufrágio na foz do rio Mecon. Fundindo suas
mágoas pessoais com o mal-estar geral, o Poeta chora
a incompreensão da Pátria, que o não ouve, porque
«está metida / no gosto da cobiça e na rudeza / dua
austera, apagada e vil tristeza».
No regresso a Portugal (1569), encontrou-o
Diogo do Couto em Moçambique comendo de amigos,
ao mesmo tempo que ia trabalhando nos seus Lusíadas
e no seu Parnaso − «livro de muita erudição,
doutrina e filosofia» que lhe foi roubado
− «furto
notável». Alude ainda à sua existência no Reino no
desconforto da pura pobreza, situação de que
nos dá testemunho igual o soneto que Diogo Bernardes
lhe dedica na 1.ª ed. das Rimas (1595). A
epopeia, publicada em 1572, não lha remediou
notavelmente. A pensão de 15.000 réis, renovável,
concedidos aos serviços passados e futuros e à
«suficiência que mostrou no livro que fez das coisas
da Índia», além de exígua comparada com as que, em
data próxima, foram concedidas a pessoas da família
de João de Barros, era-lhe paga com irregularidade,
o que, somado à naturalíssima falta de tino
administrativo dum Poeta, daria em resultado a
penúria registada pelo seu primeiro biógrafo e a
lenda das esmolas colhidas por Jau (javanês) seu
criado. Era certeiro o fecho do soneto de Bernardes:
«Honrou a Pátria em tudo. Imiga sorte / a fez com
ele só ser encolhida / em prémio de estender dela a
memória».
Cidade, Hernâni, DICIONÁRIO DE LITERATURA,
3ª edição, 1º volume, Porto, Figueirinhas, 1979
|