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1º DE
DEZEMBRO
Dia da Restauração da Independência
Manuel
Maria
Texto publicado na edição do NOTÍCIAS DE GONDOMAR
de 30 de Novembro de 1998
Quem não sente a tentação de, no início de
cada ano, confrontar a distribuição dos feriados
nacionais com os respectivos dias da semana? E, entre
eles, lá está o 1º de Dezembro que, por sinal, este
ano, até é a uma 3ª-feira. Os feriados nacionais, seja
por razões históricas, seja por motivos religiosos,
são objecto, regra geral, de comemorações de âmbito
político ou de culto.
Acontece que, desde que me conheço, nunca dei conta de
que o 1º de Dezembro fosse objecto de comemoração
oficial, sendo o facto, de há anos para cá,
aproveitado pela direita mais à direita, que,
habitualmente, se congrega em torno do monumento aos
Restauradores, em Lisboa. Sob pena de a memória me
atraiçoar, creio que a primeira manifestação do género
terá sido promovida pelo jornal O Diabo, ao tempo em
que Vera Lagoa era sua directora, já lá vão anos. E o
que me espanta é que, por parte das forças políticas
com representação na Assembleia da República, nunca se
tenha verificado um gesto que indiciasse que, porque o
feriado é nacional e permanece como tal no regime
democrático, o dia deveria ser festivo para todos os
portugueses. É óbvio que não me refiro a manifestações
chauvinistas que pudessem pôr em causa o bom
relacionamento com os nossos hermanos espanhóis,
quanto mais não fosse, pelo ensinamento do ditado
popular: Quem é o teu irmão? O vizinho mais à mão.
Sempre é o vizinho que, nos momentos de aflição, mais
depressa nos pode valer. Pelo menos era assim nas
comunidades onde terá nascido o provérbio.
Interrogo-me, pois, acerca de tais comportamentos e
passeio pela História na tentativa de encontrar uma
justificação. E que verifico? Verifico que o ideal da
União Ibérica remonta a tempos muito remotos, sendo
que, até ao séc. XV, Castela desempenhou o papel de
actor principal, isto é, tomou a iniciativa de tudo
fazer que pudesse contribuir para a união da
península, tendo-se, depois, invertido os papéis, de
tal modo que, durante o séc. XVI, proliferaram os
laços matrimoniais entre as famílias reais portuguesa
e castelhana. Assim, por exemplo, o imperador Carlos V
(I de Espanha) casou com Isabel, filha primogénita de
D. Manuel I, sendo que, pela mesma época, D. João III
desposava a irmã mais nova do imperador, Catarina.
Anos atrás, já D. Manuel se casara sucessivamente com
três princesas espanholas, vindo então Filipe II a
casar com D. Maria, filha de D. João III, enquanto a
irmã do rei de Castela, Joana, o fazia com o príncipe
D. João, herdeiro do trono português, de cujo
matrimónio resultou um único filho, o que haveria de
contribuir para a nossa perdição, D. Sebastião.
Pelos vistos, o sonho da reconstituição da antiga
Hispânia ? a Hispânia pagã dos Romanos, a Hispânia
cristã do Baixo Império ou do Reino Visigodo,
unificada pela última vez sob a ocupação árabe ?
parecia ser alimentado de ambos os lados da fronteira,
pelo que não espanta que, depois do desastre de
Alcácer Quibir e da penúria em que o país ficou, e
considerando ainda a dependência de Portugal em
relação a Castela (por causa da prata proveniente do
México e do Perú) e os inimigos comuns, em número
crescente e actividade diversa (a pirataria, por
exemplo, prejudicava a navegação de ambos os países),
houvesse adeptos fervorosos da mesma união.
Além disso, também para a grande burguesia, a União
Ibérica era a possibilidade do fortalecimento e da
consolidação do sistema financeiro do Estado, o que,
por inerência, significava uma melhor protecção e uma
defesa mais eficiente, fosse onde fosse, significando,
de igual modo, a abertura de novos mercados e a
supressão das barreiras alfandegárias. Por
conseguinte, se outras razões não existissem, as de
ordem externa justificariam a condição de Espanha e
Portugal como aliados naturais.
O que acontece é que também factores de ordem cultural
facilitavam a união, já que inúmeros homens de letras
deram largas à sua arte, fazendo uso tanto do
português como do castelhano, contribuindo, desta
forma, para uma cultura marcadamente bilingue, pecado
a que não escaparam autores como Gil Vicente e até
Camões. Por isso, António Ferreira, o autor da
tragédia Castro, sentiu a necessidade de sair a
terreiro em defesa da língua pátria: «... Renova mil
memórias / Língua aos teus esquecida, / Ou por falta
de amor ou falta de arte / Sê para sempre lida / Nas
Portuguesas Glórias... / Mas inda em alguma parte, /
Ah Ferreira, dirão, da língua amigo!» [1].
Por outro lado, União Ibérica não significava perda de
identidade, se considerarmos que Filipe II se limitou
a repetir, em relação a Portugal, o que seu avô, D.
Manuel, fizera em relação a Espanha em 1499: vinte e
cinco capítulos, assinados pelo rei castelhano nas
cortes de Tomar, garantiam ao País uma autonomia
alargada, ainda que a política externa passasse a ser
comum a ambos os países. A administração ficou
inteiramente nas mãos dos portugueses, não podendo
nenhum espanhol ser nomeado para cargos de
administração, civil ou eclesiástica, de justiça ou de
defesa. Vice-reis ou governadores só poderiam ser
espanhóis quando pertencessem à família real (filhos,
irmãos ou sobrinhos). Quanto a matéria legal, qualquer
inovação ou alteração tinha de resultar de decisão
tomada em cortes, reunidas em Portugal e em que só
portugueses participassem. Por outro lado, o Império
Ultramarino continuava a ser governado exclusivamente
por portugueses, de acordo com as leis e regulamentos
existentes. O Português permanecia como língua oficial
e a moeda continuava separada, bem como as receitas e
as despesas públicas. Não menos importante o facto de
o rei não poder conceder terras nem rendas em Portugal
a não ser a súbditos portugueses, assegurando a casa
real a ausência de discriminação contra os
portugueses.
Não admira, pois, que a nação aceitasse menos mal,
durante várias décadas, a perda da independência, ao
ponto das várias tentativas oposicionistas do Prior do
Crato depararem com a indiferença geral e o escasso
apoio da população. Nos primeiros quarenta anos do
domínio filipino, a união das coroas permitiu vencer a
crise financeira em que Alcácer Quibir e a conjuntura
de então haviam lançado a nobreza portuguesa.
A situação viria a alterar-se significativamente nos
reinados de Filipe III e Filipe IV, o que facilitou o
ressurgimento dum sentimento nacionalista, o
Sebastianismo, para o que muito haviam contribuído as
professias do Bandarra, um sapateiro de Trancoso que
vivera no tempo de D. João III, e que anunciavam a
vinda de um rei «encoberto», redentor da humanidade.
As várias frentes de batalha em que se encontrava
envolvida Castela, nomeadamente, a Guerra dos Trinta
Anos e, em território interno, a Catalunha, obrigavam
a uma cada vez mais feroz cobrança de impostos,
sacrificando o povo, ao mesmo tempo que, por
necessidade de contracção de empréstimos, a corte
castelhana concedia benefícios excepcionais aos
cristãos-novos, o que não era visto com bons olhos por
parte da população. Não admira, pois, os sucessivos
levantamentos populares, de que se destacaram as
«Alterações de Évora» em 1637.
Neste contexto, astuto, o duque de Olivares,
primeiro-ministro de Castela, oferecia aos nobres de
Portugal campos de serviço por essa Europa fora, onde
quer que a Espanha estivesse envolvida em guerra,
afastando-os do seu país e evitando, deste modo, que
este pudesse continuar dotado de camadas dirigentes.
Em 1640, os portugueses, uma vez mais, encontravam-se
divididos, tal como já acontecera em 1580 (a História
das nações faz-se sempre de um jogo de oposições) . Se
as classes de condição inferior conservavam intacta a
fé nacionalista e apoiavam D. João IV, já a nobreza,
muita com laços familiares em Espanha, hesitou e só
uma pequena parte dela alinhou firmemente com o duque
de Bragança.
Por seu turno, também o clero se achava dividido.
Membros do clero secular local e monges humildes
apoiavam o duque de Bragança, mas, no seio das altas
hierarquias, já o panorama se apresentava muito
diferente. Os Jesuítas, por exemplo, deram o seu apoio
a D. João IV, mas a Inquisição manteve-se favorável a
Espanha, posição compreensível se considerarmos que
fora aquela quem praticamente governara Portugal
durante a União Ibérica, não se limitando a sua
actividade à mera censura religiosa. Também exerceu um
papel preponderante no que respeita à censura política
e à repressão da expressão do sentimento patriótico.
Por isso, o patriotismo, entre a gente culta,
revelava-se através da leitura de obras de carácter
nacional. Uma das formas menos arriscadas de se ser
patriota era ler Os Lusíadas, uma obra de exaltação
nacional, que, entre 1580 e 1640, viu a sua edição
repetir-se por vinte e quatro vezes. Não foi por mero
acaso que Almeida Garrett, no Frei Luís de Sousa,
colocou Madalena, no início do primeiro acto, a ler Os
Lusíadas, independentemente da simbologia do momento
da leitura se encontrar no episódio de Inês de Castro.
A memória do passado era a chama alentadora do
presente.
Face ao exposto, continuo sem perceber por que é que a
direita mais à direita se há-de assenhorear desta
efeméride nacional.
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1 - António Ferreira, Ode I.
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