* Existencialismo,
segundo Sartre
|
Alberto Soares
Narrador distanciado dos
acontecimentos da diegese
- Um ser à descoberta da
face última das coisas e da sua própria verdade
perfeita,
sentindo-se, no entanto, impotente perante a
inacessibilidade do que busca;
- Um ser profundamente
angustiado, agitando-se entre a ideia de Deus em que
não acredita e a corrente filosófica do
Existencialismo que advoga;
- Não concebe uma pessoa
dissociada do seu próprio nome[4];
- Um ser, desde a infância,
interessado pelas leituras, pela invenção do
indizível e pelos versos que a cantavam, e pela
descoberta de si próprio;
é natural que um perfil assim provocasse um certo
isolamento propício à reflexão, o que justificaria o
facto de seu irmão Evaristo o tratar por «monge»;
- Um ser para quem a arte
(no seu caso, poética) não era uma manifestação
fútil e fortuita;
- Uma personagem com um
único e verdadeiro problema a resolver: a morte;
- Um escritor para quem a
escrita é uma espécie de exorcismo[9];
- No final, um ser
aparentemente apaziguado e rendido à evidência da
sua condição;
no entanto, salvaguardando diferente interpretação,
sem ter resolvido, em definitivo, a sua eterna
angústia,
por isso se refugiando na «memória de uma inocência
de outrora e para sempre reinventada em música»
(Cristina),
e na presença da mulher que o procura e lhe toma as
mãos em profunda comunhão,
comunhão que sempre procurou, conforme se pode
constatar através da nota 26, e que fora anunciada
no início da obra, no final do capítulo que funciona
como uma espécie de Preâmbulo.
Personagem da diegese
- Uma pessoa com um problema
«metafísico» a resolver
- Um ser angustiado pela
redescoberta da morte;
- Uma pessoa a
quem a atitude existencialista não proporciona a
necessária paz de espírito;
- Professor com «projetos
tão ingénuos»,
mas com a preocupação de inovação a nível didático;
- Autor de dois livros de
poemas sobre a essência de Deus;
- Alguém que se emociona com
a música, que entende como um dom de revelação,
sobretudo a que era executada por Cristina;
- Um ser desiludido que não
acredita em Deus (Deus apenas residirá no nosso
imaginário);
- Uma personagem persuadida
de que tinha uma missão a executar, uma mensagem a
transmitir,
como se fosse o novo Messias destruidor de mitos
inventados
(na perspetiva de Ana, não passava de um
pantomineiro,
de um impostor,
de um papagaio orgulhoso e ridículo),
evidenciando,
no
entanto, uma necessidade de comunhão em relação ao
seu problema;
- O professor conta aos
alunos a experiência da aparição de si a si próprio;
- Um humanista que não se
interessa apenas pelas necessidades materiais do
homem;
- Uma pessoa para quem a
vida é uma selva de caminhos onde é fácil
perdermo-nos,
provavelmente a razão por que continua a procurar a
sua evidência;
- Materialista e humanista;
- Um ser angustiado ainda à
procura de algo que lhe confira tranquilidade,
incessantemente à procura da aparição:
afinal, tinha uma verdade ou apenas uma dúvida?;
a dúvida parece permanecer, o problema parece
insolúvel
- Obsessivo, não ama
ninguém, apenas a sua violência;
- Um ser que se sentia
excluído da verdade e da harmonia natural,
só queria soluções para toda a idade da vida, uma
certeza assumida, assimilada, para a ameaça da morte;
- Alguém que entende que o
homem deve construir o seu reino, onde a morte não
deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a
tê-la contra os homens;
no entanto, não sabe como consegui-lo (o problema
subsiste sem solução),
elegendo como uma espécie de redenção a música de
Cristina.
topo
Sofia
Retrato
Físico
- Corpo esguio,
intenso e maleável,
de seios agressivos;
- Olhos vivos;
- De uma beleza demoníaca,
como de perdição ou de pecado.
Retrato
Psicológico
- Faz versos;
- Com olhar ácido de pecado,
olhar ilícito e inocente;
- Com um canto ardente,
iluminado de loucura;
- Com o mistério da
vitória e do desastre, da violência do sangue
(indício proléptico e premonitório);
- Com uma forma estranha de
olhar o professor (Dr. Alberto Soares),
mas com olhos lúcidos;
- Irreverente e insubmissa;
- Sempre uma «criança
difícil»,
com tendência sadomasoquista
e propensão para o suicídio,
suicídio tentado mesmo em adulta, depois de ter
conhecido o Dr. Alberto Soares;
- Preferia o absoluto da
destruição;
- Conhecedora já da grande
notícia de que o Dr. Alberto Soares se dizia
portador,
numa atitude epicurista, tinha por filosofia de vida
o carpe diem (goza o dia de hoje: “a
vida é curta, por isso devemos aproveitá-la
enquanto pudermos”, Horácio, Odes, 1,
11, 8);
- Unida secretamente a
Carolino (Bexiguinha);
- Gosta de dominar uma
inocência;
- Autora da carta anónima
dirigida ao reitor, evidenciando que não olha a
meios para atingir os fins.
topo
Ana
Retrato Físico
- Magra, de cabelos longos e
olhar vivo (grandes olhos de fogo) ,
um dente saído conferia alguma irregularidade ao
lábio superior, conferindo-lhe uma graça infantil;
- Não podia ter filhos.
Retrato Psicológico
Antes da morte de Cristina
- Com a violência de um
convertido em crise;
- Leitora atenta dos dois
livros de Alberto Soares, confronta-o a partir do
conteúdo dos mesmos;
- Com os seus problemas com
os deuses definitivamente resolvidos, confronta-se,
uma vez mais, com Alberto Soares, dispensando a
mensagem messiânica de que se julga portador;
- Com um olhar enigmático,
esfíngico;
- Com uma calma habitual,
provavelmente aparente, pois seria uma calma com uma
tensão pronta a explodir;
- Além de provocadora, tenta
humilhar Alberto Soares;
- Com a força da sua
naturalidade, restabelece tudo em verdade corrente;
- Simuladora de uma
cumplicidade, em ralação a Alberto Soares, sem razão.
Depois da morte de
Cristina
- Encontra a pacificação do
seu espírito, passando a acreditar na existência de
uma grandeza face à pequenez do homem, sem, contudo,
saber que nome lhe atribuir;
- Coma a adoção dos filhos
do Bailote, alcança a felicidade,
facto que é interpretado por Sofia como uma cobardia;
- Crente, embora ainda não
apóstola, parece ter encontrado, definitivamente, a
paz que procurava.
topo
Bexiguinha
(Carolino, primo de Chico)
- Apresentação sumária da
personagem e da sua alcunha;
- Atento, desde o início, à
mensagem do professor;
- Também já tinha pensado no
problema que transportava o professor, manifestando,
no entanto, uma inquietante separação de si, ou para
um encontro lúcido consigo ou para uma união de
loucura;
- Já fizera uma outra
experiência: mastigar as palavras;
- Pensa ter compreendido
tudo o que o professor queria dizer;
- Afinal, o Bexiguinha
não tinha ideias, era louco;
- Na sua loucura, conclui
que o homem é deus porque pode matar, pode destruir;
- A sua postura deixa
transparecer uma cumplicidade com Sofia;
- Existia, de facto uma
união secreta entre Sofia e Carolino;
- Revela-se sinistro e
hostil em relação ao professor;
- Tenta matar Alberto
Soares, o «seu» rival;
- Assassina
Sofia.
topo
Alberto Soares
[1] «Tento, há quantos
anos, vencer a dureza dos dias, das ideias
solidificadas, a espessura dos hábitos,
que me constrange e tranquiliza. Tento
descobrir a face última das coisas e ler
aí a minha verdade perfeita.», p. 9;
[2] «Mas tudo esquece tão
cedo, tudo é tão cedo inacessível.», p. 9;
[3] «Eu
te odeio, meu irmão das palavras que já
sabes um vocábulo para este alarme de
vísceras e dormes depois tranquilo e me
apontas a cartilha onde tudo já vinha
escrito...», p. 10;
«E
eu te digo que nada estava ainda escrito,
porque é novo e fugaz e invenção de cada
hora o que nos vibra nos ossos e nos
escorre de suor quando se ergue à nossa
face.», p. 10;
«Quanta
coisa aprendi e sei e está aí à
minha disposição quando dela
preciso. Mas esta simples verdade de
que estou vivo, me habito em
evidência, me sinto como um absoluto
divino, esta certeza fulgurante de
que ilumino o mundo, de que há uma
força que me vem de dentro, me
implanta na vida necessariamente,
esta totalização de mim a mim
próprio que me não deixa ver os meus
olhos, pensar o meu pensamento,
porque ela é esses meus olhos e esse
meu pensamento, esta verdade que me
queima quando vejo o absurdo da
morte...», p. 10;
«Conto
tudo, como disse, à distância de
alguns anos. [...] Mas os elos de
ligação entre os factos que narro é
como se se diluíssem num fumo de
neblina e ficassem só audíveis, como
gritos, que todavia se respondem na
unidade de que sou, os ecos
angustiantes desses factos em si -
padrões de uma viagem que já mal
sei.», p. 24;
[4]
«Não
sei
que pacto se estabelece entre a
pessoa quer somos e o nome que nos
deram: o nome, como o corpo, é nós
também.», p. 20;
[5]
«Sim.
Havia o meu interesse pelas leituras, a
invenção do indizível e o meu verso
clandestino que a cantava. [...] Havia
enfim, desde a infância, essa velha
pergunta sobre a descoberta de nós
próprios e que eu também fizera um dia a
meu pai:
-
Quem sou eu?
[...]
-
Bom - disse meu pai, um pouco perturbado:
- tu és meu filho, um homem, um ser vivo
que pensa, que vive e que há de morrer
como todo o ser vivo.
-
Mas eu, eu
o que é que sou?»,
p. 25;
[6]
«
- O monge? Onde é que está o monge?
O
monge sou eu.», pp. 16/17;
[7]
«Mas
a arte não era para mim um mundo da letra
impressa, uma estúpida invenção de
passatempo ou de vaidade: era uma comunhão
com a evidência, uma reencarnação na
verdade de origens [...]», pp. 36/37;
[8]
«Portanto,
eu
tinha um problema: justificar a vida em
face da inverosimilhança da morte. E nunca
mais até hoje eu soube inventar outro.»,
p. 49;
«E
todavia eu sei
que «isto» nasceu para o silêncio sem
fim...», p. 50;
[9]
«Não
escrevo para ninguém, talvez, talvez: e
escreverei sequer para mim? O que me
arrasta ao longo destas noites, que, tal
como esse outrora de que falo, se aquietam
já em deserto, o que me excita a escrever
é o desejo de perseguir o alarme que me
violentou e ver-me através dele e vê-lo de
novo em mim, revelá-lo na própria posse ,
que é recuperá-lo pela evidência da arte.
Escrevo para ser, escrevo para segurar nas
minhas mãos inábeis o que fulgurou e
morreu.», p. 193;
[10]
«Sento-me
aqui
nesta sala vazia e relembro. [...] É bom
estar aqui, neste abandono, todo aberto a
estas vozes de indício, a este trémulo
aviso de uma verdade primordial. Instante
perfeito da totalidade presente,
aureolando tudo o que me é degradação...
Dou a face inteira à inundação da lua, que
me escorre por este corpo perecível, o
trespassa do seu fluido de eternidade, o
transmigra ao país da legenda. Um grande
halo de grandes olhos abertos suspende-se
raiado à anunciação da evidência. Sei e
não temo [...] Sei, não talvez como quem
conquistou mas como quem se despoja: a
minha verdade é o que me sobeja de tudo.
[...] O meu futuro é este instante
desértico e apaziguado. [...] a vida do
homem é cada instante [...] O tempo não
passa por mim: é de mim que ele parte, sou
eu sendo, vibrando. [...] - neste instante
fugidio e apaziguado eu me esqueço à
quietude desta lua irreal [...]», pp.
272/273;
[11]
«Quantos
anos ainda me espera? Que caminhos
desertos ou de estalagens à espera? [...]
Como imaginar o futuro? [...] O que sonho
mal é um sonho; porque o espero
violentamente, o desejo na experiência do
meu corpo, das minhas vísceras - como deve
ser realizável o pão à fome de quem nunca
o teve. Mas dos desvarios que o meu aviso
suscita como um erro de cálculo ou de
manobra, da secura mecânica das horas que
o esqueceram na execução dos gestos, do
terror dos longos dias até ao repouso
final a que aspiro, da própria angústia
que me torce à evidência da minha condição
[...]»,
pp. 272/273;
[12]
« - neste
instante fugidio e apaziguado eu me
esqueço à quietude desta lua irreal sobre
a terra realizada em dádiva e fertilidade,
à memória de uma inocência de outrora e
para sempre reinventada em música a
uma hora gravada de cansaço entre uns
dedos indefesos e uns cabelos louros...»,
p. 273;
[13]
«...eu
me esqueço ainda, ao anúncio de alguém
numa porta que se abre, e que me procura e
me toma as mãos e as molda, à luz da lua,
na flor breve e miraculosa de uma profunda
comunhão...»,
p. 273;
[14]
«Tomo
as suas mãos nas minhas e no
deslumbramento da noite abre-se,
angustiada, a flor da comunhão...»,
p. 12;
[15]
«Amigos
de Coimbra chamavam-me velho, cobarde,
decadente, só porque eu tinha agora um
problema de vida-morte, um problema
«metafísico» a resolver.», p. 105;
[16]
«Mas a angústia
que me habita, a violenta redescoberta da
morte, que eu acabo de fazer [...] Venho de
luto, o meu pai morreu.», p. 14;
«Então
bruscamente ataca-me todo o corpo, as
vísceras, a garganta, o absurdo negro, o
absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança
da morte. Como é possível? Onde a realidade
profunda da tua pessoa, meu velho? Onde, não
os teus olhos, mas o teu olhar?, não a tua
boca, mas o espírito que a vivia?», p. 45;
«Com
efeito, nas súbitas arcadas que levam à
Praça, abre-se-me um obscuro labirinto onde
julgo repercutirem-se, como ecos de uma
gruta, os ecos do tempo e da morte.», p. 14;
«Então
bruscamente ataca-me todo o corpo, as
vísceras, a garganta, o absurdo negro, o
absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança
da morte. Como é possível? Onde a realidade
profunda da tua pessoa, meu velho? Onde, não
os teus olhos, mas o teu olhar?, não a tua
boca, mas o espírito que a vivia?», p. 45;
«
Que pretendia eu? [...] Não o dissera já a
Ana? Adequar a vida (que é um pleno de ser,
um absoluto, uma positividade necessária)
com a morte (que é uma nulidade integral,
uma pura ausência, um nada-nada).», p.109;
«Interrogo-me,
porque a morte é um muro sem portas.», p.
110;
[17]
«E todavia,
pesa-me como uma pata de violência a
realidade da pessoa que somos. Há muita
coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa
ainda a morrer. Mas por enquanto está viva.
Por enquanto sinto a evidência de que sou eu
que me habito, de que vivo,
de que sou uma entidade, uma presença total,
uma necessidade do que existe, porque só há
eu a existir, porque eu estou aqui, arre!,
estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem
fim, só atividade, só estar sendo, EU, esta
obscura e incandescente e fascinante e
terrível presença que está atrás de tudo o
que digo e faço e vejo - e onde se perde e
esquece. EU! Ora este «eu» é para morrer.
Morre como a intimidade de uma casa
derrubada. Sei-o com a certeza do meu
equilíbrio interior. Mas como é possível?
Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o
seu espírito, a sua evidência.», p. 47;
[18]
«Entrei,
cumprimentei, disse o meu nome:
-
Alberto Soares.
-
Doutor Alberto Soares. O novo professor do
primeiro grupo. Professor efetivo. Em que
Liceu esteve este ano? Mas sente-se. Tem aí
essa cadeira.
Sentei-me.
Tinha
feito apenas o serviço de exames desse ano.
Em Coimbra.
-
É portanto o primeiro liceu em que ensino -
acrescentei.
De
que nadas a vida se sustenta! [...] Porque
eu tinha projetos tão ingénuos. [...] pus-me
a falar de coisas extraordinárias a
realizar, excitado no meu entusiasmo de
principiante. Exercícios, redações, técnicas
modernas de pedagogia, leituras de modernos
escritores, cultura, cultura. Também disse,
é verdade, como era necessário aprender a
distinguir um fado de uma sinfonia, um
Picasso de um calendário. Bons deuses!», pp.
27, 28; p.
25;
[19]
«Eu
inventava assim técnicas novas ou julgava
que inventava.», p. 115;
[20]
«-
Li dois livros seus - disse-me ela [Ana]. -
Publicou mais algum?
Não,
não publicara, disse eu, centrado na atenção
de todos.
-
Que se passou em si do primeiro para o
segundo? Dir-se-ia que o seu deus
ressuscitou também no terceiro dia.», p. 37;
«
- Há uns versos no seu livro que me
intrigam. Dizem assim, mais ou menos:
Do
sangue nascem os deuses
Que
as religiões assassinam.
Ao
sangue os deuses regressam
E
só aí são eternos.»,
p. 38;
[21]
«E
então eu vi, eu vi
abrir-se à nossa frente o dom da revelação.
Que eram, pois, todas as nossas conversas, a
nossa alegria de taças e cigarros, diante
daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro
e inextinguível, tudo quanto se realizava em
grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza
e interrogação, perfeito e sem excesso,
começava e acabava ali, entre as mãos
indefesas de uma criança. Mas tão forte era
o peso disso tudo, tão necessário que nada
disso se perdesse, que as mãos de Cristina
se estorciam na distância das teclas, as
pernas na distância dos pedais e toda a sua
face gentil, até agora impessoal e só de
infância, se gravava de arrepio à passagem
do mistério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach,
Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao
pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria
emoção. Apertas ligeira a boca, pões uma
rugazinha na testa, estremeces brevemente a
cabeleira loura com o teu laço vermelho. E
de ver assim presente a uma inocência o
mundo do prodígio e da grandeza, de ver que
uma criança era bastante para erguer o mundo
nas mãos e que alguma coisa, no entanto, a
transcendia, abusava
dela como de uma vítima, angustiava-me quase
até às lágrimas.», pp. 40/41;
[22]
«Mas
o jantar acabava e fomos tomar café para
outra sala. Madame
teve tempo ainda de me perguntar:
-
Desculpe: mas não é então crente?
-
Decerto que não, minha senhora.
-
Ah, estes jovens de hoje, estes terríveis
jovens...»
«
A verdade aparece e desaparece. Deus, a
imortalidade e uma ideologia política e a
sedução de uma mulher - onde começam?, onde
findam? Sou um indizível equilíbrio
interior. Vivi, agi, toquei com as mãos
tanta ilusão consistente. Depois a ilusão
desfez-se. Ficou, porém, o rasto do que
toquei, o gesto das minhas mãos - essa
última união com o que quis, acreditei.
Então eu descobri que as mãos estavam
impuras. Lavar-me, renascer. Deus está morto
porque
sim.
[...] Foi porque Deus se me gastou. Sei só
que não está certo que ele viva. Sei que ele
é absurdo porque
o
é.
Sei que esle está morto, porque não cabe na
harmonia do que sou. Não cabe.», pp. 46/47;
«
«Afinal,
Deus não existe.» Não existia mesmo. Era evidente,
natural, claro, como era claro não haver Pai
Natal.», p. 98;
«Deus
morreu, Deus não é a minha meta, é o meu
ponto de partida.», p 102;
[23]
«Tinha
uma missão a executar, uma extraordinária
notícia a transmitir. Precisava urgentemente
de fazer a conferência, de revolucionar o
mundo. Porque o mundo aparecia-me sob a
forma de uma absurda estupidez. Era
necessário que todos os homens vivessem em
estado de lucidez, se libertassem das
pedras, chegassem ao milagre de ver.
Era absolutamente necessário que a vida se
iluminasse na evidência da morte. Viriam a
chamar-me «mórbido», «doentio». Porquê? Mais
real do que o nascer era o morrer. Porque
quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o
universo, é a pura necessidade de ser. Um
homem só é perfeito, só se realiza até aos
seus limites, depois de a morte o não poder
surpreender. Não porque a tivesse decorado
como um gato-pingado, não porque a
tivesse esquecido, mas por tê-la
incorporado na plenitude da vida. Sabia bem
quanto era difícil já não digo esta
aceitação esclarecida mas até o ver
o problema, sofrer o impacto da sua
fulgurante aparição. Eu próprio quantas
vezes o esqueço! [...]
Mas
agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o
Chico na sua repartição.», pp. 63/64;
[24]
«Ah,
como te torces dentro de ti [Ana]! Também tu
então nada sabias de ti! Também eu te trouxe
a notícia das trevas onde hás de acender a
nova luz. Céus! Mas então eu fui necessário!
Todo um mundo duvidoso esperava o novo
Messias! Sofre, amiga! Trago comigo a
destruição dos mitos que inventaste...», p.
95;
[25]
« - Porque é
você tão pantomineiro?
[...]
-
Porque me chama «pantomineiro»?
-
Tudo comédia, tudo comédia. Deus vive no seu
sangue como um vício. Deixar de beber, de
fumar. Mas o seu mundo é o do ópio e do
álcool.», pp. 99/100;
[26]
«
- Distrair... Que medo você tem de se
distrair. Mas quem quer
não é. Não é santo quem quer. Nunca pensou
que era um impostor?
-
Até os grandes o hão de ter pensado, Ana.
Mas só há impostura quando há público. E o
que eu procuro é ser público de mim
próprio.», p. 184;
[27]
«
- Há de estremecer sempre. Até reconhecer
que lhe não pertence. Não a inventou você.
Deram-lha, veio-lhe de outrem.
E você esquece que está a repeti-la como se
lha não tivessem dado. Papagaios orgulhosos
e ridículos, empoleirados na sua pobre
suficiência...», p. 228;
[28]
«Eu
estava numa situação de inferioridade e o
que desejava não era uma tolerância mas uma
comunhão.», p. 65;
[29]
«
- Há uma outra experiência - disse eu. - Uma
vez, quando era miúdo... [...]
Mas
no outro dia, assim que me levantei,
coloquei-me no sítio donde me vira ao
espelho e olhei. Diante de mim estava uma
pessoa
que me fitava com uma inteira
individualidade que vivesse em mim e eu
ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de
perto. E vi, vi os olhos, a face desse
alguém que me habitava, que
me era
e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu
tinha o alarme dessa viva realidade que era
eu, desse ser vivo que até então vivera
comigo na absoluta indiferença de apenas ser
e em que agora descobria qualquer coisa mais,
que me excedia e me metia medo. Quantas
vezes mais tarde eu repetiria a experiência
no desejo de fixar essa aparição fulminante
de mim a mim próprio, essa entidade
misteriosa que eu era e agora absolutamente
se me anunciava.», pp. 68/70;
[30]
«Chico
endireitou-se, fez peito. [...]
- A única verdade a conquistar é a
de que todos os homens têm direito a comer.
- Quando é que afirmei que o homem
deve passar fome? Mas, se em todas as épocas
se tivesse só pensado na melhoria económica,
hoje não seríamos homens: seríamos apenas
máquinas. O meu humanismo não quer apenas um
bocado de pão; quer uma consciência e uma
plenitude.», p. 71;
[31]
«Fixar
uma vida em torno de uma ideia, de um
sentimento, como é difícil! [...] a vida
imediata, quotidiana, é uma selva de
caminhos, de veredas, de confusa vegetação.
Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém,
é que na sua rede muitas vezes não sentimos
que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos
na sua presença imediata. Um caminho é «o»
caminho em cada instante que passa.», p.91;
[32]
«Não,
não quero suicidar-me. Quero achar a
evidência que procuro, estabelecer nela a
minha vida em plenitude.», p. 102;
[33]
«
- Sou materialista! - disse eu.
[...]
-
Mas o meu materialismo não é o de um
pedreiro.
[...]
O
sonho, o alarme, o mistério, a presença de
nós a nós próprios, a interrogação, o mundo
submerso da nossa intimidade - tudo era vida
real, da matéria de que eram feitas as
pedras e os cardos. Sim, os deuses tinham
habitado tudo isso. Mas os deuses estavam
mortos. Mortos sem discussão. Mortos-mortos.
[...]
- É exatamente porque sou
materialista que esse mundo me intriga. Se
tivesse deuses para lhes recambiar estes
seus bens não me interrogava duas vezes.
Interrogo-me, porque a morte é um muro sem
portas.»;
«
- Essa é a base última de um verdadeiro
humanismo: instalar o homem mesmo nos
aposentos divinos.», pp. 109/110;
[34]
« - Terás tu...
Terás tu achado o que procuro? ...essa
superação de todas as angústias, de todas as
dúvidas? Terás tu visto o absurdo e o
milagre, e ficado tranquilo?
-
Não sei o que queres dizer. Mas tenho a
certeza de que não achei o que procuras.
Porque, se tu procuras, só tu podes achar.»,
p 146;
[35]
«Fecho o álbum,
acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo
a linha azul do horizonte que se desvanece
na tarde. Penso, penso. Não, não penso:
procuro. Outra vez, outra vez. Não, não
quero «saber», sei já há tanto tempo... Mas
nenhum saber conserva a força que estala no
que é aparição. Porque o escrevo de novo? A
verdade é que nada mais me importa. E,
todavia, um estranho absurdo me ameaça:
quero saber, ter, e uma aparição não se tem,
porque não seria aparecer, seria estar,
seria petrificar-se. Queria que a evidência
me ficasse fulminante, aguda, com a sua
sufocação, e aí, na angústia, eu criasse a
minha vida, a reformasse. [...] Quem é fiel
a uma certeza e a pode ver
quando lhe apetece? [...] Em que iluminação
eu acredito quando falo em nome dela e a
imponho a Ana, aos outros? Falo de cor - a
iluminação é então a minha noite de
secura.», pp. 192/193;
[36]
«Não tinha medo
e, todavia... Tinha eu afinal uma verdade e
não apenas uma dúvida?», p. 231;
[37]
«Que
esperas tu da vida? Vê como os teus sonhos se
resolvem nos outros em... Mas são atos
definitivos, não se iludem, não se iludem.
Duvidar é cómodo, interrogar-se é cómodo.»
«Sei o que quero, sei o que sonho.» «Que fazes
para o atingir?» [...] «Que fazes para o
atingir?» «Não sei, não sei. Reconheço-me na
evidência última da minha condição - saber é
já conquistar. Mil razões e factos me
trabalham a saúde e um dia vejo-me
doente. Mil remédios me trabalham a doença e
um dia reconheço-me saudável.» «Toma o teu
remédio, doente. Toma o teu remédio.» «Qual
remédio? Não o sei. Como quem se despe de
todos os artifícios, eis-me nu à minha
frente. A vida é curta - tanto tempo só para
isto, para me desnudar. Um dia virão os
mensageiros da Grande Reconquista, agora é
cedo, a vida é curta. Um dia virão os
arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros
nus do homem a verdade da alegria. Ou a
própria terra e o próprio sol inventarão à
nudez o calor vindo do sangue.» [...]
«Que
fazes para atingir o teu sonho?» «Não o sei.
Um dia virão os núncios da Grande
Reconquista. Quando for a hora para isso.»
[...]
«Que
ilusão! A busca indefinida é do destino do
homem.» «Sim. Mas outra
busca, depois desta.
A minha procura é a primeira, a que está
antes de todas, a que encontre para este
corpo mortal, esta luz vivíssima e mortal, o
seu lugar ignorado num universo que se
cumpre, com ventos e águas e serras e
desertos e planetas e Vénus e Marte e
estrelas, Antares, Deneb, Altair - meu velho
pai - e galáxias e milhões de anos-luz e o
infinito que submerge e aturde.»; pp.
238/240;
[38]
«Não amo
ninguém, não amo ninguém: amo a minha
violência.», p. 163;
[39]
«Uma verdade
natural, uma harmonia natural trespassava
toda a terra, os campos, as árvores, Ana, as
crianças. Mas eu estava de fora...», p. 253;
[40]
«Sentia,
sabia que era um logro decidir-se para a
vida sem ter-se em conta a doença, a morte.
Um homem não se limita a dois braços fortes
erguidos. Um homem limita-se em toda a sua
condição. Se as ideias de um doente são
ideias doentes,
porque serão decisivas as ideias com saúde,
se a saúde é uma contingência, um estado
passageiro? As ideias saudáveis também são
débeis: elas pertencem ao acaso do vigor.
Poder-se-ia pois responder a quem as expõe
que a sua exatidão depende apenas de uma
frescura ocasional do sangue: o seu rigor é
contingente... Mas eu queria soluções para
toda a idade da vida, eu queria uma certeza
assumida, assimilada, para a ameaça da
morte. Eu queria que a desgraça da nossa
condição nos não trouxesse surpresas...
[...]
-
Portanto - declarei - a exatidão de uma
ideia não é uma exatidão em si. Portanto,
toda a razão é «irracional.» Sei-o há
muito.», pp. 260/261;
[41]
«Mas
o que sei é que o homem deve construir o
seu reino, achar o seu lugar na verdade da
vida, da terra, dos astros, o que sei é
que a morte não deve ter razão contra a
vida nem os deuses voltar a tê-la contra
os homens, o que sei é que esta evidência
inicial nos espera no fim de todas as
conquistas para que o ciclo se feche
- o ciclo, a viagem mais perfeita.»,
pp. 269/270;
[42]
«Não me
pergunteis como consegui-lo, não me
pergunteis. O que é evidente
aparece.»,
p. 270;
[43]
«talvez
a tua música, Cristina, ajude a mover as
pedras; como certa lira de outrora... Eu a
sonho, pelo menos, como o ar respirável de
um dia, aberto às alturas de um triunfo
apaziguado, como a alegria dominadora e
sem tumulto de quem chega ao alto duma
montanha...»,
p. 270;
Sofia
[44]
«Sofia.
À
luz do meu inverno, eis que te lembro no teu
corpo esguio...», p. 33;
[45]
«Até que [...] apareceu Sofia. Tinha
um vestido branco, colado como borracha, e um
corpo intenso e maleável. Uma forte
adstringência apertava-a contra si,
endurecia-lhe o boleado das curvas como duas
maxilas cerradas. A cinta fechada
disparava-lhe os seios, uma luz inquieta
iluminava-lhe os olhos.», pp. 35/36;
[46]
«Por isso se vestia em perfeição,
destra e aguda, disparada desde os saltos aos
seios agressivos, aos olhos retos e lúcidos.»,
p. 54;
[47]
«Os teus olhos vivos, Sofia...», p.
33;
[48]
«Calou-se enfim. Uma beleza
demoníaca, como de uma criança assassina,
fulgurava-lhe nos olhos líquidos, na face
branca, na boca ávida e sangrenta.», pp.
85/86;
[49]
«Oh, Sofia é tão bela, Ana. Como
evitá-lo sempre? Bela como a perdição, como
todo o pecado.», p. 253;
[50]
«A minha Sofia, que também faz
versos...», p. 33;
[51]
«Sofia. À luz do meu inverno, eis que
te lembro no teu corpo esguio, no teu olhar
ácido de pecado...», p. 33;
[52]
«De novo se me erguia, fascinante, no
seu corpo selado de luto, nas suas mãos
agudas, de gestos oblíquos, no seu olhar
ilícito e inocente.», p. 84;
[53]
«E tu voltada para o céu, cantando,
cantando:
Ai...
Ai, ai, ai, ai!
Ouço
nas vísceras o teu canto ardente, iluminado de
loucura.», p. 33;
«Acontecia
assim
às vezes - Moura contava - que durante uma
conversa (como quando o pai falava da morte de
algum doente) ela sorria enlevada com o ar
distante, separado, de uma louca.», p. 58;
[54]
«Os teus olhos vivos, Sofia, a tua
face tão jovem tinham o mistério da vitória e
do desastre, da violência do sangue.», p. 33;
[55]
« Mas tinha sobretudo uma maneira
brusca e cravada de travar e de me ficar
olhando, como se me procurasse em qualquer
sítio de mim onde não houvesse lembrança do
que estávamos dizendo.», p. 53;
[56]
«Por isso se vestia em perfeição,
destra e aguda, disparada desde os saltos aos
seios agressivos, aos olhos retos e lúcidos.»,
p. 54;
[57]
« - Porque há.de a vida ter razão
sobre nós? Porque havemos de ser sempre nós a
submeter-nos? Um curso e um marido e
filhos...»;
«Faça
um esforço, doutor, faça um esforço. Saia um
momento das regras e exceções. Só assim talvez
entenda.», pp. 54/55;
[58]
«Porque tu foste sempre uma «criança
difícil», Sofia. [...] De uma vez, contou
Moura, Sofia foi repreendida pela mãe. [...]
Madame sentiu-se vexada, trouxe a filha a um
recanto disciplinar e explodiu. Sofia nada
disse. Não se ria, não chorava. Estava apenas
muito séria como se tivesse cumprido um dever.
Mas nessa noite, ao deitar, desapareceu. [...]
Tinha estado todo esse tempo empoleirada na
chaminé de um forno abandonado, no pátio.»; p.
58;
[59]
«De outra vez, e sem questão nenhuma,
atou fortemente um nastro num braço, prendendo
a circulação. Já tinha a mão roxa quando o pai
descobriu. Sofia sentiu-se alegre por saber
que estivera em risco de perder o braço todo.
Mas aos doze anos saiu realmente de casa, a
pé, com destino a Lisboa.», p. 58;
[60]
«A certa altura houve quem
preconizasse o recurso de um colégio.
Meteram-na no colégio. Mas não houve outro
remédio senão tirá-la de lá, porque duas vezes
tentou suicidar-se.», p. 58;
[61]
«E
Alfredo riu com malícia: oh, aquela
Sofiazinha, aquilo não era uma mulher, aquilo
era um demónio. Então eu não sabia?
- Mas naturalmente não sei de nada.
- Pois a Sofiazinha já deixou Lisboa.
Você sabe lá, doutor. Calcule que tentou
suicidar-se outra vez...», p. 246;
[62] «Em
certo serão de inverno, Sofia, Ana quebrou-te,
creio que por descuido, um braço a uma bonaca.
Tu foste para o quarto, grave, sem uma
lágrima. E de um a um quebraste todos os teus
brinquedos, impedindo violentamente que te
levassem os cacos: melhor que a náusea das
compensações medianas, preferias o absoluto da
destruição.», p. 59;
[63] «Sofia
falava. Em momentos fulgurantes, pelo meio da
noite, ela descobrira também a vertigem da
vida, da sua pessoa, da gratuitidade desse
absurdo milagre, da interrogação para o
amanhã: «Eu já conhecia tudo.» », p. 84;
[64] «Que
havia, pois, mais para a vida, para responder
ao seu desafio de milagre e de vazio, do que
vivê-la no imediato, na execução absoluta do
seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para
exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os
restos de ontem. Ser só abertura para
amanhã.», p. 85;
[65] «De
queixo nos polegares, Sofia e Carolino
espreitam a conversa de longe. Estais, pois,
unidos secretamente. Como me sinto ridículo.»,
p. 165;
[66] «Dirá
você: dominar uma inocência é próprio do
homem. Pois é. Mas eu também gosto. Toda a
mulher é um homem não realizado - não é o que
vocês pensam? Aliás, dominar uma inocência é
talvez uma fraqueza que quer imitar a força.
Não é isso próprio da mulher?», p. 179;
[67] « -
Quem é que me denunciou ao reitor?
- Mas fui, naturalmente.
- Com uma carta anónima?
- Tive de lhe fazer ver que outras
pessoas da cidade já sabiam. Só assim dava
resultado.», p. 180;
Ana
[68] «Conheci
a mulher do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha cabelos
longos e lisos, face magra de energia e de
ânsia, olhar vivo de estoque... O lábio superior
abria-se com a irregularidade de um dente.», p.
35;
[69] «Ergueu
para mim os seus grandes olhos de fogo, sorriu
com o seu dente saído, que dava ao seu corpo
vibrante uma graça infantil de imperfeição.», p.
93;
[70] «Mas
Ana, infelizmente, não podia dar-lhe filhos:
desarranjo no ventre ao primeiro parto falhado,
uma operação eliminatória.», p. 181;
[71]
«
Ana ficou a meu lado com a sua pergunta de há
pouco. Havia nela a violência de um prosélito
recente ou em crise. Era em crise, boa Ana, como
em breve eu saberia. Sim, Ana. Essa tua
inquietação, essa tua fúria silogística, o
desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a certeza de que nada
em ti estava seguro.», p. 37;
[72]
«- Li dois livros seus - disse-me ela.
- Publicou mais algum?
Não,
não publicara, disse eu, centrado na atenção de
todos.
- Que se
passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia
que o seu deus ressuscitou também ao terceiro dia.
[...]
Há
uns versos no seu livro que me intrigam. Dizem
assim, mais ou menos:
Do
sangue nascem os deuses
que
as religiões assassinam.
Ao
sangue os deuses regressam
e só aí são eternos.», pp. 37/38;
[73]
«- Quem julga você que é? Que notícia
extraordinária pensa que nos traz? Tenho a minha
vida resolvida há muito tempo e não é qualquer
pessoa, qualquer ideia que pode transformar-me.
[...]
- Resolvi definitivamente os meus
problemas com os deuses - clamou Ana ainda. - Definitivamente!», p. 95;
[74]
«Ana olhava-me, direita, desde uma
eternidade imóvel que vinha das esfinges, dos
desertos, das civilizações perdidas, da
obscuridade de todos os deuses e de todas as
interrogações.», pp. 96/97;
[75]
«E, bruscamente, mas com a calma
habitual, a calma que era nela uma tensão a
explodir, Ana perguntou-me:
- Porque
é você tão pantomineiro?», p. 99;
[76]
«- Porque é você
tão pantomineiro?
[...]
- Porque
me chama «pantomineiro»?
- Tudo
comédia, tudo comédia.
[...]
- O
moralista é normalmente um pecador. A moral vivida
não se prega.
[...]
-
E julga você que Sofia é sua?»,
p. 100;
[77]
«Ana emprega a força da sua
naturalidade para restabelecer tudo em verdade
corrente.», p. 103;
[78]
«Levantamo-nos. Ana apertou-me
vigorosamente a mão nas suas, fitou-me com uma
cumplicidade sem razão, disse:
-
Apareça. Apareça muitas vezes. Temos imenso que
conversar.», p. 112;
[79]
«Mas, quando um trovão abala toda a
cidade, entro instintivamente na Sé. [...]
E eis
que de repente descubro que não estou só: lá no
fundo, num ângulo do cruzeiro, uma breve presença
de negro destaca-se à luz trémula que desce da
lanterna. Avanço pela nave, olho ao lado um
instante: Ana! [...]
- Mas
porque veio você aqui?
- Venho
aqui às vezes. Gosto de vir aqui. Não foi você
para São Bento? Porque foi você para lá?
- Mas,
Ana!, São Bento não é uma igreja...
- Um dia
saberá que é. Um dia saberá...
[...]
- Foi
aqui que puseram a urna de Cristina - disse ela
inesperadamente.
-
Cristina? Mas porque é que...
-
Aqui...
[...]
- ...E de súbito vê-se que não é possível morrer. Que não é
possível! Onde está Cristina, a que era ela, não a que morreu de vestido de
holandesa, não a que tocava, ela tocava tão
bem... Havia outra, outra, profunda. ELA, eu vi-A, vinha até ao
seu olhar, ao seu sorriso, eu vi-A, eu vejo-a,
relembro-a, está aqui comigo, conheço-a, só me
não pode falar. Sou irmã dela, não eu, que você
vê, sou irmã dela EU, que estou comigo, que me
sinto ser, eu... Então e eu poderia lá morrer?
Sou irmã dela e de você e disto que anda aqui neste silêncio grande,
no eco da chuva, dos relâmpagos, dos trovões que
ressoam com uma voz que não vem nos livros, que
é uma voz dos grandes céus desertos. Como diz
você? A voz inicial... Ouço-a, sei-a... Mas istoé muito maior que nós, muito maior,
muito maior... Reduzir essa voz à «dimensão
humana»? Da dimensão humana são só os ouvidos
para a ouvirem. E é preciso não estar distraído.
Então a gente assusta-se, a gente sabe que tudo isso existe...
[...]
- Mas
você «acredita». Em quê?
- Não pretenda que eu diga, não pense
que eu diga um nome. Sou pequena e sei que a grandeza
existe. Existe onde? Existe. Sinto-o em mim como
uma pancada no escuro...
[...]
- Sei tudo isso, não tenho razões
nenhumas para opor a isso. Sei só que vejo. Alguma coisa mais se misturou no meu
sangue e é já o meu sangue. É bom ver...», pp. 223/229;
[80]
«- Quero-lhe dizer uma coisa, doutor: a
mina Aninhas é feliz.», p. 251;
[81] «- Foi
Alfredo quem os descobriu. Ana aceitou-os como
se os esperasse há muito. Há gente cobarde para
tudo, para aceitar, para creditar, para jogar a
vida numa solução. Como se houvesse uma
solução.», p 255;
[82] «Ana
olhava tudo, ouvia tudo, quase desinteressada.
Mais tarde, já eu não estava em Évora,
disseram-me que tu, Ana, te tornaras «fanática».
Verdade? Não sei. Sei apenas que, por então, tu
reagrupavas-te ao teu mundo novo, à maravilha
que irradiava de uma paz reencontrada. Eras crente, não eras ainda apóstola.», p. 260;
Bexiguinha
[83] «Era o
Carolino, meu aluno de Literatura, moço bisonho,
com a cara cravada de espinhas e a quem por isso
os colegas chamavam o Bexiguinha.», p. 66;
[84] «E tu,
pobre Bexiguinha de olhos alagados de estupefação? És
tu só então que me estás ouvindo?
[...]
- [...]
Sabia acaso o homem o milagre que destruía? Mas eu
sei.
- Como
se sabe, senhor doutor? - Perguntou-me o Carolino
na sua voz ridícula, que tanto me desmanchava.
[85] «- Eu
acho bem, eu... Eu já tinha pensado. Às vezes,
lá em casa, ponho-me a pensar: o que é que
sentirá uma galinha?
- Uma
galinha? - perguntou o engenheiro.
- Sim.
Uma galinha. Penso assim: «Se eu fosse galinha?» E
o que o senhor doutor contou, isso do espelho,
também já tenho pensado. A gente às vezes brincava
a fazer caretas ao espelho. Às vezes fazia uma
coisa que não devia fazer. E depois chegava ao
espelho, fazia caretas e era mesmo como se me
estivesse a ralhar a mim próprio. Depois ficava
melhor. Mas falar alto para mim nunca falei.
Ficamos todos embaraçados. Bexiguinha olhou-nos, estupefacto do nosso
embaraço e talvez do seu.
[...]
Eu estava atónito. Porque sentia em
Carolino, através do que havia nele de estranho,
uma inquietante separação de si, não sei se para
um encontro lúcido consigo, se para uma união de
loucura. Precisava de conversar com o pobre Bexiguinha. Ele não era decerto louco. O modo de
falar era trôpego, ridículo no seu esganiçado de
falsete, e isso é que sobretudo o perturbava.»,
p. 72;
[86] «-
Também fiz outra experiência, senhor doutor.
- Que
experiência?
- Bem... Não sei como explicar. É
assim: mastigar
as palavras.
-
Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por
exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.
Como,
Carolino? Sabes então já a fragilidade das
palavras, acaso o milagre de um encontro através
delas connosco e com os outros? E saberás o que há
em ti,o que te vive, e as palavras ignoram?», p.
74
[87] «- Tu
percebeste o que eu queria dizer?
- Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar
muito nisso. Fazer assim: pôr-me bem no centro
de mim e ver-me, sentir-me bem de dentro para
fora, descobrir a pessoa que está em mim.», pp. 74/75;
[88] «Mas o
Bexiguinha não tinha ideias: tinha quase apenas o
seu alarme de louco.», p. 121;
[89] « -
Pensei muito, senhor doutor, na história do
homem que se enforcou. Esse homem que já não
tinha boa mão para semear. E então eu pensei: já
não há deuses para criarem e assim o homem,
senhor doutor, o homem é que é deus porque pode
matar.», p. 123; « [...] - Sei o que quero. Sou
livre, sou grande, tenho em mim um poder imenso.
Imenso como Deus. Ele construía. Eu posso
destruir.», p. 211;
[90] «Bexiguinha
está agitado, cumprimenta-me comprometido, o
olhar incerto, o sorriso incerto, olhando em
roda à procura de lugar.
[...]
Mal
o ouço. Olho Sofia. Há um diálogo mudo entre ela e
Carolino. Carolino baixa a cabeça, faz sinais com
os olhos, franze a testa, sorri, faz gestos com as
mãos.», p. 164;
[91] «De
queixo nos polegares, Sofia e Carolino espreitam
a conversa de longe. Estais, pois, unidos
secretamente. Como me sinto ridículo.», p. 165;
[92] «Saturado
do cheiro a estrume, afastei-me. Sofia passou
por mim, sorriu-me cúmplice, Carolino mal me
olhou, sinistro e hostil.», p. 183;
«Bexiguinha
atirou-me
em riste o seu olhar colérico:
- Eu
acho que não tenho satisfações nenhumas a dar.»,
p. 187;
[93] «Abri
a porta, acendi a luz, Carolino entrou. [...]
um
frio súbito preveniu-me nos ossos de um perigo
insuspeitado. [...]
- Não me
trate por «tu».
[...]
- Sei
tudo... Sei tudo...
- Não me
trate por «tu»!
[...]
- Não
pronuncie o nome dela! Você tem os lábios porcos!
[...]
Sem
erguer os olhos, estendeu o braço, eu empurrei-lhe
o cálice cheio. Repentinamente, porém, ele deu um
pincho e apareceu-me em frente de navalha aberta.
Era uma navalha de ponta que abria de estalo.
Erguia-a alto, como uma condenação, um brilho
maligno refletia-se dela para os olhos do moço, ao
clarão da fogueira. Instintivamente, atirei-lhe a
mão ao pulso e aparei o golpe.», pp. 208/212;
[94] «
[...] Sofia apareceu num caminho que parte de
junto do Chafariz de El-Rei, assassinada a
punhal.
[...] Alfredo declarou-me que o Chico me
considerava responsável pelo crime de
Carolino.», pp. 266/267.
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