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Aparição: personagens

[Alberto Soares] * [Sofia] * [Ana] * [Bexiguinha]



* Existencialismo, segundo Sartre









 




Alberto Soares

Narrador distanciado dos acontecimentos da diegese

  • Um ser à descoberta da face última das coisas e da sua própria verdade perfeita[1], sentindo-se, no entanto, impotente perante a inacessibilidade do que busca[2];
  • Um ser profundamente angustiado, agitando-se entre a ideia de Deus em que não acredita e a corrente filosófica do Existencialismo que advoga[3];
  • Não concebe uma pessoa dissociada do seu próprio nome[4];
  • Um ser, desde a infância, interessado pelas leituras, pela invenção do indizível e pelos versos que a cantavam, e pela descoberta de si próprio[5]; é natural que um perfil assim provocasse um certo isolamento propício à reflexão, o que justificaria o facto de seu irmão Evaristo o tratar por «monge»[6];
  • Um ser para quem a arte (no seu caso, poética) não era uma manifestação fútil e fortuita[7];
  • Uma personagem com um único e verdadeiro problema a resolver: a morte[8];
  • Um escritor para quem a escrita é uma espécie de exorcismo[9];
  • No final, um ser aparentemente apaziguado e rendido à evidência da sua condição[10]; no entanto, salvaguardando diferente interpretação, sem ter resolvido, em definitivo, a sua eterna angústia[11], por isso se refugiando na «memória de uma inocência de outrora e para sempre reinventada em música» (Cristina)[12], e na presença da mulher que o procura e lhe toma as mãos em profunda comunhão[13], comunhão que sempre procurou, conforme se pode constatar através da nota 26, e que fora anunciada no início da obra, no final do capítulo que funciona como uma espécie de Preâmbulo[14].

Personagem da diegese

  • Uma pessoa com um problema «metafísico» a resolver[15]
  • Um ser angustiado pela redescoberta da morte[16];
  • Uma pessoa a quem a atitude existencialista não proporciona a necessária paz de espírito[17];
  • Professor com «projetos tão ingénuos»[18], mas com a preocupação de inovação a nível didático[19];
  • Autor de dois livros de poemas sobre a essência de Deus[20];
  • Alguém que se emociona com a música, que entende como um dom de revelação, sobretudo a que era executada por Cristina[21];
  • Um ser desiludido que não acredita em Deus (Deus apenas residirá no nosso imaginário)[22];
  • Uma personagem persuadida de que tinha uma missão a executar, uma mensagem a transmitir[23], como se fosse o novo Messias destruidor de mitos inventados[24] (na perspetiva de Ana, não passava de um pantomineiro[25], de um impostor[26], de um papagaio orgulhoso e ridículo[27]), evidenciando, no entanto, uma necessidade de comunhão em relação ao seu problema[28];
  • O professor conta aos alunos a experiência da aparição de si a si próprio[29];
  • Um humanista que não se interessa apenas pelas necessidades materiais do homem[30];
  • Uma pessoa para quem a vida é uma selva de caminhos onde é fácil perdermo-nos[31], provavelmente a razão por que continua a procurar a sua evidência[32];
  • Materialista e humanista[33];
  • Um ser angustiado ainda à procura de algo que lhe confira tranquilidade[34], incessantemente à procura da aparição[35]: afinal, tinha uma verdade ou apenas uma dúvida?[36]; a dúvida parece permanecer, o problema parece insolúvel[37]
  • Obsessivo, não ama ninguém, apenas a sua violência[38];
  • Um ser que se sentia excluído da verdade e da harmonia natural[39], só queria soluções para toda a idade da vida, uma certeza assumida, assimilada, para a ameaça da morte[40];
  • Alguém que entende que o homem deve construir o seu reino, onde a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens[41]; no entanto, não sabe como consegui-lo (o problema subsiste sem solução)[42], elegendo como uma espécie de redenção a música de Cristina[43].

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Sofia

Retrato Físico

  • Corpo esguio[44], intenso e maleável[45], de seios agressivos[46];
  • Olhos vivos[47];
  • De uma beleza demoníaca[48], como de perdição ou de pecado[49].

Retrato Psicológico

  • Faz versos[50];
  • Com olhar ácido de pecado[51], olhar ilícito e inocente[52];
  • Com um canto ardente, iluminado de loucura[53];
  • Com o mistério da vitória  e do desastre, da violência do sangue[54] (indício proléptico e premonitório);
  • Com uma forma estranha de olhar o professor (Dr. Alberto Soares)[55], mas com olhos lúcidos[56];
  • Irreverente e insubmissa[57];
  • Sempre uma «criança difícil»[58], com tendência sadomasoquista[59] e propensão para o suicídio[60], suicídio tentado mesmo em adulta, depois de ter conhecido o Dr. Alberto Soares[61];
  • Preferia o absoluto da destruição[62];
  • Conhecedora já da grande notícia de que o Dr. Alberto Soares se dizia portador[63], numa atitude epicurista, tinha por filosofia de vida o carpe diem (goza o dia de hoje: “a vida é curta, por isso devemos aproveitá-la enquanto pudermos”, Horácio, Odes, 1, 11, 8)[64];
  • Unida secretamente a Carolino (Bexiguinha)[65];
  • Gosta de dominar uma inocência[66];
  • Autora da carta anónima dirigida ao reitor, evidenciando que não olha a meios para atingir os fins[67].

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Ana

Retrato Físico

  • Magra, de cabelos longos e olhar vivo (grandes olhos de fogo) [68], um dente saído conferia alguma irregularidade ao lábio superior, conferindo-lhe uma graça infantil[69];
  • Não podia ter filhos[70].

Retrato Psicológico

 
Antes da morte de Cristina

  • Com a violência de um convertido em crise[71];
  • Leitora atenta dos dois livros de Alberto Soares, confronta-o a partir do conteúdo dos mesmos[72];
  • Com os seus problemas com os deuses definitivamente resolvidos, confronta-se, uma vez mais, com Alberto Soares, dispensando a mensagem messiânica de que se julga portador[73];
  • Com um olhar enigmático, esfíngico[74];
  • Com uma calma habitual, provavelmente aparente, pois seria uma calma com uma tensão pronta a explodir[75];
  • Além de provocadora, tenta humilhar Alberto Soares[76];
  • Com a força da sua naturalidade, restabelece tudo em verdade corrente[77];
  • Simuladora de uma cumplicidade, em ralação a Alberto Soares, sem razão[78].

 
Depois da morte de Cristina

  • Encontra a pacificação do seu espírito, passando a acreditar na existência de uma grandeza face à pequenez do homem, sem, contudo, saber que nome lhe atribuir[79];
  • Coma a adoção dos filhos do Bailote, alcança a felicidade[80], facto que é interpretado por Sofia como uma cobardia[81];
  • Crente, embora ainda não apóstola, parece ter encontrado, definitivamente, a paz que procurava[82].

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Bexiguinha (Carolino, primo de Chico)

  • Apresentação sumária da personagem e da sua alcunha[83];
  • Atento, desde o início, à mensagem do professor[84];
  • Também já tinha pensado no problema que transportava o professor, manifestando, no entanto, uma inquietante separação de si, ou para um encontro lúcido consigo ou para uma união de loucura[85];
  • Já fizera uma outra experiência: mastigar as palavras[86];
  • Pensa ter compreendido tudo o que o professor queria dizer[87];
  • Afinal, o Bexiguinha não tinha ideias, era louco[88];
  • Na sua loucura, conclui que o homem é deus porque pode matar, pode destruir[89];
  • A sua postura deixa transparecer uma cumplicidade com Sofia[90];
  • Existia, de facto uma união secreta entre Sofia e Carolino[91];
  • Revela-se sinistro e hostil em relação ao professor[92];
  • Tenta matar Alberto Soares, o «seu» rival[93];
  • Assassina Sofia[94].

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Alberto Soares

[1] «Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita.», p. 9;

[2] «Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível.», p. 9;

[3] «Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito...», p. 10;
«E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face.», p. 10;
«Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte...», p. 10;
«Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. [...] Mas os elos de ligação entre os factos que narro é como se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem só audíveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade de que sou, os ecos angustiantes desses factos em si - padrões de uma viagem que já mal sei.», p. 24;

[4] «Não sei que pacto se estabelece entre a pessoa quer somos e o nome que nos deram: o nome, como o corpo, é nós também.», p. 20;

[5]  «Sim. Havia o meu interesse pelas leituras, a invenção do indizível e o meu verso clandestino que a cantava. [...] Havia enfim, desde a infância, essa velha pergunta sobre a descoberta de nós próprios e que eu também fizera um dia a meu pai:
 - Quem sou eu?
[...]
- Bom - disse meu pai, um pouco perturbado: - tu és meu filho, um homem, um ser vivo que pensa, que vive e que há de morrer como todo o ser vivo.
- Mas eu, eu o que é que sou?», p. 25;

[6] « - O monge? Onde é que está o monge?
O monge sou eu.», pp. 16/17;

[7] «Mas a arte não era para mim um mundo da letra impressa, uma estúpida invenção de passatempo ou de vaidade: era uma comunhão com a evidência, uma reencarnação na verdade de origens [...]», pp. 36/37;

[8] «Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro.», p. 49;
«E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim...», p. 50;


[9] «Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim? O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora de que falo, se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse , que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.», p. 193;

[10] «Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. [...] É bom estar aqui, neste abandono, todo aberto a estas vozes de indício, a este trémulo aviso de uma verdade primordial. Instante perfeito da totalidade presente, aureolando tudo o que me é degradação... Dou a face inteira à inundação da lua, que me escorre por este corpo perecível, o trespassa do seu fluido de eternidade, o transmigra ao país da legenda. Um grande halo de grandes olhos abertos suspende-se raiado à anunciação da evidência. Sei e não temo [...] Sei, não talvez como quem conquistou mas como quem se despoja: a minha verdade é o que me sobeja de tudo. [...] O meu futuro é este instante desértico e apaziguado. [...] a vida do homem é cada instante [...] O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte, sou eu sendo, vibrando. [...] - neste instante fugidio e apaziguado eu me esqueço à quietude desta lua irreal [...]», pp. 272/273;

[11] «Quantos anos ainda me espera? Que caminhos desertos ou de estalagens à espera? [...] Como imaginar o futuro? [...] O que sonho mal é um sonho; porque o espero violentamente, o desejo na experiência do meu corpo, das minhas vísceras - como deve ser realizável o pão à fome de quem nunca o teve. Mas dos desvarios que o meu aviso suscita como um erro de cálculo ou de manobra, da secura mecânica das horas que o esqueceram na execução dos gestos, do terror dos longos dias até ao repouso final a que aspiro, da própria angústia que me torce à evidência da minha condição [...]», pp. 272/273;

[12] « - neste instante fugidio e apaziguado eu me esqueço à quietude desta lua irreal sobre a terra realizada em dádiva e fertilidade, à memória de uma inocência de outrora e para sempre reinventada em música  a uma hora gravada de cansaço entre uns dedos indefesos e uns cabelos louros...», p. 273;

[13] «...eu me esqueço ainda, ao anúncio de alguém numa porta que se abre, e que me procura e me toma as mãos e as molda, à luz da lua, na flor breve e miraculosa de uma profunda comunhão...», p. 273;

[14]
«Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre-se, angustiada, a flor da comunhão...», p. 12;

[15]
«Amigos de Coimbra chamavam-me velho, cobarde, decadente, só porque eu tinha agora um problema de vida-morte, um problema «metafísico» a resolver.», p. 105;

[16] «Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de fazer [...] Venho de luto, o meu pai morreu.», p. 14;
«Então bruscamente ataca-me todo o corpo, as vísceras, a garganta, o absurdo negro, o absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança da morte. Como é possível? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho? Onde, não os teus olhos, mas o teu olhar?, não a tua boca, mas o espírito que a vivia?», p. 45;
«Com efeito, nas súbitas arcadas que levam à Praça, abre-se-me um obscuro labirinto onde julgo repercutirem-se, como ecos de uma gruta, os ecos do tempo e da morte.», p. 14;
«Então bruscamente ataca-me todo o corpo, as vísceras, a garganta, o absurdo negro, o absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança da morte. Como é possível? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho? Onde, não os teus olhos, mas o teu olhar?, não a tua boca, mas o espírito que a vivia?», p. 45;
« Que pretendia eu? [...] Não o dissera já a Ana? Adequar a vida (que é um pleno de ser, um absoluto, uma positividade necessária) com a morte (que é uma nulidade integral, uma pura ausência, um nada-nada).», p.109;
«Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.», p. 110;

[17] «E todavia, pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só atividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo - e onde se perde e esquece. EU! Ora este «eu» é para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza do meu equilíbrio interior. Mas como é possível? Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência.», p. 47;

[18] «Entrei, cumprimentei, disse o meu nome:
 - Alberto Soares.
 - Doutor Alberto Soares. O novo professor do primeiro grupo. Professor efetivo. Em que Liceu esteve este ano? Mas sente-se. Tem aí essa cadeira.
Sentei-me. Tinha feito apenas o serviço de exames desse ano. Em Coimbra.
 - É portanto o primeiro liceu em que ensino - acrescentei.
De que nadas a vida se sustenta! [...] Porque eu tinha projetos tão ingénuos. [...] pus-me a falar de coisas extraordinárias a realizar, excitado no meu entusiasmo de principiante. Exercícios, redações, técnicas modernas de pedagogia, leituras de modernos escritores, cultura, cultura. Também disse, é verdade, como era necessário aprender a distinguir um fado de uma sinfonia, um Picasso de um calendário. Bons deuses!», pp. 27, 28; p. 25;

[19]
«Eu inventava assim técnicas novas ou julgava que inventava.», p. 115;

[20]
«- Li dois livros seus - disse-me ela [Ana]. - Publicou mais algum?
Não, não publicara, disse eu, centrado na atenção de todos.
- Que se passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia que o seu deus ressuscitou também no terceiro dia.», p. 37;
« - Há uns versos no seu livro que me intrigam. Dizem assim, mais ou menos:
Do sangue nascem os deuses
Que as religiões assassinam.
Ao sangue os deuses regressam
E só aí são eternos.», p. 38;


[21]
«E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação. Que eram, pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das teclas, as pernas na distância dos pedais e toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção. Apertas ligeira a boca, pões uma rugazinha na testa, estremeces brevemente a cabeleira loura com o teu laço vermelho. E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas.», pp. 40/41;

[22]
«Mas o jantar acabava e fomos tomar café para outra sala. Madame teve tempo ainda de me perguntar:
- Desculpe: mas não é então crente?
- Decerto que não, minha senhora.
- Ah, estes jovens de hoje, estes terríveis jovens...»
« A verdade aparece e desaparece. Deus, a imortalidade e uma ideologia política e a sedução de uma mulher - onde começam?, onde findam? Sou um indizível equilíbrio interior. Vivi, agi, toquei com as mãos tanta ilusão consistente. Depois a ilusão desfez-se. Ficou, porém, o rasto do que toquei, o gesto das minhas mãos - essa última união com o que quis, acreditei. Então eu descobri que as mãos estavam impuras. Lavar-me, renascer. Deus está morto porque sim. [...] Foi porque Deus se me gastou. Sei só que não está certo que ele viva. Sei que ele é absurdo porque o é. Sei que esle está morto, porque não cabe na harmonia do que sou. Não cabe.», pp. 46/47;
« «Afinal, Deus não existe.» Não existia mesmo. Era evidente, natural, claro, como era claro não haver Pai Natal.», p. 98;
«Deus morreu, Deus não é a minha meta, é o meu ponto de partida.», p 102;


[23]
«Tinha uma missão a executar, uma extraordinária notícia a transmitir. Precisava urgentemente de fazer a conferência, de revolucionar o mundo. Porque o mundo aparecia-me sob a forma de uma absurda estupidez. Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte. Viriam a chamar-me «mórbido», «doentio». Porquê? Mais real do que o nascer era o morrer. Porque quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites, depois de a morte o não poder surpreender. Não porque a tivesse decorado como um gato-pingado, não porque a tivesse  esquecido, mas por tê-la incorporado na plenitude da vida. Sabia bem quanto era difícil já não digo esta aceitação esclarecida mas até o ver o problema, sofrer o impacto da sua fulgurante aparição. Eu próprio quantas vezes o esqueço! [...]
Mas agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o Chico na sua repartição.», pp. 63/64;


[24]
«Ah, como te torces dentro de ti [Ana]! Também tu então nada sabias de ti! Também eu te trouxe a notícia das trevas onde hás de acender a nova luz. Céus! Mas então eu fui necessário! Todo um mundo duvidoso esperava o novo Messias! Sofre, amiga! Trago comigo a destruição dos mitos que inventaste...», p. 95;

[25] 
« - Porque é você tão pantomineiro?
[...]
- Porque me chama «pantomineiro»?
- Tudo comédia, tudo comédia. Deus vive no seu sangue como um vício. Deixar de beber, de fumar. Mas o seu mundo é o do ópio e do álcool.», pp. 99/100;


[26]
« - Distrair... Que medo você tem de se distrair. Mas quem quer não é. Não é santo quem quer. Nunca pensou que era um impostor?
- Até os grandes o hão de ter pensado, Ana. Mas só há impostura quando há público. E o que eu procuro é ser público de mim próprio.», p. 184;


[27]
« - Há de estremecer sempre. Até reconhecer que lhe não pertence. Não a inventou você. Deram-lha, veio-lhe de outrem. E você esquece que está a repeti-la como se lha não tivessem dado. Papagaios orgulhosos e ridículos, empoleirados na sua pobre suficiência...», p. 228;

[28]
«Eu estava numa situação de inferioridade e o que desejava não era uma tolerância mas uma comunhão.», p. 65;

[29]
« - Há uma outra experiência - disse eu. - Uma vez, quando era miúdo... [...]
Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.», pp. 68/70;


[30]
«Chico endireitou-se, fez peito. [...]
- A única verdade a conquistar é a de que todos os homens têm direito a comer.
- Quando é que afirmei que o homem deve passar fome? Mas, se em todas as épocas se tivesse só pensado na melhoria económica, hoje não seríamos homens: seríamos apenas máquinas. O meu humanismo não quer apenas um bocado de pão; quer uma consciência e uma plenitude.», p. 71;

[31]
«Fixar uma vida em torno de uma ideia, de um sentimento, como é difícil! [...] a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um caminho é «o» caminho em cada instante que passa.», p.91;

[32]
«Não, não quero suicidar-me. Quero achar a evidência que procuro, estabelecer nela a minha vida em plenitude.», p. 102;

[33]
« - Sou materialista! - disse eu.
[...]
- Mas o meu materialismo não é o de um pedreiro.
[...]
O sonho, o alarme, o mistério, a presença de nós a nós próprios, a interrogação, o mundo submerso da nossa intimidade - tudo era vida real, da matéria de que eram feitas as pedras e os cardos. Sim, os deuses tinham habitado tudo isso. Mas os deuses estavam mortos. Mortos sem discussão. Mortos-mortos. [...]
- É exatamente porque sou materialista que esse mundo me intriga. Se tivesse deuses para lhes recambiar estes seus bens não me interrogava duas vezes. Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.»;
« - Essa é a base última de um verdadeiro humanismo: instalar o homem mesmo nos aposentos divinos.», pp. 109/110;


[34] « - Terás tu... Terás tu achado o que procuro? ...essa superação de todas as angústias, de todas as dúvidas? Terás tu visto o absurdo e o milagre, e ficado tranquilo?
- Não sei o que queres dizer. Mas tenho a certeza de que não achei o que procuras. Porque, se tu procuras, só tu podes achar.», p 146;


[35] «Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso: procuro. Outra vez, outra vez. Não, não quero «saber», sei já há tanto tempo... Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque o escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E, todavia, um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. [...] Quem é fiel a uma certeza e a pode ver quando lhe apetece? [...] Em que iluminação eu acredito quando falo em nome dela e a imponho a Ana, aos outros? Falo de cor - a iluminação é então a minha noite de secura.», pp. 192/193;

[36] «Não tinha medo e, todavia... Tinha eu afinal uma verdade e não apenas uma dúvida?», p. 231;

[37] «Que esperas tu da vida? Vê como os teus sonhos se resolvem nos outros em... Mas são atos definitivos, não se iludem, não se iludem. Duvidar é cómodo, interrogar-se é cómodo.» «Sei o que quero, sei o que sonho.» «Que fazes para o atingir?» [...] «Que fazes para o atingir?» «Não sei, não sei. Reconheço-me na evidência última da minha condição - saber é já conquistar. Mil razões e factos me trabalham a saúde e um dia vejo-me doente. Mil remédios me trabalham a doença e um dia reconheço-me saudável.» «Toma o teu remédio, doente. Toma o teu remédio.» «Qual remédio? Não o sei. Como quem se despe de todos os artifícios, eis-me nu à minha frente. A vida é curta - tanto tempo só para isto, para me desnudar. Um dia virão os mensageiros da Grande Reconquista, agora é cedo, a vida é curta. Um dia virão os arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros nus do homem a verdade da alegria. Ou a própria terra e o próprio sol inventarão à nudez o calor vindo do sangue.» [...]
«Que fazes para atingir o teu sonho?» «Não o sei. Um dia virão os núncios da Grande Reconquista. Quando for a hora para isso.» [...]
«Que ilusão! A busca indefinida é do destino do homem.» «Sim. Mas outra busca, depois desta. A minha procura é a primeira, a que está antes de todas, a que encontre para este corpo mortal, esta luz vivíssima e mortal, o seu lugar ignorado num universo que se cumpre, com ventos e águas e serras e desertos e planetas e Vénus e Marte e estrelas, Antares, Deneb, Altair - meu velho pai - e galáxias e milhões de anos-luz e o infinito que submerge e aturde.»; pp. 238/240;


[38] «Não amo ninguém, não amo ninguém: amo a minha violência.», p. 163;

[39] «Uma verdade natural, uma harmonia natural trespassava toda a terra, os campos, as árvores, Ana, as crianças. Mas eu estava de fora...», p. 253;

[40] «Sentia, sabia que era um logro decidir-se para a vida sem ter-se em conta a doença, a morte. Um homem não se limita a dois braços fortes erguidos. Um homem limita-se em toda a sua condição. Se as ideias de um doente são ideias doentes, porque serão decisivas as ideias com saúde, se a saúde é uma contingência, um estado passageiro? As ideias saudáveis também são débeis: elas pertencem ao acaso do vigor. Poder-se-ia pois responder a quem as expõe que a sua exatidão depende apenas de uma frescura ocasional do sangue: o seu rigor é contingente... Mas eu queria soluções para toda a idade da vida, eu queria uma certeza assumida, assimilada, para a ameaça da morte. Eu queria que a desgraça da nossa condição nos não trouxesse surpresas... [...]
- Portanto - declarei - a exatidão de uma ideia não é uma exatidão em si. Portanto, toda a razão é «irracional.» Sei-o há muito.», pp. 260/261;

[41]
«Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche -  o ciclo, a viagem mais perfeita.», pp. 269/270;

[42] «Não me pergunteis como consegui-lo, não me pergunteis. O que é evidente aparece, p. 270;

[43] «talvez a tua música, Cristina, ajude a mover as pedras; como certa lira de outrora... Eu a sonho, pelo menos, como o ar respirável de um dia, aberto às alturas de um triunfo apaziguado, como a alegria dominadora e sem tumulto de quem chega ao alto duma montanha...», p. 270;


Sofia

[44] «Sofia. À luz do meu inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio...», p. 33;

[45] «Até que [...] apareceu Sofia. Tinha um vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável. Uma forte adstringência apertava-a contra si, endurecia-lhe o boleado das curvas como duas maxilas cerradas. A cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os olhos.», pp. 35/36;

[46] «Por isso se vestia em perfeição, destra e aguda, disparada desde os saltos aos seios agressivos, aos olhos retos e lúcidos.», p. 54;
 
[47] «Os teus olhos vivos, Sofia...», p. 33;
 
[48] «Calou-se enfim. Uma beleza demoníaca, como de uma criança assassina, fulgurava-lhe nos olhos líquidos, na face branca, na boca ávida e sangrenta.», pp. 85/86;
 
[49] «Oh, Sofia é tão bela, Ana. Como evitá-lo sempre? Bela como a perdição, como todo o pecado.», p. 253;
 
[50] «A minha Sofia, que também faz versos...», p. 33;
[51]
«Sofia. À luz do meu inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu olhar ácido de pecado...», p. 33;

[52] «De novo se me erguia, fascinante, no seu corpo selado de luto, nas suas mãos agudas, de gestos oblíquos, no seu olhar ilícito e inocente.», p. 84;

[53] «E tu voltada para o céu, cantando, cantando:
Ai... Ai, ai, ai, ai!
Ouço nas vísceras o teu canto ardente, iluminado de loucura.», p. 33;
«Acontecia assim às vezes - Moura contava - que durante uma conversa (como quando o pai falava da morte de algum doente) ela sorria enlevada com o ar distante, separado, de uma louca.», p. 58;

[54] «Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face tão jovem tinham o mistério da vitória e do desastre, da violência do sangue.», p. 33;
 
[55] « Mas tinha sobretudo uma maneira brusca e cravada de travar e de me ficar olhando, como se me procurasse em qualquer sítio de mim onde não houvesse lembrança do que estávamos dizendo.», p. 53;

[56] «Por isso se vestia em perfeição, destra e aguda, disparada desde os saltos aos seios agressivos, aos olhos retos e lúcidos.», p. 54;

[57] « - Porque há.de a vida ter razão sobre nós? Porque havemos de ser sempre nós a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...»;
«Faça um esforço, doutor, faça um esforço. Saia um momento das regras e exceções. Só assim talvez entenda.», pp. 54/55;

[58] «Porque tu foste sempre uma «criança difícil», Sofia. [...] De uma vez, contou Moura, Sofia foi repreendida pela mãe. [...] Madame sentiu-se vexada, trouxe a filha a um recanto disciplinar e explodiu. Sofia nada disse. Não se ria, não chorava. Estava apenas muito séria como se tivesse cumprido um dever. Mas nessa noite, ao deitar, desapareceu. [...] Tinha estado todo esse tempo empoleirada na chaminé de um forno abandonado, no pátio.»; p. 58;

[59] «De outra vez, e sem questão nenhuma, atou fortemente um nastro num braço, prendendo a circulação. Já tinha a mão roxa quando o pai descobriu. Sofia sentiu-se alegre por saber que estivera em risco de perder o braço todo. Mas aos doze anos saiu realmente de casa, a pé, com destino a Lisboa.», p. 58;

[60] «A certa altura houve quem preconizasse o recurso de um colégio. Meteram-na no colégio. Mas não houve outro remédio senão tirá-la de lá, porque duas vezes tentou suicidar-se.», p. 58;

[61] «E Alfredo riu com malícia: oh, aquela Sofiazinha, aquilo não era uma mulher, aquilo era um demónio. Então eu não sabia?
- Mas naturalmente não sei de nada.
- Pois a Sofiazinha já deixou Lisboa. Você sabe lá, doutor. Calcule que tentou suicidar-se outra vez...», p. 246;

[62] «Em certo serão de inverno, Sofia, Ana quebrou-te, creio que por descuido, um braço a uma bonaca. Tu foste para o quarto, grave, sem uma lágrima. E de um a um quebraste todos os teus brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os cacos: melhor que a náusea das compensações medianas, preferias o absoluto da destruição.», p. 59;

[63] «Sofia falava. Em momentos fulgurantes, pelo meio da noite, ela descobrira também a vertigem da vida, da sua pessoa, da gratuitidade desse absurdo milagre, da interrogação para o amanhã: «Eu já conhecia tudo.» », p. 84;

[64] «Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã.», p. 85;

[65] «De queixo nos polegares, Sofia e Carolino espreitam a conversa de longe. Estais, pois, unidos secretamente. Como me sinto ridículo.», p. 165;

[66] «Dirá você: dominar uma inocência é próprio do homem. Pois é. Mas eu também gosto. Toda a mulher é um homem não realizado - não é o que vocês pensam? Aliás, dominar uma inocência é talvez uma fraqueza que quer imitar a força. Não é isso próprio da mulher?», p. 179;

[67] « - Quem é que me denunciou ao reitor?
- Mas fui, naturalmente.
- Com uma carta anónima?
- Tive de lhe fazer ver que outras pessoas da cidade já sabiam. Só assim dava resultado.», p. 180;


Ana

[68] «Conheci a mulher do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha cabelos longos e lisos, face magra de energia e de ânsia, olhar vivo de estoque... O lábio superior abria-se com a irregularidade de um dente.», p. 35;

[69] «Ergueu para mim os seus grandes olhos de fogo, sorriu com o seu dente saído, que dava ao seu corpo vibrante uma graça infantil de imperfeição.», p. 93;

[70] «Mas Ana, infelizmente, não podia dar-lhe filhos: desarranjo no ventre ao primeiro parto falhado, uma operação eliminatória.», p. 181;
[71]
« Ana ficou a meu lado com a sua pergunta de há pouco. Havia nela a violência de um prosélito recente ou em crise. Era em crise, boa Ana, como em breve eu saberia. Sim, Ana. Essa tua inquietação, essa tua fúria silogística, o desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a certeza de que nada em ti estava seguro.», p. 37;

[72] «- Li dois livros seus - disse-me ela. - Publicou mais algum?
Não, não publicara, disse eu, centrado na atenção de todos.
- Que se passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia que o seu deus ressuscitou também ao terceiro dia.
[...]
Há uns versos no seu livro que me intrigam. Dizem assim, mais ou menos:
Do sangue nascem os deuses
que as religiões assassinam.
Ao sangue os deuses regressam
e só aí são eternos.», pp. 37/38;

[73] «- Quem julga você que é? Que notícia extraordinária pensa que nos traz? Tenho a minha vida resolvida há muito tempo e não é qualquer pessoa, qualquer ideia que pode transformar-me.
[...]
- Resolvi definitivamente os meus problemas com os deuses - clamou Ana ainda. - Definitivamente!», p. 95;

[74] «Ana olhava-me, direita, desde uma eternidade imóvel que vinha das esfinges, dos desertos, das civilizações perdidas, da obscuridade de todos os deuses e de todas as interrogações.», pp. 96/97;

[75] «E, bruscamente, mas com a calma habitual, a calma que era nela uma tensão a explodir, Ana perguntou-me:
- Porque é você tão pantomineiro?», p. 99;

[76] «- Porque é você tão pantomineiro?
[...]
- Porque me chama «pantomineiro»?
- Tudo comédia, tudo comédia.
[...]
- O moralista é normalmente um pecador. A moral vivida não se prega.
[...]
- E julga você que Sofia é sua?», p. 100;

[77] «Ana emprega a força da sua naturalidade para restabelecer tudo em verdade corrente.», p. 103;

[78] «Levantamo-nos. Ana apertou-me vigorosamente a mão nas suas, fitou-me com uma cumplicidade sem razão, disse:
- Apareça. Apareça muitas vezes. Temos imenso que conversar.», p. 112;

[79] «Mas, quando um trovão abala toda a cidade, entro instintivamente na Sé. [...]
E eis que de repente descubro que não estou só: lá no fundo, num ângulo do cruzeiro, uma breve presença de negro destaca-se à luz trémula que desce da lanterna. Avanço pela nave, olho ao lado um instante: Ana! [...]
- Mas porque veio você aqui?
- Venho aqui às vezes. Gosto de vir aqui. Não foi você para São Bento? Porque foi você para lá?
- Mas, Ana!, São Bento não é uma igreja...
- Um dia saberá que é. Um dia saberá...
[...]
- Foi aqui que puseram a urna de Cristina - disse ela inesperadamente.
- Cristina? Mas porque é que...
- Aqui...
[...]
- ...E de súbito vê-se que não é possível morrer. Que não é possível! Onde está Cristina, a que era ela, não a que morreu de vestido de holandesa, não a que tocava, ela tocava tão bem... Havia outra, outra, profunda. ELA, eu vi-A, vinha até ao seu olhar, ao seu sorriso, eu vi-A, eu vejo-a, relembro-a, está aqui comigo, conheço-a, só me não pode falar. Sou irmã dela, não eu, que você vê, sou irmã dela EU, que estou comigo, que me sinto ser, eu... Então e eu poderia lá morrer? Sou irmã dela e de você e disto que anda aqui neste silêncio grande, no eco da chuva, dos relâmpagos, dos trovões que ressoam com uma voz que não vem nos livros, que é uma voz dos grandes céus desertos. Como diz você? A voz inicial... Ouço-a, sei-a... Mas istoé muito maior que nós, muito maior, muito maior... Reduzir essa voz à «dimensão humana»? Da dimensão humana são só os ouvidos para a ouvirem. E é preciso não estar distraído. Então a gente assusta-se, a gente sabe que tudo isso existe...
[...]
- Mas você «acredita». Em quê?
- Não pretenda que eu diga, não pense que eu diga um nome. Sou pequena e sei que a grandeza existe. Existe onde? Existe. Sinto-o em mim como uma pancada no escuro...
[...]
- Sei tudo isso, não tenho razões nenhumas para opor a isso. Sei só que vejo. Alguma coisa mais se misturou no meu sangue e é já o meu sangue. É bom ver...», pp. 223/229;

[80] «- Quero-lhe dizer uma coisa, doutor: a mina Aninhas é feliz.», p. 251;
[81] «- Foi Alfredo quem os descobriu. Ana aceitou-os como se os esperasse há muito. Há gente cobarde para tudo, para aceitar, para creditar, para jogar a vida numa solução. Como se houvesse uma solução.», p 255;

[82] «Ana olhava tudo, ouvia tudo, quase desinteressada. Mais tarde, já eu não estava em Évora, disseram-me que tu, Ana, te tornaras «fanática». Verdade? Não sei. Sei apenas que, por então, tu reagrupavas-te ao teu mundo novo, à maravilha que irradiava de uma paz reencontrada. Eras crente, não eras ainda apóstola.», p. 260;


Bexiguinha

[83] «Era o Carolino, meu aluno de Literatura, moço bisonho, com a cara cravada de espinhas e a quem por isso os colegas chamavam o Bexiguinha.», p. 66;

[84] «E tu, pobre Bexiguinha de olhos alagados de estupefação? És tu só então que me estás ouvindo?
[...]
- [...] Sabia acaso o homem o milagre que destruía? Mas eu sei.
- Como se sabe, senhor doutor? - Perguntou-me o Carolino na sua voz ridícula, que tanto me desmanchava.

[85] «- Eu acho bem, eu... Eu já tinha pensado. Às vezes, lá em casa, ponho-me a pensar: o que é que sentirá uma galinha?
- Uma galinha? - perguntou o engenheiro.
- Sim. Uma galinha. Penso assim: «Se eu fosse galinha?» E o que o senhor doutor contou, isso do espelho, também já tenho pensado. A gente às vezes brincava a fazer caretas ao espelho. Às vezes fazia uma coisa que não devia fazer. E depois chegava ao espelho, fazia caretas e era mesmo como se me estivesse a ralhar a mim próprio. Depois ficava melhor. Mas falar alto para mim nunca falei.
Ficamos todos embaraçados. Bexiguinha olhou-nos, estupefacto do nosso embaraço e talvez do seu.
[...]
Eu estava atónito. Porque sentia em Carolino, através do que havia nele de estranho, uma inquietante separação de si, não sei se para um encontro lúcido consigo, se para uma união de loucura. Precisava de conversar com o pobre Bexiguinha. Ele não era decerto louco. O modo de falar era trôpego, ridículo no seu esganiçado de falsete, e isso é que sobretudo o perturbava.», p. 72;

[86] «- Também fiz outra experiência, senhor doutor.
- Que experiência?
- Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.
Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há em ti,o que te vive, e as palavras ignoram?», p. 74

[87] «- Tu percebeste o que eu queria dizer?
- Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso. Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.», pp. 74/75;

[88] «Mas o Bexiguinha não tinha ideias: tinha quase apenas o seu alarme de louco.», p. 121;

[89] « - Pensei muito, senhor doutor, na história do homem que se enforcou. Esse homem que já não tinha boa mão para semear. E então eu pensei: já não há deuses para criarem e assim o homem, senhor doutor, o homem é que é deus porque pode matar.», p. 123; « [...] - Sei o que quero. Sou livre, sou grande, tenho em mim um poder imenso. Imenso como Deus. Ele construía. Eu posso destruir.», p. 211;

[90] «Bexiguinha está agitado, cumprimenta-me comprometido, o olhar incerto, o sorriso incerto, olhando em roda à procura de lugar.
[...]
Mal o ouço. Olho Sofia. Há um diálogo mudo entre ela e Carolino. Carolino baixa a cabeça, faz sinais com os olhos, franze a testa, sorri, faz gestos com as mãos.», p. 164;

[91] «De queixo nos polegares, Sofia e Carolino espreitam a conversa de longe. Estais, pois, unidos secretamente. Como me sinto ridículo.», p. 165;

[92] «Saturado do cheiro a estrume, afastei-me. Sofia passou por mim, sorriu-me cúmplice, Carolino mal me olhou, sinistro e hostil.», p. 183;
«Bexiguinha atirou-me em riste o seu olhar colérico:
- Eu acho que não tenho satisfações nenhumas a dar.», p. 187;

[93] «Abri a porta, acendi a luz, Carolino entrou. [...]
um frio súbito preveniu-me nos ossos de um perigo insuspeitado. [...]
- Não me trate por «tu».
[...]
- Sei tudo... Sei tudo...
- Não me trate por «tu»!
[...]
- Não pronuncie o nome dela! Você tem os lábios porcos!
[...]
Sem erguer os olhos, estendeu o braço, eu empurrei-lhe o cálice cheio. Repentinamente, porém, ele deu um pincho e apareceu-me em frente de navalha aberta. Era uma navalha de ponta que abria de estalo. Erguia-a alto, como uma condenação, um brilho maligno refletia-se dela para os olhos do moço, ao clarão da fogueira. Instintivamente, atirei-lhe a mão ao pulso e aparei o golpe.», pp. 208/212;

[94] « [...] Sofia apareceu num caminho que parte de junto do Chafariz de El-Rei, assassinada a punhal.
[...] Alfredo declarou-me que o Chico me considerava responsável pelo crime de Carolino.», pp. 266/267.

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